A primeira manchete de jornal escrita pelo autor destas linhas na então Folha da Manhã, nos idos de 1958, dizia: Assume proporções de catástrofe na Paraíba a seca que assola todo o Nordeste. Mudou o estilo, passou-se mais de meio século, não mudou a realidade. Na próxima segunda-feira, em Fortaleza, a Organização das Nações Unidas lançará a Década da ONU sobre Desertos e de Combate à Desertificação, com o propósito de enfrentar o drama em mais de cem países e lançar um alerta sobre as “dimensões alarmantes” da questão
De fato, segundo a ONU, um terço da superfície do planeta, onde vivem 2,6 bilhões de pessoas, enfrenta o problema, em algum grau. Na região subsaariana, por exemplo, a degradação nos vários países varia de 20% a 50% do território e atinge 200 milhões de pessoas. Na Ásia e na América Latina, são 357 milhões de hectares afetados, 2,7 bilhões de toneladas de solo perdidas a cada ano. No Brasil, mais de 1 milhão de quilômetros quadrados, do Nordeste a Minas Gerais e Espírito Santo, 15 milhões de pessoas já atingidas diretamente, perdas de US$ 5 bilhões por ano. Se a temperatura da Terra subir mais que 2 graus, alerta a ONU, pode pôr em risco um terço da economia.
Em artigo recente neste espaço (22/1), já foram analisados muitos ângulos da parte que cabe ao Brasil no drama, com áreas em torno de 1 milhão de quilômetros quadrados suscetíveis de desertificação (quase 100 mil km2 já em processo), 1.482 municípios, 15 milhões de pessoas. Algumas dessas áreas – Gilbués (PI), Irauçuba (CE), Cabrobó (PE) e Seridó (RN) – “já podem ser consideradas desertos”, segundo o meteorologista Humberto Barbosa (Portal do Meio Ambiente, 9/8); “e, pior, estão se expandindo”. A Bahia tem em áreas problemáticas 289 municípios, 86,8% do território do Estado, onde vivem 3,7 milhões de pessoas. E nem é só no Semi-Árido. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, 40% das áreas suscetíveis estão no Cerrado (entre elas, o paradisíaco Jalapão) e na fronteira gaúcha, na região de Alegrete. Até a região das nascentes do Rio Araguaia está ameaçada, com mais de 20 voçorocas de quilômetros de extensão.
Segundo a Fundação Oswaldo Cruz e a Universidade Federal de Minas Gerais, 1% do Nordeste, pelo menos, está sob risco alto de desertificação, por causa de mudanças climáticas. Já o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Laboratório de Meteorologia de Pernambuco dizem que as temperaturas médias fora do litoral nordestino estão aumentando rapidamente, com estiagens mais longas, chuvas mais intensas e mais rápidas, ar mais seco. Em Vitória de Santo Antão, por exemplo, em 40 anos a média das máximas subiu 3,5 graus (para 35°), enquanto a média mundial aumentava 0,4 grau. Por isso tudo, o Ministério do Meio Ambiente e o Inpe assinaram esta semana acordo para a elaboração do Sistema de Alerta Precoce de Secas e Desertificação, que pode antecipar situações problemáticas e providências cabíveis, partindo de dados meteorológicos e imagens de satélites. O diretor do Inpe, Gilberto Câmara, afirmou na ocasião que “o mundo vive uma tragédia anunciada”. Na seca, 60% das chuvas na região caem em um mês; 30% em um dia.
A Caatinga já perdeu a vegetação em quase 50% de sua área total. Entre 2002 e 2008 foram 16.576 quilômetros quadrados, mais de 2,7 mil por ano. E só tem 7% do território em áreas protegidas, das quais apenas 2% com proteção integral. Por isso, muito terá de ser feito para tentar reverter o quadro. Influir no modelo energético, por exemplo, já que a lenha ainda responde por 40% da energia, somados o consumo no polo gesseiro de Araripe (1 milhão de metros cúbicos anuais de lenha, para fabricar 1,3 milhão de toneladas de produtos) e o consumo nas residências. Além do desmatamento, contribuem para a desertificação as queimadas, o “extrativismo desenfreado”, o uso intensivo do solo.
Até aqui, muitas das propostas de “solução” se têm mostrado ineficazes ou até contraproducentes, embora mobilizando recursos públicos consideráveis. Nos açudes nordestinos, por exemplo, acumulam-se 37 bilhões de metros cúbicos de água, equivalentes a um terço do que o Rio São Francisco despeja no mar por ano – e com alto nível de evaporação. Mas não há uma rede de distribuição. Perímetros irrigados são outro exemplo de ineficácia. Segundo o Instituto Nacional do Semi-Árido, só 2% das terras, ali, podem receber sistemas de irrigação. Ainda assim, mais de metade da água transposta do Rio São Francisco se destina a projetos de irrigação (embora o próprio Ibama, que licenciou a obra, tenha advertido que a maior parte da água irá para terras já em processo de erosão ou desertificação).
Como já se escreveu aqui tantas vezes, o pensamento moderno e realista sugere que se mudem as estratégias, que se parta para a “convivência com o Semi-Árido”, em lugar de tentar modificá-lo, tarefa impossível. Que se adotem soluções como as mais de 300 mil cisternas de placa já instaladas pela Articulação do Semi-Árido e outras instituições, que recolhem água da chuva e abastecem as famílias durante a estiagem. Como as mais de 4 mil cisternas de produção, como as barragens subterrâneas. A Embrapa sugere ênfase na pecuária leiteira, na vinicultura, na oleicultura, na fruticultura irrigada.
É preciso ter urgência. Este ano, a estiagem já levou à perda de 70% da safra em Picos (PI). Entre janeiro e maio, as chuvas no Ceará estiveram 53% abaixo da média. A “seca” verde atingiu 63 municípios cearenses.
O Ministério do Meio Ambiente espera ver criado por decreto federal o Fundo da Caatinga, a ser administrado pelo Banco do Nordeste. O Senado aprovou a inclusão da Caatinga (e do Cerrado) entre os patrimônios nacionais definidos pelo artigo 225, parágrafo 4.º, da Constituição. Ainda falta a aprovação da Câmara dos Deputados para a proposta, que tramita há mais de 20 anos. É preciso correr.
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FONTE : artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo. (EcoDebate, 16/08/2010)
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