São discutidos conceitos fundamentais à elaboração de políticas ambientais cientificamente embasadas e, portanto, consistentes e eficazes, como o de biodiversidade (baseado na noção de variedade), conservação, resiliência de ecossistemas, fragilidade e perturbação, efeitos acumulativos e princípio da precaução. São analisados os dois principais instrumentos que vêm sendo considerados nesse âmbito, quais sejam as áreas prioritárias para conservação da biodiversidade e as listas de espécies ameaçadas de extinção; na prática, estas últimas são o único aplicado quando da análise de pedidos de licenciamento de empreendimentos.
Finalmente, são detalhados critérios mínimos de suficiência amostral para estudos ambientais embasando tais pedidos: abrangência taxonômica (que deve ser completa nos levantamentos), espacial (incluindo áreas de influência de cada empreendimento) e temporal (pelo menos três ciclos anuais), testadas por meio de curvas de acumulação de espécies. A legislação referente a cavernas é utilizada como exemplo.
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Biodiversidade e conservação
BIODIVERSIDADE é um termo já incorporado ao vocabulário e preocupação de uma parcela significativa da humanidade. Curiosamente, embora exista uma percepção intuitiva geral - todos entendem o que é biodiversidade e sabem reconhecê-la, ao menos de forma comparativa e com referência à sua própria experiência -, não há uma definição técnico-científica consensual de biodiversidade e, segundo alguns autores (por exemplo, Dreyfus et al., 1999), não há uma única maneira de olhar para a biodiversidade e, portanto, de defini-la. Assim, biodiversidade poderia ser definida dentro de um ponto de vista simbólico até o operacional, por exemplo, para fins de política de conservação. No âmbito da ciência, quase todo artigo teórico escrito a respeito traz, implícita ou explicitamente, sua própria definição ou variante, mas sempre em torno de um eixo central, que é a variedade.
Variedade emerge da existência de semelhanças e diferenças observadas nos diversos níveis do universo biológico, do molecular, passando pelo indivíduo, ao ecossistêmico e da paisagem. Configura-se, assim, um sistema fractal, tanto no espaço como no tempo. Nossa própria evolução está tão imersa nesse sistema que nosso sentido estético e sistema de valores estão ligados de forma inalienável à variedade - o interessante contrapõe ao monótono, o valioso ao comum, repetido. Estamos sempre em busca do raro, do singular, do único, do que é diferente. O preço de um anel de diamante, o tráfico internacional de animais raros ou ameaçados de extinção, que a pressão imobiliária e turística sobre ilhas e os poucos remanescentes de matas preservadas etc. provam que todos valorizam e querem usufruir da variedade e da exclusividade. Isso, independentemente de sua filosofia ambiental, seja biocentrista (preservar porque está lá; a natureza funcionando como ela é; as espécies são produto de uma longa história evolutiva continuada por meio de processos ecológicos e também tem direito à vida [Alho, 2008]), seja antropocentrista (preservar a natureza por seu valor, os serviços ecológicos para humanos, dentro da noção de patrimônio, herança [ibidem]), ou mesmo da ausência de qualquer filosofia, o que caracteriza, na prática, boa parte da população, incluindo a maioria de nossos empresários.
No campo da conservação, falar em preservação da biodiversidade equivale a falar em preservação da variedade em todos os seus níveis de universalidade, incluindo suas causas e todas suas manifestações e componentes, da variação genética entre indivíduos à variação entre ecossistemas. Sem querer resolver a questão da definição de biodiversidade, podemos dizer, de forma simples e operacional, que conservação visa preservar amostras representativas da biodiversidade, seus processos e padrões. Mesmo restringindo-nos ao âmbito ecológico, existem diferentes níveis de diversidade biológica, do quais nos interessam o mais simples, qualitativo, que a riqueza de espécies (= diversidade α), e o nível imediatamente superior, o da diversidade β, que integra componentes quantitativos, no caso a abundância dessas espécies (tamanho de cada população).
Outro termo incorporado ao dia a dia das pessoas, antes mesmo de biodiversidade, é ecologia. Esse é frequentemente usado em uma acepção equivocada, que se confunde com "ecofilia" (filo = amigo, o que se identifica com, ao passo que logos = conhecimento, que deriva do estudo). Portanto, em seu uso correto, ecologia é um ramo das ciências biológicas que se dedica a descrever unidades biológicas em nível hierárquico superior ao das populações/espécies, investigando como esses elementos, assim como os indivíduos dentro de cada população, interagem entre si e com o meio ambiente, produzindo o que conhecemos por ecossistemas, biomas, biosfera.
A disciplina Ecologia surgiu quando os naturalistas deram-se conta de que os sistemas naturais que nos rodeiam não resultam de um simples somatório de seus elementos, apresentando propriedades emergentes das interações entre os indivíduos de uma população e das populações entre si e com fatores ambientais, geralmente variáveis no espaço e no tempo. Alterações qualitativas ou quantitativas em qualquer um desses elementos podem levar à perda de biodiversidade.
Por sua vez, também, é falsa a noção de que os ecossistemas são como relógios com engrenagens perfeitamente ajustadas, em que qualquer perturbação causa perdas significativas em termos de diversidade. De fato, cada ecossistema tem um grau próprio de resiliência, que é a capacidade de tolerar e absorver mudanças, mantendo sua estrutura e seu padrão geral de comportamento. Tal capacidade é claramente essencial à própria evolução (lembrando que evolução = mudança, transformação, e não "progresso" no sentido de melhoria), já que vivemos em um mundo ambientalmente variável, caracterizado por contínuas flutuações naturais, cíclicas ou não. E são essas flutuações a força geradora da diversidade, por meio de processos de diversificação, resultantes de vicariância (fragmentação de hábitat, causada pelo aparecimento de barreiras - geográficas, geológicas, climáticas, ecológicas etc. - que levam, com o tempo, à subdivisão de populações), dispersão, extinção etc. O próprio estresse ambiental pode ser um fator acelerador da evolução, sendo o efeito-gargalo, resultante de diminuição drástica no tamanho de populações, um conhecido fator de diversificação biológica. Um dos fatores de resiliência é a redundância: de modo geral, os ecossistemas não funcionam com seus números mínimos, sendo poucos, como os de ilhas e cavernas, que funcionariam no limite de sua resiliência.
O grande desafio é, portanto, detectar, a partir da compreensão dos fatores envolvidos na evolução e funcionamento de cada ecossistema, onde está seu limite de resiliência, que, se ultrapassado, levará à perda irreversível de biodiversidade. Em princípio, só deveríamos abrir mão do que é redundante, mesmo se, para isso, tivermos de rever totalmente o atual modelo de desenvolvimento, claramente suicida. Fornecer as imprescindíveis bases científicas para a definição de graus de fragilidade (proximidade em relação do limite de resiliência) e de perturbação é papel das ciências naturais, sendo política qualquer decisão no sentido de violar os princípios básicos da conservação, abrindo mão de parcelas importante da biodiversidade.
Na ausência de dados científicos conclusivos, a opção é usar a lógica, sempre dentro do princípio da precaução/prevenção , que deve ser norteador de toda e qualquer política de conservação. Esse, que é igualmente um princípio legal (in dubio, pro reu), reza que, sempre que houver boas evidências de que um ecossistema é frágil ou ameaçado, deve-se sempre assumir o cenário mais desfavorável, optando pela ação que garanta a proteção nesse cenário. Por exemplo, havendo dúvidas quanto a uma determinada espécie estar efetivamente ameaçada, evidências do sentido que ela o possa estar (distribuição restrita a ecossistemas ameaçados, populações muito baixas, declínio aparente etc.) justificam ações no sentido de garantir sua proteção e a de seu hábitat. Do mesmo modo, é razoável supor, e assumir para fins de políticas de conservação, que ecossistemas que perderam uma porcentagem grande de sua área de distribuição, como é o caso clássico da Mata Atlântica (que já perdeu mais de 80% de sua área) e, mais recentemente, o Cerrado, que encolhe a olhos vistos, devam ser integralmente protegidos, de modo que empreendimentos com impactos irreversíveis sejam exceções muito bem justificadas politicamente.
Nesse ponto, faz-se ainda necessário pontuar muito bem a diferença entre fragilidade e perturbação. Conforme entendo, o conceito de fragilidade refere-se ao potencial para perda de diversidade, que depende do grau de resiliência do sistema e do tipo/intensidade de perturbações potenciais. É, portanto, um conceito relativo. Já grau de perturbação é um conceito absoluto, decorrente de fato já ocorrido e detectado a posteriori. As listas de espécies ameaçadas, em documentos como os Livros Vermelhos e oficializadas por órgãos ambientais nacionais, como o Ministério do Meio Ambiente (MMA), e estaduais, são exemplos decorrentes deste último. Área reduzida e presença de espécies endêmicas e/ou com distribuição restrita e área reduzida são indicadores de alta fragilidade, independentemente da existência de riscos reais, ao passo que evidências de perda de espécies e diminuição do tamanho e densidade populacionais mantidas ao longo do tempo (excluídas, portanto, as flutuações cíclicas naturais) apontam para situação de ameaça real e atuante. Nesse sentido, são particularmente informativos vertebrados como anfíbios (ver artigo de Verdade et al. neste dossiê) e grandes predadores, e macroinvertebrados, especialmente aracnídeos como aranhas (predadoras) e opiliões, particularmente vulneráveis a alterações ambientais - o declínio de algum desses animais é indicativo de perturbações, inclusive em seus estágios iniciais.
Uma das muitas falácias que permeiam nossa míope e inconsequente política ambiental baseia-se na equivocada noção de que pequenos empreendimentos não representam ameaça relevante à biodiversidade, desconsiderando-se totalmente os efeitos acumulativos dessa multitude de intervenções individualmente menores. O princípio é simples e óbvio: a cada evento de destruição ou perturbação de sistemas naturais, a relevância dos remanescentes, independentemente de sua singularidade, aumenta exponencialmente, pois sua importância como amostra representativa da biodiversidade, incluindo processos e padrões, aumenta significativamente.
Pequenos empreendimentos (canavieiros, imobiliários e vários outros) são licenciados um após outro pelos órgãos ambientais, com a justificativa de que seus impactos não seriam importantes. No entanto, a ausência de uma análise global dos efeitos do conjunto, dentro de uma política desordenada e desarticulada como a atual, pode redundar em prejuízos ainda maiores que os de poucos grandes empreendimentos, onde o controle das medidas para proteção é maior, por exemplo, a partir da previsão de corredores de fauna dentro da área desses empreendimentos e de outras medidas mitigadoras e programas de monitoramento.
As noções e conceitos citados são fundamentais à compreensão de que múltiplas facetas devem ser contempladas na legislação, sob o risco de, caso seja mantida a atual abordagem, extremamente simplista e com fraca base lógica e conceitual, perdermos a efetividade de qualquer ação.
Políticas de conservação
Dois instrumentos principais para políticas de conservação vêm sendo reconhecidos pelos órgãos ambientais brasileiros: as Áreas Prioritárias para Conservação e as Listas de Espécies Ameaçadas. No dia a dia do licenciamento ambiental, porém, apenas as últimas são efetivamente utilizadas, e mesmo assim de forma parcial, como veremos.
A literatura é muito rica em documentos sobre estratégias e diretrizes de conservação, recomendações e propostas de áreas a serem protegidas, não sendo nosso objetivo aqui reunir e analisar todo esse material - no fundo, a mensagem principal é: faz-se preciso fazer algo, e urgentemente. Na prática, há que admitir que a mensagem não vem atingindo o nível mais importante, que é o da tomada de decisões dentro do governo: apoiados em estudos ambientais falhos, quase inócuos (ver a seguir), e escondidos atrás da cortina de fumaças das medidas mitigadores (ver artigo de Mechi & Sanches neste dossiê), praticamente todos os pedidos de licenciamento ambiental são aprovados. Ou seja, todos esses documentos, resultado de um imenso esforço por parte da comunidade científica e de técnicos de órgãos ambientais, são, na prática, inócuos diante dos poderosos interesses econômicos de alguns poucos, entre empresários e políticos. Há que se rever as estratégias de conscientização e sensibilização do governo e das forças políticas que o sustentam, há que se rever a própria filosofia do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
No momento, vamos nos ater a alguns documentos mais objetivos, de síntese, que são as propostas de áreas prioritárias. Publicada em 27 de maio de 2004, a Portaria n.126 do Ministério do Meio Ambiente oficializou o reconhecimento das "Áreas Prioritárias para a Conservação, Utilização Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade Brasileira ou Áreas prioritárias para a Conservação, para efeito da formulação e implementação de políticas públicas..." (art. 1º), associada a mapa produzido no âmbito do Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira (Probio), que durou mais de 24 meses, reunindo informações trabalhadas por mais de mil cientistas, técnicos de órgãos públicos e ONG e lideranças do movimento social. Trata-se, portanto, de documento técnico de inequívoca robustez e base científica sólida, reconhecidas por setores representativos da sociedade. Do mesmo modo, como um dos produtos do programa Biota-Fapesp, foi produzido um documento na forma de livro, que também traz propostas para áreas prioritárias para conservação, igualmente embasadas em estudos científicos.
Essas áreas, no entanto, vêm sendo desconsideradas quando da análise de pedidos de licenciamento ambiental para fins de uso de recursos naturais, comprometendo os objetivos de (Portaria MMA n.126, art. 1º):
I - Conservação in situ da biodiversidade;
II - Utilização sustentável de componentes da biodiversidade;
III - Repartição de benefícios derivados do acesso a recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado;
IV - Pesquisa e inventários sobre a biodiversidade;
V - Recuperação de áreas degradadas e de espécies sobre-exploradas ou ameaçadas de extinção; e
VI - Valorização econômica da biodiversidade.
Um exemplo do descompromisso com essa diretriz nacional da conservação, oficializada em Portaria em vigor, são os vários empreendimentos não sustentáveis, recentemente aprovados por instâncias governamentais do Estado de São Paulo, localizados em áreas de prioridade alta, muito alta e extremamente alta, como a região da Serra do Mar e litoral do Estado de São Paulo, onde especulação imobiliária e empreendimentos portuários, entre outros, exercem fortíssima pressão para mudanças na legislação ambiental (ver artigo de Varjabedian neste dossiê).
Em todo o Brasil, empreendimentos minerários superpõem-se com áreas prioritárias para a biodiversidade, e quando a legislação impõe impedimentos, muda-se essa. Um dos casos mais gritantes é o das cavernas, parte de um ambiente extremamente frágil e altamente relevante em ternos de biodiversidade, que é o meio subterrâneo. Cavernas eram protegidas pelo Decreto n.99.556, de 1º de outubro de 1990, que estipula que "as cavidades naturais subterrâneas existentes no território nacional constituem patrimônio cultural brasileiro" (art. 1º) e que "a utilização das cavidades naturais subterrâneas e de sua área de influência deve fazer-se consoante a legislação específica, e somente dentro de condições que assegurem sua integridade física e a manutenção do respectivo equilíbrio ecológico" (art. 2º). No momento em que sua ocorrência em áreas ferruginosas representou um problema a mais para grandes empreendedores, interessados na mineração de ferro e calcário e na construção de hidrelétricas para alimentar suas indústrias (ver o caso do Tijuco Alto, na área cárstica do Alto Ribeira, SP, ainda pendente e situado em área prioritária), mudou-se a legislação, entrando em vigor um novo Decreto, o de n.6.640, que permite destruição de cavernas que não se puder comprovar serem de relevância máxima (voltaremos ao assunto mais adiante).
O instrumento efetivamente utilizado nas decisões relativas a licenciamento de empreendimentos em geral (nas áreas de geração de energia, mineração, agropecuária, turismo, imobiliária etc.) que, na prática, constituem a ameaça central à biodiversidade, são as Listas oficiais de Espécies Ameaçadas de Extinção. Embora útil em alguns casos, trata-se de um instrumento muito fraco e pouco eficaz em termos globais, apresentando graves falhas conceituais e operacionais.
O primeiro e maior problema é a própria definição e delimitação do táxon "espécie", um tema muito complexo e para o qual não existe consenso no âmbito da ciência. Na prática, a definição de espécie fica a critério dos especialistas na taxonomia de cada grupo, que procuram conjuntos de características que possam separar diferentes unidades (caracteres diagnósticos), as quais recebem nomes específicos oficiais, binomiais (dentro da convenção estabelecida há mais de 250 anos por Linneu). Aqui começam as dificuldades: nem sempre são detectadas descontinuidades que possam ser usadas na distinção de espécies, frequentemente existindo certa superposição na variação dos caracteres analisados em diferentes conjuntos de indivíduos. Tendo em vista o caráter gradual da evolução na maioria dos casos conhecidos, é esperado depararmos com populações em processos de diferenciação, mas que ainda não se separaram totalmente (ver exemplo para peixes de cavernas em Reis et al. (2006).
Entra aqui o segundo problema: como atualmente a rígida burocracia ambiental só aceita a inclusão de espécies nominais (formalmente descritas e referidas por um binômio Gênero espécie) nas listas oficiais, ficam desprotegidas as variações geográficas, que também devem ser objeto da conservação ("preservar amostras representativas da biodiversidade, seus processos e padrões"), assim como aquelas ainda não descritas. Ora, um país de reconhecida megadiversidade como o Brasil, é particularmente afetado pelo chamado Impedimento Taxonômico, que é a falta de especialistas com a competência e capacidade (até mesmo de tempo) para descrever toda essa diversidade, nomeando táxons com significado biológico e ao mesmo tempo operacionais. Urge uma mudança conceitual de abordagem na elaboração dessas listas, de modo que possam efetivamente incluir a diversidade de processos e padrões geradores dessa riqueza.
A lógica da relevância versus não relevância: protocolos de estudo
De modo geral, os critérios para estabelecimento da condição da espécie, hábitat ou ecossistema a ser preservado baseiam-se na presença de atributos. A ocorrência de populações pertencentes a espécies nominais incluídas em listas oficiais ameaçadas de extinção é o atributo normalmente - e o único na imensa maioria dos casos - utilizado em uma abordagem extremamente simplista e ineficiente do problema da conservação da biodiversidade brasileira. Um nível um pouco melhor, com maior abrangência de critérios, é representado pela legislação referente a cavernas, conforme o já mencionado Decreto n.6.640, regulamentado pela Instrução Normativa do MMA, IN n.2, de 20 de agosto de 2009. Segundo essas normas legais, seriam de relevância máxima, portanto não passíveis de sofrer qualquer interferência ou perturbação, as cavidades que possuam pelo menos uma das seguintes atributos:
I - gênese única ou rara;
II - morfologia única;
III - dimensões notáveis em extensão, área ou volume;
IV - espeleotemas únicos;
V - isolamento geográfico;
VI - abrigo essencial para a preservação de populações geneticamente viáveis de espécies animais em risco de extinção, constantes de listas oficiais;
VII - hábitat essencial para preservação de populações geneticamente viáveis de espécies de troglóbios endêmicos ou relictos;
VIII - hábitat de troglóbio raro;
IX - interações ecológicas únicas;
X - cavidade testemunho; ou
XI - destacada relevância histórico-cultural ou religiosa.
A grande questão aqui é que, logicamente, pode-se provar a existência de um atributo, mas não sua ausência. Ou seja, ausência de evidência não é evidência de ausência. Essa é a base da própria ciência, estruturada sobre os fundamentos lógicos propostos por Popper. Na linguagem do teste de hipóteses, a hipótese inicial (H0) que, no caso das cavernas era anteriormente de relevância máxima para todas (cf. Decreto n.99.556), passou, com o Decreto n.6.640, a ser de não relevância. Ora, a constatação da existência de qualquer um dos 11 atributos citados passa a ser suficiente para falsear H0, isto é, para demonstrar relevância máxima, mas o oposto não é verdadeiro: não existe nenhuma possibilidade de demonstrar, cabal e absolutamente, H0, pois a qualquer momento um atributo pode ser detectado - a menos, é claro, que o hábitat seja convenientemente destruído. Em outras palavras, é logicamente impossível classificar qualquer caverna, ou qualquer outro hábitat, como de relevância não máxima. Do mesmo modo, não se pode afirmar que não existam, em uma dada área, populações de espécies ameaçadas, apenas o aposto é verdadeiro.
Temos aqui um dilema lógico, cuja solução reside no método. O que faz a ciência com suas hipóteses iniciais? Procura corroboração, por meio de um número tão grande de dados que torne H0 altamente provável, mesmo que impossível de ser demonstrada (situação em que seria possível justificar os impactos de uma intervenção qualquer). Exporei brevemente alguns métodos de corroboração de H0 dentro da biologia, em grande parte porque os sistemas biológicos são, sem dúvida alguma, os mais complexos e os mais vulneráveis por sua escala temporal.
A questão principal é a representatividade da amostragem visando à detecção dos atributos de relevância (para ecossistemas em geral, incluindo os subterrâneos), a qual pode ser desmembrada em quatro aspectos principais: abrangência taxonômica, frequência de amostragem, cobertura espacial e cobertura temporal.
Abrangência taxonômica
A grande maioria dos estudos ambientais embasando pedidos de licenciamento de empreendimentos restringe-se ao levantamento de vertebrados, com grande ênfase nos mamíferos e nas aves, que não são necessariamente os melhores indicadores de prioridade para conservação e de grau prévio de impacto; honrosa exceção são os estudos ambientais em cavernas, tradicionalmente incluindo toda a fauna.
Although arthropods encompass a major part of tropical biodiversity, dominate terrestrial animal biomass, play important ecological roles in tropical forests as parasites, decomposers, herbivores, predators and pollinators [...] and are better predictors of the conservation value of tropical forest areas than vertebrates [...], most information was gathered on vertebrates and plants... (Bragagnolo et al., 2007)
Dentro, portanto, de uma política consequente, os estudos ambientais devem incluir invertebrados, com ênfase em predadores (por exemplo, aracnídeos) e grupos indicadores de alterações ambientais (por exemplo, formas juvenis de insetos de ambientes lóticos, borboletas e opiliões) (Brown Junior, 1997; Bragagnolo et al., 2007).
Note-se que uma abrangência taxonômica aceitável, que permita inferências válidas sobre biodiversidade, requer a aplicação de diferentes métodos complementares (ver artigo de Silveira et al. neste dossiê). Se o objetivo é caracterizar a biodiversidade de uma área, os métodos menos seletivos são melhores em termos de resultados e de otimização do esforço (incluindo trabalho e verbas). Infelizmente, a grande maioria dos técnicos de órgãos ambientais é contrária ao uso dos ditos métodos não seletivos, contribuindo ainda mais para o atraso no conhecimento de nossa biodiversidade e, consequentemente, para a ineficiência da política ambiental brasileira.
Suficiência amostral
No que diz respeito à abrangência espacial do estudo, é evidente que a área mínima de amostragem deve ser todo o empreendimento e sua área de influência. Esta última é a mais problemática, pois a área de influência depende de um conjunto de fatores, não sendo de modo algum fixa. Por exemplo, para o mesmo tipo e tamanho de empreendimento, os impactos daquele a montante em um sistema hídrico afetarão uma área muito maior que o de um a jusante; a área de influência de empreendimentos em localidade de espécies migratórias ou com amplas áreas de vida será certamente grande, e assim por diante. Ou seja, a legislação deve ser adaptada a cada caso em particular.
A questão da área de influência é particularmente relevante no caso das cavernas, que constituem apenas a porção acessível aos humanos de um hábitat muito mais extenso, que é o meio subterrâneo. Assim, a grande maioria das espécies subterrâneas ocuparia uma área superior àquela diretamente investigada. Além disso, em razão de sua dependência em relação a nutrientes importados da superfície, a área de influência de ecossistemas subterrâneos é geralmente muito ampla, abrangendo toda a bacia hidrológica a montante da cavidade e a área domiciliar de espécies responsáveis pela entrada de alimento nas cavernas, como os morcegos. Aqui reside uma das maiores falhas técnicas, tanto do Decreto n.6.640 como de seu predecessor, o Decreto n.99.556, que fazem referência explícita a cavernas e não à unidade biológica de hábitat, que são os sistemas subterrâneos. Apenas para exemplificar, a presença do atributo VII art. 1º, parágrafo 4º do Decreto n.6.640 - "hábitat essencial para preservação de populações geneticamente viáveis de espécies de troglóbios endêmicos ou relictos" -, só pode ser verificada a partir da análise de todo o sistema, incluindo o meio epígeo (superficial).
Um aspecto polêmico, não por falta de robustez científica (ao contrário), mas simplesmente porque desagrada o empresariado, ansioso por lucro rápido e fácil, é a abrangência temporal. A sazonalidade no funcionamento dos sistemas subterrâneos é fato amplamente conhecido. Estudos biológicos abrangendo anos consecutivos frequentemente apontam para diferenças importantes entre anos. A cronobiologia, que estuda os ritmos biológicos, já estabeleceu que, para definir padrões cíclicos, são necessários estudos cobrindo pelo menos três vezes o período do ciclo que se pretende definir, ou seja, para a definição de padrões sazonais são necessários pelo menos três anos de estudo. Na prática, estudos ecológicos e de biodiversidade mostram que frequentemente nem sequer esses três anos são suficientes, apontando para quatro ou cinco anos como o mínimo necessário para uma compreensão consistente do funcionamento dos ecossistemas.
Existem muitos estudos sobre frequência mínima de amostragem em levantamentos biológicos e há consenso em torno do uso das chamadas curvas de acumulação ou rarefação (a curva do coletor é um caso particular), que são gráficos em que se plotam as ocasiões de coleta de dados contra o número cumulativo de espécies de todos os grupos (ver, por exemplo, Gotelli & Colwell, 2001). Uma determinada área só será considerada como bem conhecida quanto à sua fauna e flora quando as curvas desses gráficos atingirem a assíntota.
O Gráfico 1 traz um exemplo que demonstra a necessidade de esforços amostrais muito maiores que os que vêm sendo praticados no Brasil. Em cada uma das seis regiões cársticas europeias plotadas no gráfico, foram feitas entre 187 e 206 amostras; os autores do estudo mostraram que, com apenas 10 amostras, as conclusões sobre a diversidade relativa nessas áreas teriam sido erradas (Culver & Pipan, 2009). Nossa experiência em cavernas brasileiras mostra que pelo menos 10 ocasiões de coleta em diferentes anos são necessárias para que se comece a caracterizar os ecossistemas subterrâneos em todos os seus aspectos, e que espécies troglóbias podem aparecer mesmo após 20 coletas.
Os métodos citados, e outros equivalentes em objetivos e robustez, podem ser aplicados em qualquer estudo ambiental. Alegar que não são factíveis é uma inverdade. Além disso, deixar a cargo dos empreendedores a contratação dos serviços para estudos ambientais configura-se em claro conflito de interesses e não deveria ser permitido, se não por outros motivos, ao menos por questões éticas. A exemplo do que ocorre em outros países, como a Austrália, o correto é dar a responsabilidade de seleção e supervisão das equipes que realizam tais estudos aos órgãos ambientais competentes, embora quem deva pagar pelos serviços sejam os diretamente interessados, ou seja, os empreendedores.
O fato é que os órgãos ambientais brasileiros de modo geral foram incapazes de estabelecer e aplicar protocolos com critérios mínimos para estudos ambientais, como os aqui discutidos. Isso é muito conveniente para os interesses empresariais, já que os estudos são analisados caso a caso, com pareceres ad hoc sem nenhum compromisso com integração e coerência. Nessa situação, pressões políticas no sentido de manipular a decisão técnica são facilitadas. Novamente, a legislação para cavernas parece ser uma exceção, já que a IN n.2 de 2009 traz, em seu art. 16, uma série de requisitos mínimos para os estudos espeleológicos visando à classificação do grau de relevância das cavidades. Embora ainda muito falha (por exemplo, são obrigatórias apenas duas amostragens distribuídas em um único ciclo anual e não há previsão do uso de curvas de acumulação de espécies), essa legislação representa um avanço em relação à geral para os ecossistemas epígeos.
Estudos ambientais devem ser tratados com seriedade, sobretudo quando o que está em jogo é a própria sobrevivência de ecossistemas inteiros. O rigor proposto não é preciosismo, mas apenas o mínimo necessário para uma análise aproximada das consequências de perturbações impostas a sistemas complexos. Os chamados Rapid Assessment Protocols (RAP), convenientemente adotados em muitos casos, não foram desenvolvidos para os objetivos de estudos ambientais em áreas pretendidas para empreendimentos e, portanto, não devem ser aceitos como única fonte de dados.
Concluindo, a política ambiental no Brasil deve ser amplamente revista em seus fundamentos filosóficos, teóricos e práticos, desvinculando-se de interesses econômicos e encampando métodos robustos e cientificamente válidos, que permitam alcançar seus objetivos legítimos de preservação de amostras representativas da biodiversidade brasileira. Em seu estado atual, tal política e ações derivadas estão muito longe do mínimo necessário para garantir a sobrevivência em médio e longo prazos dos remanescentes da magnífica diversidade original brasileira.
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FONTE : Publicação deInstituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo
(EcoDebate)
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