RESUMO
O artigo analisa a emergência da história ambiental, como uma ciência consciente de si mesma, no contexto histórico e cultural da passagem do século XX para o século XXI. Ele define a história ambiental como uma investigação aberta e não reducionista das interações entre sistemas sociais e sistemas naturais ao longo do tempo. Também são discutidos os fatores sociológicos e as principais questões epistemológicas presentes na constituição desse novo campo historiográfico.
Palavras-chave: História ambiental, História ecológica, Teoria da história, Diálogo interdisciplinar, Concepções de Natureza.
“Lucien Febvre costumava dizer: ‘a história é o homem’. Eu, por outro lado, digo: a história é o homem e tudo mais. Tudo é história: solo, clima, movimentos geológicos.” (Fernand Braudel apud Moore, 2003, p.431)
Vozes da rua e mudanças epistemológicas
A HISTÓRIA AMBIENTAL, como campo historiográfico consciente de si mesmo e crescentemente institucionalizado na academia de diferentes países, começou a estruturar-se no início da década de 1970. A primeira sociedade científica voltada para esse tipo de investigação, a American Society for Environmental Histoy, foi criada em 1977. A publicação de análises substantivamente histórico-ambientais, no entanto, algo bem diferente da simples proposição de influências naturais na história humana, já vinha se delineando desde a primeira metade do século XX e, em certa medida, desde o século XIX. Para refletir sobre a gênese e evolução desse campo de conhecimento, é preciso levar em conta fatores sociológicos e epistemológicos.
O primeiro curso universitário1 de maior repercussão com o título de “História ambiental” foi ministrado em 1972, na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, pelo historiador cultural Roderick Nash, que em 1967 havia publicado o livro Wilderness and the American Mind, um clássico sobre a presença da imagem de vida selvagem na construção das ideias sobre identidade nacional norte-americana. Ao explicar a concepção do curso, apresentado como indicador de uma nova fronteira no ensino da História, o autor deixou explícito que estava também “respondendo aos clamores por responsabilidade ambiental que atingiram um crescendo nos primeiros meses daquele ano” (Nash, 1972).2 Ou seja, a “voz das ruas” teve importância na formalização da história ambiental. Um fator sociológico que pode ser inferido de vários outros depoimentos.
É verdade que muitos historiadores ambientais se sentem desconfortáveis com a presença desse tipo de influência externa ao contexto propriamente acadêmico. Ou simplesmente a rejeitam. Ela sugeriria uma politização da pesquisa, ajudando a promover uma confusão espúria entre história ambiental e ambientalismo. Mas tal postura vai de encontro às teorizações frequentemente repetidas, por Lucien Febvre e tantos outros, sobre o fato de o historiador não estar isolado do seu tempo e sempre mirar o passado com as perguntas do presente. Mesmo considerando os cuidados necessários na separação entre ciência e política, até onde elas possam ser separadas. Ao comentar o desenvolvimento recente da história ambiental, Peter Burke (2009, p.349) lembrou que a história monetária também foi estimulada pela crise inflacionária dos anos 1920, assim como a história demográfica pelobaby boom do pós-Segunda Guerra.
De toda forma, é bastante evidente que o debate público vem desafiando os historiadores ambientais, de forma direta ou indireta, mesmo quando aparentemente negado. Em 1974, na apresentação do número especial sobre História e Ambiente da revista Annales, o editor Emmanuel Le Roy Ladurie (1974, p.537) fez questão de afirmar que não estava cedendo “aos imperativos de uma moda”, pois “desde longo tempo” a revista havia escolhido “se interessar pelos problemas de uma história ecológica”. Ao afirmar a proposta de se ocupar do ambiente para “isolar os verdadeiros problemas e recusar as facilidades de um discurso vulgarizador”, no entanto, ficava evidente o contraponto com o debate público e a presença subjacente dos “problemas ambientais”.
A emergência de um “ambientalismo complexo e multissetorial” a partir da década de 1970, dotado de alto perfil na cena pública global, representou um dos fenômenos sociológicos mais significativos da história contemporânea. Ele pode ser considerado como um movimento histórico, mais do que um movimento social, que repercutiu nos diferentes campos do saber (Viola & Leis, 1991, p.24). A ideia de “ecologia” rompeu os muros da academia para inspirar o estabelecimento de comportamentos sociais, ações coletivas e políticas públicas em diferentes níveis de articulação, do local ao global. Mais ainda, ela penetrou significativamente nas estruturas educacionais, nos meios de comunicação de massa, no imaginário coletivo e nos diversos aspectos da arte e da cultura. O avanço da chamada globalização, com o crescimento qualitativo e quantitativo da produção científico-tecnológica e da velocidade dos meios de comunicação, catalisou uma explosão de temas da vida e do ambiente na agenda política. A discussão ambiental se tornou ao mesmo tempo criadora e criatura do processo de globalização. A própria imagem da globalidade planetária, em grande parte, é uma construção simbólica desse campo cultural complexo.
A pesquisa histórica vem revelando que a preocupação intelectual com os problemas “ambientais” esteve presente, ao menos no mundo de expressão europeia, desde o final do século XVIII, ocupando um lugar relevante no processo de construção do pensamento moderno (Raumolin, 1984; Grove, 1995; Pádua, 2002). A grande novidade das últimas décadas esteve na difusão desse tipo de debate para uma parcela muito mais ampla da esfera pública. Os saberes acadêmicos foram desafiados e estimulados por tal movimento. Não é por acaso que nas últimas décadas organizaram-se iniciativas de ensino e pesquisa em economia ecológica, direito ambiental, engenharia ambiental, sociologia ambiental etc. Estabeleceu-se um movimento de mão dupla, em que as produções científicas influenciaram e foram influenciadas pelas ações públicas.
A cena política, porém, não é suficiente para explicar a emergência de um enfoque ambiental na pesquisa histórica. Os historiadores ambientais foram também desafiados por movimentos internos ao mundo do conhecimento, especialmente por importantes mudanças epistemológicas consolidadas no século XX, mas que já estavam em gestação nos séculos anteriores, em relação ao entendimento do mundo natural e de seu lugar na vida humana. Três mudanças merecem particular atenção: 1) a ideia de que a ação humana pode produzir um impacto relevante sobre o mundo natural, inclusive ao ponto de provocar sua degradação; 2) a revolução nos marcos cronológicos de compreensão do mundo; e 3) a visão de natureza como uma história, como um processo de construção e reconstrução ao longo do tempo.
O que caracteriza a discussão ambiental na cultura contemporânea não é a forte atenção para o tema da natureza. Ela sempre foi uma categoria central do pensamento humano, ao menos na cultura ocidental, desde a Antiguidade (não entrarei aqui na interessante discussão sobre a universalidade ou não do conceito de “natureza”). De maneira geral, na medida em que as sociedades humanas se territorializaram – construindo seus ambientes a partir de interações com espaços concretos de um planeta que possui grande diversidade de formas geológicas e biológicas -, emergiram incontáveis exemplos de práticas materiais e percepções culturais referidas ao mundo natural. A produção de um entendimento sobre esse mundo tornou-se um componente básico da própria existência social.
Clarence Glacken (1967), em seu monumental estudo sobre a história das concepções intelectuais sobre a natureza no mundo ocidental, da Antiguidade clássica ao século XVIII, constatou que virtualmente todos os pensadores foram obrigados a enfrentar o tema, tendo por base três grandes indagações: É a natureza, tal qual ela se apresenta na Terra, dotada de sentido e propósito? Possui essa natureza, especialmente o lugar onde cada sociedade habita, uma influência sobre a vida humana? Foi a realidade da Terra, em sua condição primordial, modificada pela ação histórica do homem? Os resultados da investigação de Glacken deixam claro que as duas primeiras perguntas dominaram amplamente a reflexão filosófica e científica até o século XVIII. Tratava-se de entender como a natureza influenciava a história humana e não o contrário. Algumas elaborações sobre a terceira pergunta apareceram no que se refere aos melhoramentos da paisagem a partir das artes e do trabalho. Mas o tema da capacidade da ação humana para degradar, ou mesmo destruir, o mundo natural é essencialmente moderno (ibidem, p.viii).
A modernidade da questão ambiental – da ideia de que a relação com o ambiente natural coloca um problema radical e inescapável para a continuidade da vida humana – deve ser entendida em sentido amplo. Ela não está relacionada apenas com as consequências da grande transformação urbano-industrial que ganhou uma escala sem precedentes a partir dos séculos XIX e XX, mas também com uma série de outros processos macro-históricos que lhe são anteriores e que com ela se relacionam (dentro do jogo de continuidades e descontinuidades que caracteriza os processos históricos). É o caso da expansão colonial europeia e da incorporação de vastas regiões do planeta, uma grande variedade de territórios e ecossistemas, a uma economia-mundo sob sua dominância. E também da institucionalização da ciência como um modo privilegiado de entendimento do mundo, com pretensão de universalidade e capacidade para estabelecer redes planetárias de investigação e troca de informações. A proposta de comparar regiões, produções naturais, economias e culturas – de constituir um saber geográfico planetário – é fundamental para entender a emergência de uma preocupação com os riscos da ação humana. A própria ideia de colapso, de destruição do futuro, começa a aparecer nesse contexto (Pádua, 2002).
As observações empíricas das consequências de uma ação humana devastadora, seja na Europa, seja no mundo de expansão colonial, começaram a produzir denúncias contra o desflorestamento, a erosão dos solos, a sedimentação dos rios etc. As pesquisas de Richard Grove (1995) demonstraram que os assentamentos europeus no mundo tropical, incluindo o período posterior às independências, se tornaram um espaço privilegiado para esse tipo de preocupação, na medida em que a rápida transformação das áreas florestais em monoculturas e minas geravam modificações ambientais “à flor da terra”, por assim dizer. Mas tais observações empíricas não se tornariam tão “evidentes” sem modificações no plano da percepção e do conhecimento. A ciência iluminista começava a falar em “sistemas naturais” interdependentes, na importância de cada espécie para a manutenção do todo natural, na relevância das florestas para a conservação da umidade e da saúde do território. Um texto publicado em 1760 pelo naturalista sueco Lineu, em conjunto com H. Wilcke, afirmava que “a partir do que nós sabemos, é possível julgar quão importante é cada uma das disposições da natureza, de forma que…se uma única função importante faltasse no mundo animal, nós poderíamos temer o maior desastre no universo” (Linné, 1972, p.118). Tais construções científicas se somaram ao nascimento da sensibilidade pré-romântica e romântica, que estimulou uma nova valorização do mundo natural a partir da estética do sublime (Pádua, 2005).
Não se trata, por certo, de traçar uma linha direta entre a crítica ambiental que começava a aparecer nos séculos XVIII e XIX, utilizando categorias e vocabulários próprios da época, e o fenômeno do ambientalismo contemporâneo. Não é o caso de buscar “precursores”. Mas sim de analisar um movimento histórico mais amplo e difuso: a construção da sensibilidade ecológica no universo da modernidade. De toda forma, o ponto fundamental, no contexto do presente artigo, é observar como naquele caldo de cultura, aqui apresentado de forma muito breve, começaram a aparecer reflexões históricas sobre as consequências ambientais do agir humano. Tais reflexões, aliás, vão ter uma presença mais marcante nos ensaios de naturalistas e pensadores políticos do que nos trabalhos das primeiras academias de história, muito voltados para a trajetória de grandes personagens e Estados nacionais. Um marco frequentemente mencionado foi o livro Man and nature or physical geography as modified by human action do diplomata norte-americano George Perkins Marsh (1965), publicado em 1864. Esse trabalho, bastante concentrado no contexto europeu e mediterrânico, procurava passar em revista as transformações provocadas pela ação humana, desde a Antiguidade, na flora e na fauna, nas florestas, nas águas e nas areias, tendo como eixo central a denúncia da destruição. Nas palavras sugestivas do autor, estávamos “quebrando o piso, as vigas, as portas e as janelas do nosso lugar de moradia” (Marsh, 1965, p.52).
É possível encontrar exemplos interessantes desse tipo de percepção no contexto cultural brasileiro, mesmo em momentos anteriores ao de Marsh. José Bonifácio de Andrada e Silva (1991, p.172), por exemplo, ao escrever em 1815 sobre o problema da perda de bosques em Portugal, adotou uma perspectiva histórica ampla para afirmar que
todos os que conhecem por estudo a grande influência dos bosques e arvoredos na economia geral da natureza sabem que os países que perderam suas matas estão quase de todo estéreis e sem gente. Assim sucedeu a Síria, Fenícia, Palestina, Chipre, e outras terras, e vai sucedendo ao nosso Portugal.
A visão de que a forte aridez e desertificação de algumas regiões do Oriente Médio foi, ao menos em grande parte, produzida pela ação humana na longa duração vem sendo corroborada por pesquisas recentes no campo da história ambiental. Algo semelhante pode ser dito do território da Líbia, antigo fornecedor de grãos para Roma. O avanço do deserto foi impulsionado por práticas agrícolas destrutivas (Hughes, 1981). É interessante observar que mais tarde, já de volta ao Brasil e no contexto pós-independência, José Bonifácio de A. e Silva (1973, p.103) retomou a leitura histórica dos problemas ambientais ao defender que a continuidade de uma agricultura escravista e tecnologicamente rudimentar acabaria por transformar “o nosso belo Brasil”, em “menos de dois séculos”, nos “paramos e desertos áridos da Líbia”.
O ponto essencial, portanto, não estava na mera constatação de exemplos históricos relativamente distantes, mas sim na possibilidade de sua replicação onde quer que se adotem padrões semelhantes de uso destrutivo da terra. Um raciocínio parecido, para buscar outro exemplo, será feito, em 1860, pelo jurista cearense Tomás Pompeu de Sousa Brasil (1860). Ao discutir o problema das secas na região, ele adotou o mesmo enfoque histórico de grande amplitude:
a história aí está apresentando tristes documentos da verdade desta lei eterna, de que o país mais fértil, abundante e rico pode ser convertido em charneca estéril e solidão inabitável se a imprudência humana o desguarnecer das matas que fazem a condição da sua uberdade e a benignidade do seu clima.
Era o caso, entre vários exemplos por ele citados, da destruição das matas do Atlas, na Berbéria, que “arruinaram a África do Norte, antigamente o celeiro da Itália”. O mesmo se dava no contexto da história local, pois
se compulsassem os documentos que existem sobre o estado físico do Brasil no tempo de sua descoberta, no século XVI, e nas diversas épocas da sua história, e até pela simples comparação das porções do seu território aplicadas à cultura do açúcar com as que se desenvolveu a do algodão, poder-se-ia provar a influência que exerce a ação do homem sobre o clima das terras que habita, e demonstrar a verdade deste princípio enunciado há quarenta anos por Fourier, que a atmosfera é um campo suscetível de cultura. (ibidem, p.64, 88)
Não é o caso de afirmar que esses autores estavam praticando uma historiografia “ambiental”. Mas uma percepção histórica sobre processos de mudança ambiental, produzidos por uma interação entre fatores humanos e naturais, estava sendo claramente delineada. Muitos outros exemplos poderiam ser buscados, dentro e fora do Brasil. Variações relacionadas com a mudança epistemológica mais ampla que foi mencionada antes: o juízo de que a ação humana pode interferir no meio natural, até mesmo provocando desastres. Um juízo que, obviamente, continuou se difundindo nos séculos seguintes, atingindo uma presença inédita no tempo presente. A história ambiental emergente no final do século XX, no entanto, é bem mais complexa do que um inventário diacrônico dos males infringidos pelos seres humanos ao planeta. Ela incorpora outras transformações teóricas que merecem ser discutidas com destaque, até mesmo por desconstruírem a imagem fortemente dualista presente na frase anterior.
Natureza e humanidade como movimento e transformação
O conceito grego de Physis, depois traduzido para o latim como Natura, está ligado à imagem de nascer, surgir, manifestar. A palavra “natureza”, segundo Raymond Williams (1983, p.219), é “provavelmente a mais complexa da linguagem humana, uma palavra que carrega, através de um longo período, muitas das maiores variações do pensamento humano”. Sua definição clássica, sintetizada por Aristóteles, é um exemplo de combinação entre simplicidade e poder conceitual, apesar de fundada em um forte dualismo. As coisas naturais seriam aquelas que existem por si mesmas, no sentido de possuir em si mesmas o princípio do seu movimento e repouso. Elas incluem matérias, configurações e formas que se apresentam à percepção humana como natureza (Aristóteles, 2002, p.59, 61).
Quando o observador humano contempla a realidade da existência, percebe que a esmagadora maioria das coisas que existem, incluindo os fundamentos do edifício material que permite que elas existam, não são criações humanas. Ou seja, para o observador humano elas existem por si mesmas, em termos tanto de materialidade quanto de organização. As espirais das galáxias, o Sol, a Lua, a textura das plantas, os ciclos da água, a fisiologia dos organismos – incluindo, por certo, o nosso próprio corpo mamífero e primata -, nada disso é criação humana, ao menos em sentido primário. Sua existência, sua forma e seu movimento não surgiram a partir do nosso arbítrio.
O espanto da palavra Natureza está em unificar conceitualmente as incontáveis manifestações de uma realidade extremamente complexa e diversificada, produzindo uma aproximação entre o mais distante e o mais próximo, doBig Bang ao gato da casa. Na história do pensamento ocidental, ela veio assumindo um sentido cada vez mais vasto e inclusivo. Não apenas o conjunto das coisas e movimentos naturais, mas também o caráter e a qualidade essencial de cada coisa e, em um sentido ainda mais amplo, a força inerente que dirige o universo (Williams, 1983, p.219).
Para o entendimento humano, se é que se pode falar de forma tão generalizada, o conceito de Natureza apresenta uma clara ambiguidade, que passou por várias metamorfoses ao longo da história. De um lado, a ideia de natureza serve como uma espécie de eixo conceitual que dá sentido ao nosso entendimento do universo. Ela fundamenta a construção conceitual da experiência de que existe coerência ontológica no mundo em que vivemos. Por sua vez, a imagem de ser humano e de história humana se construiu em grande parte por oposição à natureza: arte versus natureza; ordem social versus natureza; técnica versus natureza; espírito versus natureza etc. Em outras palavras, um conjunto de oposições que procuram demarcar, por diferenciação ou por identificação, a especificidade do fenômeno humano em relação à natureza (seja afirmando uma oposição e ruptura radical entre ambos, seja entendendo o humano como uma qualificação especial no contexto do mundo natural).
Esse quadro, aqui apresentado de forma extremamente introdutória, tornou-se ainda mais complicado mediante duas mudanças epistemológicas que vêm revolucionando o nosso entendimento da natureza e possuem implicações evidentes para a história ambiental. A primeira delas se refere a uma enorme ruptura dos antigos marcos cronológicos. Vale lembrar, com Keith Thomas (2001, p.201), que no século XVIII a cronologia bíblica, ao menos da forma como era interpretada nos meios eclesiásticos, começou a sofrer fortes abalos. O naturalista francês Buffon foi capaz de imaginar que a Terra já existia “uns 70 mil anos” antes do aparecimento do homem. Um pouco depois, por volta das primeiras décadas do século XIX, os geólogos já pensavam o planeta na escala dos milhões, não dos milhares, de anos. Ora, esses números servem mais que tudo para dimensionar a magnitude da revolução que está sendo mencionada. Hoje se trabalha com uma história geológica de 4,5 bilhões, assim como com uma história biológica, desde o aparecimento da vida na Terra, de 3,5 bilhões de anos. Mais ainda, trabalha-se com uma história cósmica, a partir do chamado Big Bang, de 13,7 bilhões de anos, que teria resultado, segundo estimativas recentes, na existência de mais de 100 bilhões de galáxias, cada uma delas contendo entre 100 e 200 bilhões de estrelas. As ciências físicas e naturais não cessam de explodir seus limites, gerando uma profunda mudança nos modos de entendimento do mundo. Para ficar apenas no nosso campo de experiência imediata, o planeta Terra se revela cada vez mais como uma realidade antiga, poderosa e diversificada, que já sofreu gigantescas transformações biofísicas ao longo de sua trajetória. Por ele já passaram inúmeras formas de vida, das quais a espécie humana é uma das mais recentes (Christian, 2003).
É irônico observar que, nesse contexto intelectual revolucionário, os modelos dominantes de pesquisa e o ensino da História insistem em se manter, quando muito, no que até o século XIX, e ainda hoje em alguns círculos fundamentalistas, pode ser definido como “tempo bíblico” da história (um horizonte de seis mil anos). A compreensível tradição de centralidade dos documentos escritos, fortemente ligados aos estratos urbanos da experiência histórica da humanidade, não pode mais servir como desculpa para uma atitude tão conservadora. A antropologia biológica está situando a emergência da atual espécie humana (Homo sapiens) na escala dos 200 mil anos. O fenômeno humano, contudo, de difícil definição, talvez possa ser retrocedido para mais de dois milhões de anos antes do presente, com a emergência do Homo habilis na África Central. A história humana antes do aparecimento das primeiras civilizações dotadas de escrita, exatamente o contexto do “tempo bíblico”, é de longuíssima duração. Não é mais possível pensar a emergência física, mental e social dos seres humanos – passando por transformações tão radicais como a adoção da agricultura e da sedentarização, por volta de onze mil anos atrás – através da nebulosa da “pré-história”.
A revolução cronológica nas ciências naturais produziu grande impacto epistemológico nos historiadores ambientais, que vêm buscando metodologias que permitam investigar a história humana em um marco temporal mais amplo. Ou seja, a repensar o lugar do ser humano no quadro mais amplo da história do planeta. Não se trata, por certo, de sempre trabalhar na longuíssima duração. Pode-se fazer história ambiental de períodos relativamente curtos. Mas sempre tendo em mente, ao menos como pano de fundo, a presença de grandes escalas na constituição dos fenômenos que estão sendo analisados. Seja no aspecto natural – com as realidades biofísicas de cada região demarcada para um trabalho de pesquisa -, seja no da formação de populações e sociedades humanas que nela e com ela interagem.
A explosão cronológica vem sendo acompanhada por uma outra mudança epistemológica ainda mais instigante para o diálogo entre ciências sociais e ciências naturais. A natureza se apresenta cada vez mais como algo em permanente construção e reconstrução ao longo do tempo, distante da visão tradicional de uma realidade pronta e acabada, que serviria de referencial estável para a agitação do viver humano. Poder-se-ia usar a imagem de uma peça de teatro, em que o cenário serve de contexto passivo para o dinamismo contido na movimentação dos atores. A partir de certo momento, porém, o cenário começa a se movimentar e a se modificar de maneira intensa e surpreendente, forçando o reconhecimento da sua presença ativa. A peça passa a ser uma interação entre os movimentos do cenário e os movimentos dos atores. A diferença, em relação ao contexto científico contemporâneo, é que o cenário sempre esteve em movimento, tendo a mudança ocorrido na percepção subjetiva dos atores.
William McNeill (2001), um dos decanos da world history norte-americana, escrevendo sobre as relações entre história e teoria evolucionista, descreveu, com certa ironia, sua experiência pessoal diante das transformações epistemológicas recentes nas ciências naturais, incluindo os diversos ramos da física. Segundo o autor, no período da sua formação intelectual, na década de 1930, elas ainda pareciam sólidas e duras em sua fundamentação teórica e capacidade de predição, enquanto as ciências sociais, especialmente a história, eram fracas e tateantes em suas conclusões. Na virada do milênio, o conjunto das ciências naturais vem assumindo posições cada vez mais abertas e soft, em vez de hard, produzindo a imagem de um universo
dinâmico, histórico, ocasionalmente caótico, no qual mudanças extraordinárias de estado acontecem de maneira imperfeitamente previsível, e o papel do observador em moldar o que é observado se torna tão presente quanto a subjetividade que sempre marcou a história e as ciências sociais.
A perspectiva da história, nesse sentido, vem crescendo no conjunto das ciências, “compartilhando perplexidades e limitações”. Nesse contexto, a difusão da “visão de mundo evolucionária” produz uma “convergência entre as histórias cósmica, terrestre, biológica e humana – todas fazendo parte de uma totalidade em permanente transformação” (ibidem, p.2).
Em outras palavras, as formações da natureza estão sendo entendidas como configurações momentâneas de uma história de mudanças ao longo do tempo, cujo destino final é desconhecido, mesmo que muitas vezes elas pareçam infinitamente sólidas na sua temporalidade específica, por existirem numa escala muito superior ao do limitado “tempo social” humano.
Existe uma história bastante complexa na construção dessa mudança epistemológica, cujos diferentes aspectos não poderiam ser elucidados no âmbito de um artigo.3 Em linhas gerais, ela passa pela transformação da ideia de história natural – de uma descrição organizada do mundo vivo, segundo a tradição clássica, para a visão da própria natureza como história. A difusão da tese darwiniana no século XIX foi um passo fundamental, acabando por influenciar o conjunto das ciências. Em certos aspectos, de fato, ela apresentou uma leitura radicalmente histórica e aberta da formação dos seres vivos, além de explicitar o tema, até hoje difícil, da animalidade da espécie humana. A árvore da evolução seria uma construção dos próprios seres vivos que, em sua luta pela existência em ambientes específicos, se ramificariam ou não em novas formas de vida. Um conjunto de pequenas variações na vida concreta, portanto, em vez de uma razão subjacente e superior, estaria na base dessa vasta construção biológica (Norris, 1985, p.26). Nessa perspectiva, o próprio conceito de natureza poderia ser visto como quase metafórico. Em uma passagem da Origem das espécies, de 1859, Darwin (1958, p.88) chegou a afirmar que “é difícil evitar a personificação da palavra Natureza; mas por Natureza eu entendo apenas a ação agregada e o produto de muitas leis naturais, e por leis a sequência dos eventos tais quais atestados por nós”.
É importante observar, no entanto, que o entendimento das implicações científicas e sociais da obra de Darwin nunca foi homogêneo. Desde o início, foram feitas leituras bem mais fechadas e dogmáticas da tese darwiniana, até mesmo valendo-se de passagens igualmente mais fechadas dos seus próprios escritos, que não deixaram de pagar tributo aos preconceitos do seu tempo (ainda mais em se tratando da Inglaterra imperial e vitoriana). O evolucionismo foi usado posteriormente como fundamentação para reducionismos, determinismos e racismos, até mesmo por meio da ideia vulgar de que as formas biológicas se tornam superiores ao longo de uma escala de tempo (uma imagem que pode ser considerada incompatível com o caráter aberto da tese darwiniana original).4
O século XX, porém, testemunhou o aparecimento de novas formulações teóricas, ainda mais surpreendentes, que contribuíram para consolidar a ideia da irreversibilidade e da seta do tempo, poder-se-ia mesmo dizer “da história”, como um componente fundamental no entendimento da Natureza. Um marco radical nesse sentido está na visão muito recente, formulada com mais propriedade a partir da década de 1940, de que o próprio universo – antes visto como o bastião último da firmeza e solidez da natureza – se manifesta mediante um processo de expansão e de transformação permanente.
Tudo isso tem implicações teóricas profundas para um problema frequentemente lembrado quando se fala de história ambiental: a ameaça do determinismo geográfico ou ecológico. Ora, a longa tradição que fala das determinações da natureza, especialmente do clima, sobre a vida social, calcava-se exatamente em visões fixas e definidas das suas manifestações. Desde as primeiras formulações de Hipócrates no século V a.C. – que no livroAres, águas e lugares atribuiu a superioridade do modo de vida europeu em relação ao asiático à influência das condições naturais -, o pano de fundo do determinismo baseou-se na presunção de uma firme estabilidade dessas condições (Arnold, 1996, p.15). Ocorre que a meteorologia contemporânea, com seu enfoque historicizante e suas investigações de longa duração, revela que o clima de cada região sofre grandes variações no curto e no longo prazo. O mesmo pode ser dito da vegetação e de outros componentes do mundo natural.
Dito de outra maneira, ao dialogar hoje com as ciências naturais, a história ambiental se situa em um contexto teórico muito diferente daquele que alimentou as formulações deterministas do passado. Sem falar na herança teórica de toda a crítica interna produzida nas ciências sociais em relação aos riscos dos reducionismos geográfico, biológico etc. As ciências naturais adquiriram maior sofisticação teórica, calcando-se em finas metodologias ecológicas, radicalmente abertas e interativas. Os sistemas naturais se auto-organizam por meio da constante interação entre todos os seus elementos, bióticos e abióticos. O caminho é feito ao andar (para lembrar o belo verso de Antonio Machado). As consequências de tal interação, por sua vez, são abertas, podendo, no limite, levar ao colapso, ou então à emergência de formas mais resilientes de organização. A presença do caos, do acaso e da contingência ganha força nas análises. A própria ideia de “adaptação” vem sendo questionada por sua rigidez analítica, com o fortalecimento de conceitos como “coevolução” e “mútua construção de nichos”, entre outros (Jantsch, 1980; Maturana & Varela, 1987; Prigogine & Stengers, 1985). A visão de uma natureza em permanente movimento e transformação ao longo do tempo, obviamente, não favorece a capacidade de persuasão de teorias deterministas (mesmo que elas ainda possam existir nos quadros do grande politeísmo teórico da atualidade). É nesse ambiente teórico renovado, na virada do século XX para o XXI, que a história ambiental procura repensar, na definição de Elinor Melville e Guillermo Castro, “as interações entre os sistemas sociais e os sistemas naturais, e as consequências dessas interações para ambas as partes, ao longo do tempo” (Castro, 2007).
Natureza e cultura na experiência histórica: por uma visão menos dualista
O aparecimento da história ambiental consciente de si mesma está ligado a uma ausência da dimensão biofísica em boa parte da historiografia contemporânea. Ainda existe, de fato, uma presença muito forte do enfoque que já foi chamado de “flutuante”, no sentido de a humanidade flutuar acima do planeta, como se os seres humanos não fossem animais mamíferos e primatas, seres que respiram e que precisam cotidianamente se alimentar de elementos minerais e biológicos existentes na Terra. Como se não fossem, em verdade, seres que, mais do que estabelecer “contatos” pontuais, vivem por meio do mundo natural, dependendo dos fluxos de matéria e energia que garantem a reprodução da atmosfera, da hidrosfera, da biosfera, e assim por diante. Mesmo que, na sutil observação de Alfred Crosby (1995, p.1177), a presença dos humanos nos ecossistemas ocorra na maior parte das vezes de maneira “distraída”. O reconhecimento desse fato, contudo, seria simplório e vulgar se não reconhecesse também as outras dimensões do fenômeno humano, incluindo a realidade de que o ser humano histórico está tão inescapavelmente imerso na cultura e na linguagem quanto na ecosfera terrestre.
Em um texto de 1944, comentando o livro Les bases biologiques de la géographie humaine, de Maximilien Sorre, Fernand Braudel (1992, p.144, 151) discutiu o exercício fascinante de pensar o homem em sua simples materialidade animal, em sua condição de “homeotermo de pele nua”, em seu
lado elementar de ser biológico, sensível ao quente, ao vento, ao frio, à seca, à insolação, à insuficiente pressão das altitudes, ocupado incessantemente em procurar e em assegurar sua alimentação, obrigado a defender-se enfim, sobretudo hoje em que se tornou consciente do perigo, contra as doenças que o seguem por toda parte.
Um tipo ideal que nos desafia, por apresentar um aspecto fundamental e tantas vezes esquecido, voluntária ou involuntariamente, da realidade humana. Mas um aspecto que não é suficiente, que não conta a história completa. Pois o ser humano, visto dessa maneira, é uma abstração que ignora “o homem na sua complexidade – em toda a espessura de sua história, em toda a sua coesão social” (ibidem).
O grande desafio teórico, no contexto da contemporaneidade, é pensar o ser humano na totalidade tensa e complexa de suas dimensões biológica e sociocultural. Um desafio mantido na obscuridade pela dominância do enfoque flutuante na historiografia. Se bem que tal dominância, até pelo fato de a historiografia não ser um bloco homogêneo, não deve ser exagerada. Alguns historiadores foram capazes de produzir, ao longo do século XX, mesmo no Brasil, análises que incorporaram os fatores biofísicos no coração da análise histórica e que hoje estão sendo recuperadas na genealogia da história ambiental.
O presente artigo não pretende fazer uma história da historiografia ambiental. Mas, de maneira muito introdutória, no período anterior à década de 1970, podem-se mencionar algumas áreas que estimularam reflexões de base ambiental: a historiografia de regiões, como no caso de Nordeste, de Gilberto Freyre, e de O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II, de Fernand Braudel, e a historiografia da formação de fronteiras de expansão territorial, como no caso de The great plains, de Walter Prescott Webb, Caminhos e fronteiras, de Sérgio Buarque de Holanda, e The grassland of North América, de James Malin. Alguns outros trabalhos da diversificada produção da Escola dos Analles francesa são sempre mencionados, especialmente La Terre et l’évolution humaine, de Lucien Febvre, Les caracteres originaux de l’histoire rurale française, de Marc Bloch, eHistoire du climat depuis l’An Mil, de Emmanuel Le Roy Ladurie. Grove & Damodaran (2009) chamaram a atenção para a necessidade de ir além da produção especificamente historiográfica, mencionando a relevância de geógrafos históricos do século XX, como Carl Sauer, H. C. Darby e Gordon East, na construção de um diálogo fecundo entre história e ecologia. Um seminário interdisciplinar ocorrido na Universidade de Chicago, em 1955, também marcou época, dando origem ao volume coletivo Man’s role in changing the face of the Earth, organizado por William Thomas Jr.
Apesar desses esforços, porém, a dominância do enfoque flutuante não pode ser negada. Em parte ela se constituiu como reação à forte presença do determinismo geográfico e biológico no pensamento social da passagem do século XIX para o XX. Pode-se dizer que os cientistas sociais do período posterior, muitas vezes, não se deram conta das fortes mudanças epistemológicas pelas quais passavam as ciências naturais e sua compreensão do seja a natureza. É preciso levar em conta, além disso, a robusta elaboração teórica culturalista que ganhou força no conjunto das ciências sociais, sem nunca obscurecer totalmente os enfoques mais radicalmente materialistas. No campo da antropologia, como afirmou, com certa ironia, Walter Neves (1996, p.13), os eixos da “antropologia da barriga” e da “antropologia da pensée“, que também poderíamos chamar da pança e do pensamento, seguiram trajetórias paralelas e muitas vezes conflituosas.
A experiência de muitos historiadores que hoje trabalham com a dimensão ambiental, compartilhada por antropólogos, economistas e demais cientistas sociais que adotam o mesmo enfoque, é justamente a da necessidade de buscar formas menos dualistas de estudo das relações entre cultura e natureza (já que o não dualismo é um tipo ideal de realização analítica quase utópica). As pesquisas de campo e as transformações na vida social contemporânea estimulam a busca por essas novas perspectivas. Como afirmou Eduardo Viveiros de Castro (2002, p.320), refletindo sobre a questão da Amazônia,
essas novas imagens da natureza e da sociedade se formam em um contexto histórico marcado pela sinergia entre abordagens estruturais e históricas, por uma tentativa de superação de modelos explicativos monocausais (naturalistas ou culturalistas) em favor de uma apreensão mais nuançada das relações entre sociedade e natureza.
Elas indicam, além disso, a esperança de uma “nova síntese”, que seja capaz de “vir integrar o conhecimento acumulado pelas diversas disciplinas” (ibidem).
A busca por essa “apreensão mais nuançada” requer o reconhecimento do sentido profundo do culturalismo. A literatura teórica em história ambiental vem chamando atenção para a necessidade de, ao enfatizar a relevância do mundo biofísico, não cair na falácia de considerar que este se apresenta de forma direta, positiva e imediata à percepção humana. O ser humano age sempre a partir de sentidos e compreensões, estando imerso na linguagem, nos mecanismos de cognição e na presença de visões culturais historicamente construídas. A apropriação dos recursos da natureza e a valoração das paisagens, nesse sentido, possuem uma clara historicidade (Cronon, 1996; Asdal, 2003). Basta lembrar que o ouro não possui valor econômico universal, sendo irrelevante, por exemplo, para os grupos indígenas que cruzavam o território da atual Serra do Espinhaço antes da chegada dos europeus. Para estes últimos, ao contrário, sua centralidade motivou esforços e sacrifícios consideráveis no estabelecimento da mineração colonial. As praias, por sua vez, não são universalmente consideradas espaços de beleza e saúde. No Brasil monárquico, de maneira geral, elas eram desprezadas pelas elites urbanas. Não obstante esse reconhecimento, seria igualmente falacioso esquecer que o ouro e as praias não são criações humanas em sentido primário, e que, ademais, sem a sua existência material, também não existiriam as suas dimensões perceptiva e cultural.
No acontecer da vida social, na vida vivida que a história procura imperfeitamente reconstruir, todos esses elementos se encontram profundamente unidos e mesclados na experiência coletiva. Uma via teórica fascinante, na busca por leituras menos dualistas, se abre quando a ecologia da auto-organização afirma que a tese culturalista de que os seres humanos constroem o mundo a partir da sua percepção e da sua cultura deve ser ampliada em dois sentidos. Em primeiro lugar, os humanos não constroem seu mundo apenas por meio do pensamento, mas também por meio do corpo e do conjunto do organismo. O conjunto do organismo está presente na construção da subjetividade. Em segundo lugar, algo semelhante pode ser dito de todos os seres vivos, pelo menos a partir de certo nível de complexidade. Todos esses seres constroem o seu mundo a partir da experiência, envolvendo organismo e percepção, mesmo que o domínio da linguagem e da cultura, com a amplitude e as características sintéticas observadas no ser humano, não esteja presente. Cada ser constrói o seu mundo e o mundo coletivo se constrói por meio de uma trama complexa de interações e interdependências (Maturana & Varela, 1987).
O fio da navalha teórico, no caso das ciências sociais, está no reconhecimento dessa pluralidade de dimensões naturais e culturais que de, alguma forma, se resolvem e encontram seu sentido na prática coletiva dos seres humanos. A insistência no dualismo falha em compreender as nuanças de um movimento altamente dinâmico. As pesquisas de campo e as transformações sociais contemporâneas convergem no sentido da busca de teorizações mais abertas. Cada vez se percebe mais a presença da história humana na constituição de paisagens “naturais”. Ao mesmo tempo, nota-se a forte diversidade das formas de percepção cultural do mundo biofísico e de sua relação com a vida humana, seja em sentido diacrônico, seja em sincrônico. No mundo industrial avançado, por sua vez, as novas tecnologias penetram nos processos da natureza de forma impensável no passado. Seja do ponto de vista epistemológico, seja do ponto de vista político, a percepção da unidade viva entre sistemas naturais e humanos se torna cada vez mais necessária. Um horizonte teórico, nas palavras de dois antropólogos que estão na linha de frente desse esforço de renovação conceitual, em que “estados e substâncias são substituídos por processos e relações; a questão central não é mais como objetivar sistemas fechados, mas sim como dar conta da diversidade mesma dos processos de objetivização” (Descola & Pálsson, 1996, p.12).
É nesse contexto que a história ambiental, como bem afirmou Donald Worster (1991, p.199), deve ser vista não como uma redução, e sim como uma ampliação da análise histórica. Ela leva adiante o movimento, observado desde o final do século XIX, no sentido de expandir as temáticas e dimensões da historiografia para além da história dos Estados e dos grandes personagens. Um movimento que se manifestou na história econômica, na história social, na micro-história etc. Não se trata, portanto, de reduzir a análise histórica ao biofísico, como se esse aspecto fosse capaz de explicar todos os outros, mas de incorporá-lo de maneira forte – junto com outras dimensões econômicas, culturais, sociais e políticas – na busca por uma abordagem cada vez mais ampla e inclusiva de investigação histórica. O crescimento acadêmico recente da história ambiental, ao menos em parte, se explica exatamente por sua capacidade concreta para ampliar a análise histórica e trazer novas perspectivas para o estudo de antigos problemas historiográficos.
Para realizar esse programa, mesmo que com as limitações sempre presentes na escrita da história, as propostas mais fecundas têm sido aquelas que procuram definir a história ambiental como um esforço para trabalhar analiticamente, de forma aberta, dinâmica e interativa, três dimensões básicas que se mesclam na experiência concreta das sociedades. Arthur McEvoy (1986), em seu estudo sobre as indústrias pesqueiras na Califórnia, sintetizou esses três níveis por meio das palavras ecologia, relações econômicas e cognição humana. Em um artigo clássico de 1988, publicado no Brasil em 1991, onde procurou sintetizar os principais elementos do “fazer história ambiental”, Worster (1991) elaborou com mais profundidade esses três níveis que, vale repetir, precisam ser percebidos em conjunto, em suas interações mútuas e múltiplas linhas de causalidade.
O primeiro deles se relaciona com a natureza propriamente dita, orgânica e inorgânica, incluindo o organismo humano em sua relação com os diferentes ecossistemas. O historiador deve estar atento, nesse aspecto, às transformações do mundo biofísico ao longo do tempo, buscando reconstituir os ambientes do passado (que se relacionem com os lugares e períodos históricos que estão sendo estudados). A perspectiva interdisciplinar é aqui fundamental, já que, sem o diálogo com as ciências físicas e naturais, tal esforço de reconstituição se tornaria inviável. Nesse diálogo, porém, é importante perceber a historicidade e diversidade teórica das várias ciências, para que sua incorporação ocorra de maneira crítica e contextual.
A leitura histórica dos fatores ecológicos, do primeiro nível que aqui está sendo discutido, apresenta muitas nuanças interpretativas. A visão apresentada por Fernand Braudel (1995, p.25) em 1949, por exemplo, sobre “uma história quase imóvel, que é a do homem nas suas relações com o meio que o rodeia, uma história lenta, de lentas transformações, muitas vezes feita de retrocessos, de ciclos sempre recomeçados” – em contraposição à maior velocidade dos movimentos sociais e individuais – vem sendo cada vez mais criticada. Apesar de possuir o mérito da inclusividade, dando status de objeto histórico às montanhas, planícies, praias e ilhas da região, ela peca pela visão excessivamente estática do biofísico em sua interação com as ações humanas. A diversidade da pesquisa contemporânea em história ambiental está revelando situações de ruptura, de catástrofe e de mudanças intensas no âmbito dessa relação, tanto na curta quanto na longa duração (Arnold, 1996, p.44).
O segundo nível diz respeito à constituição socioeconômica das sociedades, em sua inter-relação necessária com determinados espaços geográficos. Por influência direta de Marx, Worster utilizou o conceito de “modos de produção”, alertando para a necessidade de compreendê-los mediante uma perspectiva histórica e antropológica ampla, incluindo em sua conexão estreita com os fatores ecológicos. A cultura material, os meios tecnológicos, a “segunda natureza” produzida pela ação humana inserem-se nesse nível de análise. É nesse plano, também, que James O’Connor (1997) elaborou sua leitura marxista da história ambiental, chamando atenção para o conceito de “condições de produção” – para além das formas de propriedade e das relações de produção – e para as contradições presentes no movimento de mercantilização imperfeita do trabalho, da terra e da natureza.
O terceiro grande nível mencionado por Worster, finalmente, diz respeito às dimensões cognitivas, mentais e culturais da existência humana, incluindo cosmologias, ideologias e valores. O comportamento social dos seres humanos em relação ao mundo natural, assim como a própria estruturação socioeconômica da vida coletiva, passa pelas visões de natureza e dos significados da vida humana. Pode-se dizer, em sentido inverso, que as manifestações culturais não ocorrem isoladas do mundo vivo, valendo-se frequentemente de elementos da biodiversidade e da experiência física no planeta ou, melhor dizendo, de lugares específicos do planeta, na constituição da linguagem e das categorias de entendimento. Na experiência histórica concreta, para lembrar belas palavras de Claude Lévi-Strauss (1986, p.173), cabe
recusar o divórcio entre o inteligível e o sensível, decretado por um empirismo e um mecanicismo fora de moda, e descobrir uma secreta harmonia entre esta pesquisa do sentido, a que a humanidade se entrega desde que existe, e o mundo em que ela apareceu e onde continua a viver: um mundo feito de formas, de cores, de texturas, de sabores, de odores.
É essencial, no entanto, evitar o anacronismo e a pretensão de que os indivíduos do passado possam ser cobrados em razão de categorias tão modernas quanto são ecologia, sustentabilidade, impactos da ação humana etc. É preciso entender cada época no seu contexto geográfico, social, tecnológico e cultural. É evidente, como já foi dito, que a questão ambiental só vai aparecer em um momento bastante recente da trajetória humana. Mas pode-se dizer que as relações ambientais já estavam presentes, sendo percebidas, ou não, segundo os padrões culturais de cada período. Não se trata, portanto, de projetar categorias ambientais e ecológicas do presente no passado, mas sim de utilizar essas categorias, com o devido cuidado, para pensar a existência de sociedades pretéritas. Ou então, como na formulação de Alfred Siemens (1999), de “extrair ecologia” de documentos do passado que, obviamente, não tinham esse sentido ou essa justificativa. Tudo se resume, na verdade, no exercício de “qualificação retrospectiva” (Drouin, 1991, p.73) que constitui uma condição geral e um dilema da própria análise histórica.
A história ambiental apresenta-se hoje como um campo vasto e diversificado de pesquisa. Diferentes aspectos das interações entre sistemas sociais e sistemas naturais são esquadrinhados anualmente por milhares de pesquisadores. A produção atual engloba tanto realidades florestais e rurais quanto urbanas e industriais, dialogando com inúmeras questões econômicas, políticas, sociais e culturais. No andamento concreto dessas pesquisas, vários problemas teóricos de micro, médio e longo alcance costumam aparecer (Leibhardt, 1988). Não existiria espaço para apresentar aqui o conjunto dessa literatura, ainda mais em se tratando de um artigo sobre as “bases teóricas” e não sobre as “teorias” da história ambiental.5 A pesquisa em história ambiental, de toda maneira, até pelo próprio fato de ser “ambiental”, não costuma se fazer na abstração das teorias puras, mas sim nas contradições de lugares e experiências vividas. Na maioria das vezes, ela se dá por meio de recortes geográficos e biofísicos concretos: uma região florestal, uma bacia hidrográfica, uma cidade, uma zona agrícola etc. (Drummond, 1991, p.181).
O ponto teórico essencial, de qualquer forma, se encontra na necessidade de combinar, de maneira aberta e interativa, os três níveis mencionados antes. É claro que não se trata de uma tarefa fácil.6 Existe, por exemplo, a tendência de focalizar um nível em detrimento dos outros. Mas, de maneira geral, creio que a história ambiental vem sendo bem-sucedida em construir metodologias que combinem as diferentes dimensões da experiência histórica. Na introdução de um dos livros fundadores da investigação histórico-ambiental, Le Roy Ladurie (1991, p.15, 34) protestou contra o antropocentrismo dos primeiros historiadores do clima, que sempre pretendiam examiná-lo em relação com a vida humana. Ocorre que o clima poderia também ser estudado por si mesmo, como uma “história sem homens”, na medida em que “é uma função do tempo, varia. Está sujeito a flutuações. É objeto de história”. Na sequência da investigação, na medida em que sua relação com a vida humana fosse analisada, estar-se-ia diante de uma “ecologia do homem”, de uma verdadeira “história ecológica”.7 Em uma leitura algo diferente da visão do historiador francês, mesmo que compreendendo o seu ponto de vista, penso que o segundo momento é exatamente aquele em que a pesquisa histórica se torna mais fecunda. A história ambiental, como ciência social, deve sempre incluir as sociedades humanas. Mas também reconhecer a historicidade dos sistemas naturais. O desafio, repetindo, é construir uma leitura aberta e interativa da relação entre ambos.
Tal postura aberta deve significar, em sentido fundamental, o abandono da visão catastrófica e do “homem devastador” que a voz das ruas costuma exigir. Simon Schama (1995, p.13-4) já havia criticado o fato de a história ambiental, apesar de “oferecer algumas das mais originais e desafiadoras histórias que hoje estão sendo escritas”, prender-se excessivamente na análise da destruição, quando as relações entre sociedade e natureza podiam também ser construtivas e criadoras, especialmente no que se refere aos vínculos culturais.
Hoje é possível observar uma mudança nesse quadro. As relações destrutivas e/ou construtivas devem aparecer no próprio andamento da análise, sem leituras preconcebidas ou estereotipadas. Outro ponto central se refere ao problema das influências e determinações causais. As visões fechadas e reducionistas não mais se sustentam. Dizer que a natureza sempre determina a vida social, ou vice-versa, não nos leva muito longe.
O importante é permanecer atento e aberto em cada situação de pesquisa. Em certas situações os fatores biofísicos são decisivos. Em outras a tecnologia ou as visões de mundo podem ser decisivas. Em todas as situações, no entanto, o biofísico, o social e o cultural estão presentes. Nos diferentes casos, o que se percebe são sistemas abertos e que se modificam no andamento da história. Os próprios relacionamentos entre todos os componentes da interação – onde todos são relevantes, mesmo que em diferentes níveis – constroem, destroem e reconstroem inúmeras formas materiais e culturais. No sentido mais profundo, o desafio analítico é o de superar as divisões rígidas e dualistas entre natureza e sociedade, em favor de uma leitura dinâmica e integrativa, fundada na observação do mundo que se constrói no rio do tempo.
Notas
1 É verdade que a expressão já vinha sendo usada ocasionalmente, em um sentido bem distinto e estritamente técnico, por geólogos e arqueólogos. Um curso com o título de “História ambiental”, além disso, foi dado na Universidade de Londres em 1969 por Henry Bernstein, um historiador econômico especializado na questão da navegação a vapor na Índia, incluindo o uso de lenha etc. (Grove & Damodaran, 2009, p.25). Mas foi uma iniciativa isolada, sem maiores desdobramentos teóricos.
2 O ano de 1972, na esteira dos debates e das mobilizações públicas que cresciam desde a década anterior, foi marcado pela realização da primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em Estocolmo (McCormick, 1995, p.119).
3 Para uma boa análise, ver Bowler (1992).
4 Por esse motivo, alguns autores preferem usar o termo “evolucionário”, no sentido de que as coisas nascem umas das outras a partir de movimentos concretos, diferenciando-se da visão evolucionista vulgar de que necessariamente existe uma melhora ao longo do tempo.
5 Para duas apresentações atualizadas da literatura contemporânea em história ambiental, ver McNeill (2003) e Hugues (2006). Para o caso brasileiro, ver Duarte (2005).
6 Para uma leitura crítica, incluindo o ponto de vista da excessiva amplidão da proposta dos três níveis, ver Sorlin & Warde (2007, p.112).
7 Essa última perspectiva foi plenamente assumida por Le Roy Ladurie em seus estudos mais recentes sobre o clima, como se pode perceber no próprio título de sua obra monumental, em três volumes, intitulada Histoire humaine et comparée du climat (publicada em Paris, pela Editora Fayard, nos anos de 2004, 2006 e 2009).
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FONTE : José Augusto Pádua é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É doutor em Ciência Política pelo Iuperj, com pós-doutorado em História pela University of Oxford (Inglaterra).
PADUA, José Augusto. As bases teóricas da história ambiental. EcoDebate, 20/05/2010
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