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A relação dos humanos com o meio ambiente sempre foi marcada por uma concepção mecanicista da vida e pela apropriação dos recursos naturais, ignorando a necessidade de garantir a sua reprodução. E o direito sempre legitimou essas ações predatórias por meio do instituto da propriedade privada.
A análise é de Ugo Mattei, cátedra Alfred e Hanna Fromm de Direito Internacional e Comparativo da Universidade da Califórnia e professor de Direito do Hastings College of the Law, também na Califórnia, e da Universidade de Turim, na Itália. O artigo foi publicado no jornal Il Manifesto, 13-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O protagonista masculino dessa história é Gaio, misterioso autor jurídico romano, que viveu há mais de 2.000 anos e é autor de um livrinho de “Instituições”, talvez um Bignami para aspirantes advogados, cuja estrutura fundamental constitui a ossatura da concepção ocidental do direito privado. Um legado da antiguidade romana que ainda hoje fundamenta, em nível global, a concepção dominante da própria “juricidade”. Gaio representa em toda a sua grandeza a concepção romana do “domínio” como espaço de poder individual formalizado e ilimitado sobre as coisas.
O domínio romano não é aberto a todos. É limitado ao “pater familias”. O pai-patrão tem domínio absoluto sobre os seus bens, sejam eles animados ou inanimados. Como o proprietário hoje pode livremente destruir um bem próprio (ou matar um coelho próprio), assim o “dominus” tinha poderes ilimitados sobre os seus bens, incluindo a propriedade fundiária, e direito de vida e de morte sobre escravos, filhos e mulher. A meu ver, Gaio não é visto como um personagem histórico. É, ao invés, o modelo antropológico pressuposto pela ordem jurídica individualista ocidental, assim como ele chegou, por meio de uma longa e aventurosa história, até a nossa modernidade. Gaio é aqui o indivíduo ocidental dotado de direitos de propriedade privada, êxito hodierno do processo transformativo que chamamos de progresso.
Um mito milenar
Hoje, Gaio dirige um automóvel, tem uma casa própria, mora na cidade, vive sozinho ou em uma família nuclear, se comunica com o celular, vê TV, tem direito de voto e pode comprar bens de consumo para satisfazer cada um dos seus desejos. Gaio é dotado de direitos que formalizam o seu poder de ter. Hoje, a propriedade privada de Gaio não se estende aos escravos, e a sua é formalmente igual a ele.
A protagonista feminina é Gaia, a terra viva, um lugar que, há alguns milhões de anos, hospeda o humano. Gaia, há muito mais tempo, é lugar da vida, um agregado complexo de ecossistemas, de nexos, de comunidades, de redes, de relações, de cooperação e de conflito, de hierarquia, de transformações lentas e de revoluções imprevistas. Os mitos sobre Gaia são complexos e fascinantes e variam através das culturas.
Complexa e fascinante é também a história da relação de Gaio com Gaia. Hoje, o jovem Gaio estuda, a partir da escola primária, a evolução da vida sobre a terra. Darwin domina (por enquanto) a sua percepção, e dali ele retira o sentido do progresso e do crescimento. Os antepassados de Gaio nasceram na África. Gaia lhes ofereceu alimento sob forma de frutos e de caças. Depois, Gaio aprendeu a domesticar os animais, para tirar deles alimento e vestuário. Sucessivamente, cerca de 2.000 anos atrás, Gaio compreendeu que Gaia podia ser induzida a produzir mais alimento do que espontaneamente ofereceria. Intuído o nexo causal entre semeadura e colheita, Gaio se tornou sedentário. Os antepassados de Gaio logo inventaram um direito à posse exclusiva, conhecido como propriedade.
A propriedade servia para remunerar os esforços na caça, na criação e na semeadura. Era preciso definir, por isso, quem estava dentro e quem estava fora. Era preciso evitar que a colheita fosse roubada por quem não tinha se esforçado para arar o campo. Uma ampla literatura apologética da propriedade privada se baseia ainda hoje sobre esse seu nexo moral com o trabalho agrícola.
Depois, menos de 300 anos atrás, Gaio inventou as máquinas e fez a revolução industrial: podia até produzir bens de massa extraindo a energia para fazer isso das vísceras de Gaia. Havia passado cerca de 10.000 anos desde a revolução agrícola. Quando a revolução industrial ocorreu, os escritos do Gaio histórico haviam sido redescobertos há cerca de 700 anos (depois de terem se perdido nos séculos escuros) em uma biblioteca perto de Pisa, e a propriedade privada estava plenamente formalizada, e foi a ordem institucional que a tornou possível. Gaio se tornou patrão das minas, foi industriário e capitalista. Hoje, Gaio fez uma outra revolução: usa o computador, e a sua maior riqueza prescinde de todo contato com um bem material. O mais rico e admirado é o financista, não mais o industriário taylorista.
Entre o aparecimento do homem sobre Gaia e a revolução agrícola, a distância é de milhões de anos. Entre a revolução agrária e a industrial, são milhares. Entre a revolução industrial e a informática de hoje, são poucas centenas de anos. Essa impressionante aceleração histórica exalta Gaio e lhe fez viver um senso de onipotência. Enquanto dirige a sua pick-up supertecnológica (e talvez promovida como ecológica), ele se compraz que os seus filhos de cinco anos sabem se adaptar melhor do que os de 14 à progressão geométrica da tecnologia.
Mas qual relação liga Gaio a Gaia? Em muitas culturas, Gaia é vista como mãe. “Pacha mama”, a mãe terra. Mas Gaio não reconhece essa relação. Para ele, Gaia é um objeto, ou melhor, o objeto por antonomásia do seu “dominium”. Antes da estruturação jurídica da relação de domínio (o chamado domínio quiritário) ocorrida na última parte do primeiro milênio antes de Cristo, Gaia já é uma “condenação” para Gaio. A Bíblia conta que ele foi expulso por causa do pecado da sua mulher. Um Deus masculino expulsa Gaio do Éden e o joga entre os braços de uma nova fêmea, Gaia justamente, com a qual ele será condenado a conviver. Gaia se torna mulher de Gaio? Como se desenvolveu o casamento? Por muito tempo, as coisas funcionaram bem.
A obsessão da posse
Gaio observa Gaia, a corteja, procura compreendê-la, talvez se apaixona por ela. Sabe que é intimamente ligado a ela, sabe que a sua própria vida depende da boa relação que consegue ter com a sua esposa. Adapta a ela os seus comportamentos, a acaricia e extrai prazer dela. Busca respeitar suas amizades, os espaços vitais dos quais Gaia tem necessidade. Gaia é comunitária por natureza, é feita de nexos e é na comunidade ecológica que ela se alegra e prospera, belíssima. Gaia, durante muito tempo, compartilha seus gostos. Ama a comunidade. O seu horizonte é constituído pelo grupo, pela relação, pela cooperação indispensável para conviver junto com Gaia. Mas Gaio desenvolve logo a obsessão pela parte de dentro e pela parte de fora. Inventa as fronteiras. Inventa a guerra. Frequentemente, ignora Gaia para se engajar em novos conflitos, distante do seu vilarejo onde abandona as suas mulheres dedicadas ao cuidado do grupo, à busca de água e ao cultivo de Gaia.
Em bem pouco tempo, Gaio começa a enjoar do fato de estar junto com Gaia. Quer possuir suas riquezas, quer ter. Gaio descobre que, para ter, é preciso excluir. Exclui as mulheres, semelhantes a Gaia na índole, as reduz a objeto e reivindica sua propriedade. Exclui os diferentes, os escravos, os desviantes. Também sobre eles exerce o domínio. Gaio organiza o trabalho dos seus submetidos, e com esse trabalho transforma Gaia. Quantifica-a e deseja sempre mais dela, lançando-se à conquista guerreira de novos espaços e colônias.
O seu compromisso se expande e, com isso, as suas riquezas e o seu delírio de onipotência. Nos novos lugares, encontra novas comunidades. Comunidades que respeitam Gaia como uma mãe, como uma amiga ou como uma esposa que vivem com ela em equilíbrio harmonioso; que respeitam e admiram suas qualidades. Gaio não suporta essas amizades de Gaia e as destrói, saqueando suas riquezas. As qualidades não se medem, e o que mais interessa a Gaio é medir, quantificar o valor das suas riquezas para criar organizações sempre mais ricas e poderosas, capazes de um domínio absoluto que agora ele chama de “soberania” e que ele modela sobre a propriedade absoluta e individual de um território.
A ciência da qualidade
Gaio ama o prazer, mas o considera um luxo, um lugar da estética. O prazer gerado pela qualidade, um estado do ser, não o ajuda a acumular e a ter sempre e ainda mais. Por isso, Gaio diferencia entre arte e ciência. A primeira se fundamenta na qualidade, na relação e na comunidade espiritual entre artista, obra e fruidor. A segunda, apenas na quantidade. A ciência de Leonardo, uma ciência da qualidade, é assim esquecida: o protocientista será Galileu, aquele que exclui a qualidade e o “não mensurável” (estética, odores, sabores, harmonias) do mundo da relevância científica.
Gaio inventa a manufatura e a produção em série. Inventa máquinas prodigiosas fundadas em leis absolutas e imutáveis que aprende a descobrir e medir com precisão. Gaia lhe oferece a energia para fazer isso, das suas vísceras sai antes o carvão e depois o petróleo. Gaio se torna sempre mais rico e cobre de honras quem lhe permitiu tornar-se rico. Newton, na Londres do seu tempo, tinha status de superstar. Gaia ama a beleza e a harmonia. A sua essência está no ecossistema, um conjunto de relações mutualistas em que o todo não é uma simples soma das partes. Gaio coloca a si mesmo no centro. Promove a sua visão egocêntrica. Inventa o humanismo. Descobre que Gaia não é mais o centro do universo. Reage a isso colocando a si mesmo ali.
Com Descartes, o eu pensante, Gaio se emancipa da matéria, da qual recusa, ao mesmo tempo, a essência animada. Gaio se emancipa até do seu corpo, do seu ser pessoa. Agora, conta apenas por aquilo que tem. É sujeito abstrato, “dominus borghese”, dotado de poderes ilimitados sobre Gaia, da qual rejeita a identidade viva, reduzindo-a a uma máquina. Para ele, Gaia é governada por leis mecânicas, semelhantes àquelas sob tutela da sua propriedade privada, da qual a força da soberania exige o respeito sob pena de suplícios e galeras.
Gaia deve se revelar inteiramente aos seus olhos, deve lhe confessar todos os segredos de si mesma, justamente aqueles que podem torná-lo ainda mais rico e poderoso. Gaia é agora prisioneira e, como os prisioneiros, deve ser torturada para lhe extrair a verdade: como e onde posso encontrar novas riquezas, novas consciências, novo poder?
Gaio assume as vestes de Francis Bacon, onipotente e cruel Chanceler de sua majestade, que foi há muito tempo um grande jurista e grande cientista. É Bacon que teoriza sobre a inquisição na Inglaterra da Magna Charta. É Bacon que ensina o método científico para interrogar Gaia impiedosamente com o fim último de transformá-la e desenvolvê-la. Gaio, ao mesmo tempo, estende a sua imagem às suas mulheres: se são capazes de ter, terão direito à paridade formal.
Mas Gaia é esposa explorada, dominada e violentada com o direito e com a ciência. Permanecerá inerte? Alguém se levantará em sua defesa?
A Guerra das Rosas
Para ver uma reflexão sobre como o direito codificou as relações com a natureza pode-se ler as teses de Fritjof Capra contidas em: “O ponto de mutação” (Ed. Cultrix) e “La scienza della vita” (Ed. Rizzoli). Sobre as relações entre ciência e direito: “Legal Alchemy. The Uses and Misuses of Science in the Law”, de D. Faigman.
A história da relação entre Gaio e Gaia é uma verdadeira Guerra das Rosas. Vejam-se a respeito: “A ciência de Leonardo da Vinci” (Ed. Cultrix), de Fritjof Capra; “Dopo il Leviatano. Individuo e e comunità”, de Giacomo Marramao (Ed. Bollati Boringhieri); “Law and the Rise of Capitalism” (Ed. Monthly Review Press), de Michael E. Tigar.
Enfim, deve ser assinalada a publicação do panfleto do jornalista francês Hervé Kempf, “Per salvare il pianeta dobbiamo farla finita con il capitalismo” (Ed. Garzanti).
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FONTE ; (Ecodebate, 23/03/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação. [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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