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quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

FALSO DILEMA DO ABASTECIMENTO PÚBLICO EM GOIANIA (17/12/2008)



Neste espaço, retomo um assunto complexo que tratei numa série de artigos anteriores. Trata-se de um enorme desafio, que é a preservação da água de abastecimento da população. Na audiência promovida pela Saneago para discutir o reservatório João Leite, a empresa estatal de saneamento, concessionária de um serviço público municipal, lançou evidências claras sobre o caráter da sua proposta, que é ultrapassada e autoritária, na forma e no conteúdo.

Na forma, a audiência excluiu os prefeitos da bacia e as organizações não governamentais dos municípios envolvidos diretamente. Os titulares das pastas de Turismo e do Meio Ambiente de Goiânia, Euler Morais e Clarismino Júnior, manifestaram opiniões acerca da gravidade do assunto e que não foram levadas em consideração pela empresa estatal. Os prefeitos de Terezópolis e de Goianápolis afirmaram que não foram convidados e nem sequer participaram das discussões e preparações da audiência. O presidente do Instituto Nacional de Permacultura, que é o presidente da Associação Eco-Vila Fazenda Santa Branca, de Terezópolis, contestou de público a exclusão e marginalização do debate.

No conteúdo, a proposta da Saneago reproduz o modelo de exclusivo comando-e-controle realizado nas décadas de 1980-90 em São Paulo para a represa Billings/Guarapiranga. Este modelo tem caráter autoritário que foi evidenciado nas falas dos engenheiros da empresa goiana de saneamento, João Guimarães e Caio Gusmão:

[...] o governo do estado vai aprovar com urgência o Plano de Manejo da APA João Leite como instrumento de controle que se sobrepõe aos planos diretores municipais [...]. O reservatório João Leite será cercado e só adentrará na área pessoas credenciadas e autorizadas pela Saneago [...]. O reservatório João Leite é como a caixa d'água da sua casa; você deixaria alguém nadar nela? Pois a Saneago não permitirá que isso aconteça no reservatório [...].

O papel de "xerife da caixa d'água do povo de Goiânia", no caso, se desmente por si mesmo, dada sua incapacidade de cumprir o que promete. A população não se esquece do caso da Fazenda São Domingos, na região noroeste, onde 40 mil famílias ocuparam "clandestinamente", no início da década de 1990, toda a micro-bacia do São Domingos. A foz deste ribeirão ocorre na extensa várzea do rio Meia Ponte onde se localiza a Estação de Captação de Água que é responsável pelo atual abastecimento de 40% da cidade. Esta ocupação comprometeu a qualidade da água e obrigou a empresa a elaborar novo projeto de captação no João Leite. E para este novo reservatório, embora o modelo Billings/Guarapiranga seja apresentado como antítese, ele está presente na proposta da Saneago.

Na verdade, a proteção da água requer a participação de todos os atores, públicos e privados, que atuam numa extensa área de 760 km² da bacia hidrográfica João Leite. A Saneago, ao invés de promover, impede a participação destes atores, resultando na contradição flagrante, revelada na audiência pública pelo prefeito Uilton Pereira, de Terezópolis:

[...] a Saneago anunciou que já gastou R$ 150 milhões com o reservatório. Pois quero dizer que nenhum centavo foi aplicado no nosso município, que é modelo para o Brasil com as Eco-Vilas. Não nos ajudou a resolver nem o problema do lixão que afeta diretamente a qualidade da água do reservatório que vai ser formado. E ainda joga aqui as imagens do lixão, numa atitude de cobrança da prefeitura para solução de um problema compartilhado. Eu proponho que a empresa assuma o lixo de Terezópolis, pelo menos, como uma das medidas de compensação pelas perdas das terras a serem inundadas [...].

O presidente do Comitê Hidrográfico do Meia Ponte, geólogo Marcos Correntino, registrou na audiência que o estado não remeteu o assunto para discussão no comitê, antevendo perspectivas negativas para o gerenciamento da bacia do João Leite. Além disso, ao confrontar a situação reinante no estado com aquelas relatadas pelos representantes das empresas de saneamento de São Paulo e Minas Gerais, registrou que: "[...] em Goiás, ao contrário dos mineiros e paulistas, não se aplica um centavo sequer dos recursos financeiros da compensação do setor hidrelétrico no gerenciamento de bacia [...]".

Os fatos falam por si. Ou a comunidade se mobiliza para reverter o quadro claramente desenhado acima, ou teremos o comprometimento do reservatório num prazo curto de até uma década. E quem vai pagar o pato é o povo de Goiânia, que não passa de consumidor da água armazenada na "caixa d'água" vigiada pela Saneago. Como o reservatório não é uma caixa d'água, e sim, um ecossistema aquático lêntico, de formação lótica, permanentemente influenciado por um conjunto de mananciais cuja qualidade depende do uso do solo, tanto à montante como à jusante do barramento, o resultado da desordenada ocupação fora do "muro da Saneago" será a poluição dos mananciais e do próprio reservatório, elevando-se os custos de tratamento da água.

A lógica do modelo autoritário da falta de manejo de uma bacia de abastecimento público consiste em fazer crer que a ameaça inevitável de ocupação desordenada do solo será contida com medidas repressivas. Daí a estratégia baseada no alarmismo da população, criando-se previamente um clima entre o "bem" (Saneago) e o "mal" (Prefeituras), que prepara terreno para, logo mais, diante da catástrofe previamente anunciada, elevar as tarifas, requerer mais dinheiro do Banco Mundial, inclusive para novo projeto de captação no ribeirão Caldas em futuro não longínquo .

A garantia da qualidade da água, pela própria sociedade, é possível a partir da apreensão das lições históricas de manejo das bacias de abastecimento público. Um estudo promovido pela ACIEG em parceria com a prefeitura de Goiânia, a partir do zoneamento e usos sustentáveis formulados por equipe técnica poliprofissional, representa uma alternativa à proposta da Saneago. Funda-se num modelo democrático de gerenciamento estratégico e integrado da bacia do João Leite, envolvendo poder público, ONG's e agentes produtivos, potencialmente capaz de proteger os mananciais que fornecerão água de beber para 80% da população da região metropolitana da capital goiana.
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FONTE : Osmar Pires Martins Júnior é biólogo, engenheiro agrônomo, mestre em Ecologia, doutorando em Ciências Ambientais, professor de Perícia, Licenciamento e Saneamento Ambiental em cursos de Graduação e Pós-Graduação, foi secretário municipal do meio ambiente de Goiânia, perito ambiental do MP e presidente da Agência Ambiental de Goiás.

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