Febre amarela dificilmente será erradicada. Vacinação é a forma mais efetiva de controlar a doença. Entrevista especial com Tatiana Guimarães de Noronha
IHU
“A febre amarela silvestre nunca foi erradicada e muito dificilmente será, pois ela é perpetuada pelos mosquitos que vivem nas áreas de florestas e seus habitantes naturais, os macacos”, alerta Tatiana Guimarães de Noronha, médica e pesquisadora responsável pela área de Epidemiologia Clínica da Assessoria Clínica de Bio-Manguinhos/Fiocruz. Entretanto, adverte, o controle do mosquito Aedes aegypti, que é o vetor urbano da doença, a manutenção do equilíbrio ecológico e, fundamentalmente, a vacinação contra febre amarela podem conter a proliferação da doença nas áreas urbanas.
Segundo ela, uma possibilidade para enfrentar os surtos de febre amarela seria adotar a vacinação contra a doença de forma rotineira. “Considerando a facilidade dos deslocamentos de suscetíveis para áreas de risco e a tendência de expansão dessas áreas, é provável, sim, que todo o país tenha de adotar a vacinação rotineira. Considerando também a segurança da vacinação de lactentes conduzida há décadas em grandes áreas do país, a introdução da vacinação no calendário básico das crianças a partir de nove meses de idade, nas demais áreas, pode ser considerada uma estratégia proativa, de mais fácil aceitação pelo público e de menor carga adicional para os serviços de imunização da rede pública, comparada às campanhas de vacinação”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Tatiana de Noronha explica as diferenças entre as doses de vacina plena e fracionada. Ambas, afirma, são produzidas pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos de Bio-Manguinhos e utilizadas há décadas em diversas regiões do país. “A estratégia da dose fracionada está sendo utilizada como uma medida de emergência, pois há a necessidade de se vacinar um contingente enorme da população, em curto espaço de tempo, em áreas em que não havia recomendação de vacinação para esta doença”. E afirma: “Com o aumento da circulação do vírus da febre amarela da forma silvestre se aproximando de áreas com alta densidade populacional, houve a correta decisão pelo Ministério da Saúde de fazer vacinação em massa, cobrindo estas regiões em curto prazo de tempo, na tentativa de se evitar a possibilidade de transmissão urbana do vírus”. Apesar do aumento da vacinação no país, a médica frisa que “a cobertura vacinal tem sido baixa e precisamos do apoio dos profissionais de saúde e da confiança da população para atingir o nosso objetivo, que é controlar a doença”.
Tatiana Guimarães de Noronha é médica, graduada pela Universidade Federal Fluminense – UFF, com especialização em Pediatria e Infectologia Pediátrica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É mestra em Saúde Pública e doutora em Epidemiologia pela Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz. É a pesquisadora responsável pela área de Epidemiologia Clínica da Assessoria Clínica de Bio-Manguinhos/Fiocruz.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No que consiste a febre amarela silvestre e quais as diferenças com relação à variação urbana da doença?
Tatiana Noronha – O termo “febre amarela silvestre” corresponde à doença adquirida pelo homem a partir da picada de mosquitos que vivem na região de floresta (chamados de Haemagogus e Sabethes), próximos às copas de árvores, que se alimentam de sangue de macacos e transmitem a doença entre esses animais. No entanto, quando o homem entra na região de mata, sem estar protegido, ou seja, vacinado, acaba sendo acidentalmente picado por esses mosquitos e adquire a doença. A febre amarela urbana ocorre quando pessoas doentes são picadas por mosquitos que vivem na área urbana (Aedes aegypti) e transmitem a doença para outros seres humanos. As duas formas de febre amarela manifestam-se da mesma forma, com sintomas e gravidade semelhantes.
Diferenças
A diferença entre elas consiste apenas na forma de transmissão, ou seja, a febre amarela é chamada de silvestre quando afeta o ser humano que foi picado por mosquito que vive na mata, após picar macacos infectados, e é chamada de urbana quando adquirida a partir de mosquitos que vivem na área urbana, alimentando-se de sangue humano e, portanto, transmitindo a doença de um ser humano para outro. Vale destacar que o último relato de febre amarela urbana no Brasil é de 1942, tendo sido erradicada graças às ações de vacinação e controle do mosquito nas áreas urbanas. Com o retorno e crescimento descontrolado desses mosquitos nas últimas décadas, a vacinação de toda a população em risco tem sua importância destacada.
A febre amarela silvestre nunca foi erradicada e muito dificilmente será, pois ela é perpetuada pelos mosquitos que vivem nas áreas de florestas e seus habitantes naturais, os macacos. Por isso, há décadas tem sido indicada a vacinação das pessoas que, por atividades de trabalho ou lazer, entram nas áreas de mata, onde o vírus causador da doença, os mosquitos e macacos naturalmente vivem. A indicação da vacinação é revista periodicamente a partir da identificação de novas áreas com circulação do vírus causador da febre amarela, e os macacos são os nossos grandes aliados, pois são os primeiros a adoecer, permitindo a detecção do risco, mesmo antes de seres humanos serem afetados.
IHU On-Line – Passadas algumas semanas do início da vacinação contra febre amarela com doses fracionadas em algumas regiões do país, qual sua avaliação?
Tatiana Noronha – Historicamente, é conhecida a efetividade da vacina de febre amarela no controle de surtos da doença. Espera-se o mesmo com a utilização da dose fracionada, que já teve a sua capacidade protetora cientificamente comprovada como semelhante à dose plena, por pelo menos oito anos após a vacinação. Além dos dados científicos, temos a experiência de países africanos, como a República Democrática do Congo, que conseguiu controlar o surto da doença, com a utilização da mesma dose fracionada da mesma vacina de febre amarela utilizada aqui. Em relação à campanha realizada recentemente no Rio de Janeiro e São Paulo, não temos ainda tempo disponível para avaliação, mas gostaria de chamar atenção para o fato de que a cobertura vacinal tem sido baixa e precisamos do apoio dos profissionais de saúde e da confiança da população para atingir o nosso objetivo, que é controlar a doença.
IHU On-Line – Quais as diferenças entre a aplicação da dose plena e da dose fracionada da vacina?
Tatiana Noronha – Tanto para dose fracionada quanto para dose plena, é utilizada a mesma vacina de febre amarela, que é produzida pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos de Bio-Manguinhos, e utilizada há décadas em diversas regiões do país. A dose fracionada é uma parte da dose padrão da vacina da febre amarela e confere proteção equivalente, segundo demonstrado por estudos científicos. Na dose padrão, é aplicado 0,5 mL da vacina, enquanto na dose fracionada é aplicado 0,1 mL. O tempo de proteção da dose padrão é para toda a vida. Já com a dose fracionada, de utilização mais recente, sabe-se que a duração é de pelo menos oito anos — tempo que foi possível estudá-la até agora. Estudos em andamento continuarão a avaliar a proteção posterior a esse período.
Outra diferença entre elas que vem sendo questionada é sobre a idade de aplicação. Como os estudos de dose-resposta foram realizados apenas em adultos, a dose fracionada não é recomendada para crianças abaixo de dois anos. Além disso, a dose fracionada não serve para o Certificado Internacional de Vacinação, necessário para determinadas viagens internacionais.
IHU On-Line – Quais são os riscos e benefícios da vacinação como forma de prevenir a doença?
Tatiana Noronha – A vacinação é conhecidamente a medida mais eficaz para a prevenção da febre amarela. Em torno de 98% dos adultos apresentam títulos de anticorpos considerados como protetores cerca de 1 a 2 semanas após a vacinação.
Como qualquer vacina, eventos adversos podem ocorrer. A experiência de uso da vacina de febre amarela no Brasil e no mundo, há cerca de sete décadas, permite o estabelecimento da sua segurança, especialmente se respeitadas as suas contraindicações. A vacina não deve ser administrada em crianças menores de nove meses de idade; pessoas com imunodeficiência por doença ou tratamento; e indivíduos com histórico de reação anafilática ao ovo de galinha, componente usado na produção da vacina. Pessoas em condições especiais, como aqueles maiores de 60 anos e portadores de doenças autoimunes, devem procurar orientação médica antes de decidir se devem ou não se vacinar.
As reações à vacina da febre amarela são geralmente leves. Cerca de 2 a 5% dos vacinados podem apresentar dor de cabeça, dor no corpo e febre entre o 5º e o 10º dias após a vacinação. A vacina de febre amarela pode acarretar evento adverso grave em um a cada 400 mil vacinados (ou seja, cerca de 0,00025%), podendo ou não levar à morte. Há suspeita de que esses eventos ocorram por fatores individuais, e estudos estão sendo conduzidos para avaliar quais fatores podem estar associados à ocorrência de eventos adversos graves. É sabido que cerca de 15% dos casos humanos de febre amarela evoluem para a forma grave, dos quais cerca de 50% evoluem para o óbito. Portanto, consideramos o risco-benefício altamente favorável à vacinação em áreas endêmicas e em outras situações de risco de adoecimento.
IHU On-Line – Quais seriam as melhores estratégias para o controle da doença e prevenção da sua urbanização para além da vacinação?
Tatiana Noronha – Controle do vetor urbano (comprovadamente, o mosquito Aedes aegypti) — que tem falhado nas últimas décadas, o que pode ser observado pela dificuldade de controle dos casos de dengue e, mais recentemente, zika e chikungunya. É claro que ações individuais, como uso de repelentes e mosquiteiros, têm a sua relevância, porém nenhuma medida se aproxima da vacinação em termos de efetividade no controle da doença. Uma medida importante também é a preservação do ambiente, pois com as ações de desmatamento e desequilíbrio ecológico, pode haver proliferação dos mosquitos de hábito silvestre, os quais podem ir para a borda da floresta à procura de alimentos (especialmente, com a morte de macacos) e podem picar seres humanos não vacinados, levando ao aumento dos casos de febre amarela silvestre. Se algum indivíduo entre esses doentes for para a cidade, pode ser picado pelo Aedes aegypti, que transmitirá a doença para outro indivíduo não vacinado, configurando o ciclo urbano da doença. Ou seja, a prevenção da febre amarela urbana está estritamente relacionada ao controle da febre amarela silvestre.
IHU On-Line – Por que as aplicações de doses fracionadas se configuram como alternativa para a imunização no Brasil hoje?
Tatiana Noronha – A estratégia da dose fracionada está sendo utilizada como uma medida de emergência, pois há a necessidade de se vacinar um contingente enorme da população, em curto espaço de tempo, em áreas em que não havia recomendação de vacinação para esta doença. Com o aumento da circulação do vírus da febre amarela da forma silvestre se aproximando de áreas com alta densidade populacional, houve a correta decisão pelo Ministério da Saúde de fazer vacinação em massa, cobrindo estas regiões em curto prazo de tempo, na tentativa de se evitar a possibilidade de transmissão urbana do vírus.
Essa decisão foi respaldada pela Organização Mundial da Saúde, que, em julho de 2016, revisou evidências existentes que demonstraram que o uso de dose fracionada em 1:5 (0,1 mL) da vacina da febre amarela proporciona proteção contra a doença similar à observada com o uso da dose padrão (0,5 mL).
IHU On-Line – O Brasil deveria adotar a vacinação contra a febre amarela de forma rotineira, incluindo-a dentro do calendário de vacinação? Por quê?
Tatiana Noronha – Considerando a facilidade dos deslocamentos de suscetíveis para áreas de risco e a tendência de expansão dessas áreas, é provável, sim, que todo o país tenha de adotar a vacinação rotineira. Considerando também a segurança da vacinação de lactentes conduzida há décadas em grandes áreas do país, a introdução da vacinação no calendário básico das crianças a partir de nove meses de idade, nas demais áreas, pode ser considerada uma estratégia proativa, de mais fácil aceitação pelo público e de menor carga adicional para os serviços de imunização da rede pública, comparada às campanhas de vacinação. Além disso, a aplicação de vacinas nas rotinas dos serviços de saúde permite uma avaliação mais criteriosa das possíveis contraindicações, aumentando ainda mais a segurança vacinal. No entanto, essa estratégia seria indicada mais a médio prazo e não substitui as campanhas de vacinação em massa, necessárias no momento atual nas áreas de risco já identificadas.
IHU On-Line – O que a volta da febre amarela revela sobre a política de saúde pública no Brasil?
Tatiana Noronha – Não estamos vivendo “a volta da febre amarela”, pois a febre amarela silvestre nunca deixou de existir no Brasil e, por isso, é chamada de endêmica no nosso país. Até o momento, desde 1942, não temos relato da forma urbana da doença. O que temos observado, especialmente do ano passado para cá, é um aumento do número de casos da febre amarela silvestre, próximo a áreas de elevado contingente populacional (Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo). A expansão dos casos silvestres da doença no sentido leste-sul, a partir da região amazônica, tem sido observada nas últimas décadas, com ciclos de maior expansão a cada 6 a 7 anos, detectados graças às ações de vigilância em saúde pública, o que inclui a detecção de macacos doentes ou mortos (chamados de epizootias).
Essas ações de vigilância permitem a implementação de ações de controle da doença, como a vacinação da população em risco. O que tem ocorrido recentemente é uma expansão muito rápida do vírus pela região sudeste, atingindo áreas de elevado contingente populacional, não vacinado contra febre amarela. A razão para essa rápida expansão não está bem clara e, provavelmente, é multifatorial. No entanto, o Ministério da Saúde, com apoio dos estados e municípios, tem agido de forma a controlar a disseminação da doença, e a campanha de vacinação em dose fracionada, com respaldo das Organizações Mundial e Pan-americana da Saúde, é um exemplo disso.
IHU On-Line – Em termos de controle epidemiológico e política de saúde pública, quais as semelhanças e distinções no controle de febre amarela e outras doenças, como zika, dengue e chikungunya, que possuem o mosquito como vetor?
Tatiana Noronha – Essas quatro doenças são chamadas de arboviroses por serem transmitidas por insetos e, no meio urbano, compartilham o mesmo vetor, o mosquito Aedes aegypti, sabidamente de difícil controle. A principal diferença entre essas doenças, em termos de ações de prevenção e controle, é que para febre amarela existe uma vacina eficaz, com segurança conhecida, que tem sido capaz de evitar a reurbanização da doença há décadas.
Como dito anteriormente, não é possível erradicar a febre amarela, pois existe um hospedeiro não humano (o macaco) que juntamente com os vetores silvestres perpetuam a circulação do vírus no seu habitat. No entanto, se o ser humano que entrar na floresta estiver vacinado, se as ações de vigilância (incluindo de macacos infectados) estiverem funcionando e a expansão das aéreas de risco for identificada a contento, é possível manter a febre amarela sob controle com ações de vacinação como política de saúde pública. Infelizmente, o mesmo ainda não é possível com dengue, zika e chikungunya, e ficamos à mercê apenas do controle vetorial e de ações de proteção individual, como uso de repelentes.
IHU On-Line – A febre amarela também é realidade em outros países, inclusive muitos só permitem a entrada de pessoas que tenham sido vacinadas. Que experiências de outros países poderiam servir de inspiração para o Brasil no que diz respeito ao controle da febre amarela?
Tatiana Noronha – Para o controle da febre amarela no Brasil são adotadas medidas cujas prioridades são: vacinar na rotina das unidades básicas 100% da população residente nas áreas com a recomendação para vacinação a partir dos nove meses de idade; vacinar oportunamente (pelo menos dez dias antes) viajantes para áreas com risco de febre amarela; monitorar coberturas vacinais em todos os municípios; investigar os eventos adversos pós-vacinação; e realizar a vigilância de casos suspeitos de febre amarela e epizootias, com o objetivo de monitorar a circulação do vírus. Além disso, a vigilância entomológica, com isolamento de vírus da febre amarela em mosquitos, tem sido recomendada como estratégia complementar à vigilância de casos humanos e epizootias, de modo a subsidiar o planejamento das ações de prevenção e controle antes da ocorrência de casos humanos.
Dessa forma, a vacinação rotineira é complementada por campanhas de imunização em massa, para conter surtos epidêmicos. Ou seja, são estratégias consideradas exemplares, que, se bem conduzidas e associadas a medidas de preservação ambiental, representam sucesso no controle da doença. Chamo atenção para isso porque o planejamento existe e, se fizermos nosso “dever de casa” adequadamente, conseguimos sucesso no controle da doença sem necessidade de inspiração em outros países. Exceção se faz para experiência de uso da dose fracionada na África, que foi importante para embasar a adoção dessa estratégia em caráter emergencial no Brasil, visando ao controle da doença em áreas de elevado contingente populacional suscetível (não vacinado anteriormente).
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Tatiana Noronha – Gostaria de solicitar que os profissionais de saúde se atualizem sobre a indicação da vacinação, incluindo seus riscos e benefícios, de forma que possam orientar adequadamente a população. Por trás das estratégias de vacinação, participando das tomadas de decisão em relação às políticas de saúde pública, existem técnicos capacitados e experientes, com apoio de cientistas de instituições renomadas. Portanto, procurem se atualizar, com atenção especial às fontes confiáveis de informação.
(EcoDebate, 01/03/2018) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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