Por Ana Cláudia Peres (Revista Radis)
Cícera João da Silva tem medo de quase nada nesta vida. Aos 52 anos, lida com o roçado desde que se entende por gente — primeiro, ajudando o pai com a enxada na plantação; depois, cultivando a terra noite e dia para criar os três filhos de um casamento que acabou ela nem lembra quando. Hoje, morando sozinha na casa de taipa com rachaduras na parede onde pendura os retratos da família, não se assusta nem mesmo com os ladrões, que agora intimidam a região e outro dia lhe roubaram as galinhas que criava para vender na feira. Mas Dona Ciça, como é chamada pelos vizinhos de Cachoeira de Pedra D´água, comunidade da pequena Massaranduba, no interior da Paraíba, tem medo da fome.
Diz que vai trabalhar enquanto tiver forças e é justamente limpando a roça para o plantio do milho, da fava, do feijão, à espera de um bom inverno, que a reportagem da Radis encontra a agricultora, sob o sol escaldante do meio-dia, em uma quinta-feira de fevereiro. Para sobreviver, além de plantar e de manter a fé “em Deus e Nossa Senhora”, ela conta com os 100 reais que recebe mensalmente do Bolsa Família, programa de transferência de renda do governo federal voltado para quem vive em situação de vulnerabilidade e de extrema pobreza no país. É com esse recurso que Dona Ciça paga a luz, em torno de 22 reais por mês, e o gás de cozinha que, somente entre agosto e dezembro de 2017, teve seis aumentos consecutivos. Ainda ajuda os filhos e os seis netos como pode. Com o que sobra, alimenta-se. “O que dá eu compro; o que não dá, eu não compro”, revela. Naquele dia, ia almoçar feijão.
A vida já esteve melhor para Dona Ciça e pelo menos outros 2,5 milhões de brasileiros que podem ter cruzado de volta a linha da pobreza. Apenas três anos após deixar de figurar entre os países que integram o Mapa da Fome — relatório produzido pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO/ONU) —, o Brasil corre o risco de retornar a essa lista nada honrosa. A advertência feita em dezembro pelo diretor geral da FAO, o brasileiro José Graziano da Silva, reforça o alerta disparado seis meses antes por um grupo de 20 entidades da sociedade civil brasileira que divulgaram um documento apontando na mesma direção. Intitulado Relatório Luz, o estudo indica a iminência de o Brasil voltar ao mapa, um resultado preocupante diante dos compromissos de erradicar a pobreza e eliminar a fome, assumidos como parte dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a serem cumpridos até 2030.
Que fique claro, o Mapa da Fome é um indicador elaborado pela FAO que, desde 1990, periodicamente, combina dados e analisa a situação de segurança alimentar da população mundial, fazendo projeções e traçando diagnósticos nos diferentes países e regiões do globo. Estar incluído no mapa significa ter parte considerável da população em situação de insegurança alimentar, ingerindo uma quantidade diária de calorias inferior ao recomendado. O Brasil saiu do mapa em 2014. Isso não significa que a fome havia acabado, mas que pela primeira vez em sua história o país teve menos de 5% de sua população subalimentada. Naquele ano, como constatado pela FAO, esse índice foi de 3%. Parecia que a fome finalmente tinha deixado de ser tratada como fenômeno natural. E o país de Josué de Castro e Herbert de Souza, o Betinho — ativistas que sempre deram à fome um estatuto político e econômico —, comemorou o resultado.
“Especialmente a partir do Programa Fome Zero, a questão da fome passa a ter relevância na agenda política no Brasil. Por isso houve melhora dos índices de insegurança alimentar e o país saiu do Mapa da Fome”, aponta a antropóloga Maria Emília Pacheco, assessora nacional da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Criado em 2003 durante o primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Fome Zero articulou políticas emergenciais de combate à fome com políticas públicas estruturais. Segundo a ONU, entre 2003 e 2010, 24 milhões de brasileiros deixaram a linha da extrema pobreza. Ainda de acordo com os indicadores, de 2002 a 2013, a população de brasileiros considerados em situação de subalimentação caiu em 82%.
Em entrevista à Radis, Maria Emília recorda que, na crise global de 2008, debates realizados no âmbito do Consea avaliaram que os impactos no Brasil vinham sendo atenuados graças a medidas como a ampliação da produção apoiada em políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para a agricultura familiar, responsável por cerca de 70% dos alimentos consumidos no país. A antropóloga se refere à política de crédito e programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e o Programa Água para Todos no semiárido. “Essas medidas foram combinadas com a oferta de emprego, recomposição do salário mínimo, programa de transferência de renda e garantia de direitos adquiridos da previdência social”, acrescenta.
Agora, o velho fantasma volta a assustar. “A fome está muito associada à pobreza extrema, e temos preocupação sobre políticas de restrições orçamentárias que estão sendo implementadas”, afirmou o economista Francisco Menezes, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), em entrevista ao Nexo Jornal, durante apresentação do “Relatório Luz”, em julho de 2017. Ele se referia a medidas como a Emenda Constitucional 55, que congela os gastos públicos por 20 anos, e cortes em programas como o Bolsa Família, que teve 1,1 milhão de benefícios cancelados ou bloqueados pelo governo. Os retrocessos nas políticas públicas também foram apontados por todos os especialistas ouvidos por Radis como ameaças na luta contra a fome.
Para José Graziano, em um cenário de crise econômica e com condições adversas com o aumento dos índices de desemprego, por exemplo, torna-se essencial a manutenção dos investimentos sociais. “O que se noticia, porém, são cortes nos orçamentos dos programas sociais e das redes de proteção social”, lamenta o diretor-geral da FAO (leia entrevista na pág. 25). Além do enxugamento no Bolsa Família, que deixa Dona Ciça apreensiva a cada vez que se dirige à casa lotérica em busca do benefício, outros programas perderam orçamento. O PAA, por exemplo, que favorece a aquisição direta de produtos de agricultores familiares ou de suas organizações para distribuição em hospitais, escolas e presídios, sofreu uma redução orçamentária de 40% no último ano, diminuindo de 91,7 mil para 41,3 mil o número de pessoas atendidas, segundo dados da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA Brasil).
Continue a leitura da reportagem no site da revista Radis.
Confira a edição de março de 2018 na íntegra.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 05/03/2018
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