Espaço envolvendo estados de três regiões tem dinâmicas, leis e orçamento próprios, além de notável poder econômico e político
Por Laura Barrio, do Jornal da USPPesquisa em andamento investiga o funcionamento de uma extensa área do território brasileiro e propõe a existência informal de um “vigésimo oitavo Estado da federação”. A área, que corresponde às regiões fronteiriças dos Estados do Paraná, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo e Minas Gerais, funcionaria a partir de uma dinâmica própria determinada pela produção canavieira, como uma unidade federativa. O estudo é de Ângelo Cavalcante, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob orientação da professora Vanderli Custódio.
O Aquífero Guarani, formação geológica de armazenamento subterrâneo de água, assegura o sucesso da produção de cana-de-açúcar na região. A agricultura local é marcada pela monocultura canavieira, o que garante ao País o posto de maior produtor mundial do gênero. A importância econômica da cana somada às condições de solo e clima favoráveis de regiões do Brasil, induziram e incentivaram o avanço desse cultivo em diversas áreas nas últimas décadas. O que o autor chama de “moenda moderna” se refere ao novo padrão produtivo e territorial que envolve essa cultura e que, segundo a pesquisa, tem se agigantado.
O estudo partiu de Itumbiara, município do sul goiano, onde Cavalcante notou que o complexo canavieiro tinha influência decisiva na administração das cidades. A prefeitura e a câmara dos vereadores – governanças clássicas – não eram protagonistas nesse processo. Itumbiara não tinha plano diretor, nem políticas de manejo ambiental, de gestão das águas, de preservação do cerrado ou do Rio Paranaíba. Essa ausência de regulamentação ecológica evidenciaria não só um beneficiamento das unidades do complexo sucroalcooleiro local, como também um domínio dessas sobre o funcionamento do município.
Expandindo a análise, a pesquisa avançou rumo a outras cidades e até outros Estados, entendendo que essa realidade não era localizada e restrita. Os rumos da investigação evidenciaram que os espaços em questão têm dinâmicas próprias, orçamento próprio, leis próprias e imenso poder econômico e político. Essa autonomia seria justificada, em algum grau, pela geração de postos de trabalho pela agroindústria canavieira, funcionando como uma espécie de chantagem econômica. Os poderosos agentes do agronegócio teriam, através de seus representantes na bancada ruralista, também uma garantia de sua soberania.
Nessa lógica, quem dita o preço da cana, do álcool, da energia é a própria indústria. Isso porque a problemática ambiental criada a partir da produção de cana – destruição do cerrado e da mata atlântica, por exemplo – não é incorporada no valor final do produto. Se fosse, seria a cana-de-açúcar mais cara do mundo, afirma Ângelo, lembrando que o cerrado goiano foi quase completamente destruído pelo agronegócio.
Como consequência de todos esses processos, um dos fenômenos observados foi a suburbanização de territórios. Com o crescimento do nível tecnológico da produção, as médias e grandes cidades – principalmente suas periferias – passaram a ser o “locus do neo-campesinato”, segundo palavras do autor. Lavradores, extrativistas, geraizeros, indígenas, quilombolas: todos perderam seu hábitat vivencial e passaram a viver em áreas desassistidas pelo poder público, locais de risco, submoradias. Evidência disso é a migração de manifestações tradicionalmente do campo para as periferias, como é o caso das Folias de Reis, das congadas e das “barraquinhas”. Essa seria a expressão objetiva concreta do vigésimo oitavo Estado, que envolve milhões de brasileiros que trabalham, vivem e produzem na relação direta com o amplo complexo sucroenergético.
Assim se chegou ao território já definido, o qual o autor caracteriza como “amébico, esverdeado”. Sem fronteiras bem definidas, extremamente sensível e dinâmico, o vigésimo estado avança em algumas áreas e recua em outras, remodelando-se constantemente, mas sempre operando em sintonia com demandas de mercado, determinações políticas e interesses ambientais específicos. Cavalcante afirma que, apesar da informalidade, trata-se da mais vigorosa unidade federada do País.
Do Jornal da USP, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 27/10/2017
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