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quinta-feira, 10 de maio de 2018

Água: A luta em defesa do direito

Revista Radis, Número 188, Maio 2018
(Foto: Matheus Alves / No encerramento do Fama, participantes marcharam em protesto contra o controle privado e a mercantilização da água )
(Foto: Matheus Alves / No encerramento do Fama, participantes marcharam em protesto contra o controle privado e a mercantilização da água )
Cerca de dois quilômetros em linha reta separavam os participantes do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama 2018) do 8º Fórum Mundial das Águas (FMA), realizados simultaneamente em Brasília. Se, geograficamente, a distância entre esses dois pontos era pequena, no campo das ideias havia um abismo estabelecido pela resposta a uma pergunta: Afinal, de quem é a água? De um lado, havia um fórum popular com ribeirinhos, indígenas, pescadores, marisqueiros, quilombolas, ativistas, ambientalistas, acadêmicos, estudantes, do Brasil e de fora dele, tomados como “povos do mundo inteiro”, que bradavam que a água é de todos, é um bem comum, não uma mercadoria. Do outro, estavam o que eles identificavam como um grande balcão de negócios, no chamado fórum das corporações que discutia tecnologias e modelos que, na prática, visam reduzir direitos, controlar o acesso para capturar e comercializar a água no mundo.
Segundo o cálculo dos organizadores, sete mil pessoas estiveram no Fama 2018, sendo que quatro mil montaram acampamento no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade. Juntos, lançaram uma carta em que denunciam as corporações que querem exercer o controle da água por meio da privatização, mercantilização e titularização. Para isso, alertam, essas empresas usam de estratégias que vão desde  “violência direta até formas de captura corporativa de governos, parlamentos, judiciários, agências reguladoras e demais estruturas jurídico-institucionais para atuação em favor dos interesses do capital”. Segundo os participantes, o resultado é a invasão, apropriação e o controle político e econômico dos territórios, das nascentes, rios e reservatórios, para atender os interesses do agronegócio, hidronegócio, indústria extrativa, mineração, especulação imobiliária e geração de energia hidroelétrica. Denunciam, ainda, que o mercado de bebida deseja controlar os aquíferos e o abastecimento de água e esgotamento sanitário.
Durante o Fórum, foi também lançado uma carta em que lideranças de povos originários e de populações e comunidades tradicionais denunciam as práticas indevidas que levam à contaminação, como os rejeitos tóxicos das atividades de mineração, o derramamento de esgotos não tratados, o desmatamento e a criação de gado impetradas por fazendeiros, empresários, poderes públicos e o capital. “Para nós, sem terra não há água, sem água não há semente, que é fonte da vida”, salientam os indígenas.

Protetores ameaçados

O Fama ressaltou a voz das populações do campo e da cidade que enfrentam as consequências do modelo de desenvolvimento que se apropria dos recursos naturais. Presente ao evento, Biko Rodrigues, da Coordenação Nacional de Quilombolas (Conaq), advoga que a disputa pela água caminha juntamente com a luta pela demarcação dos territórios tradicionais dos quilombolas. Ele denuncia que a apropriação dos recursos hídricos por parte dos fazendeiros impede que os quilombolas acessem esse recurso. “Precisamos que nossos territórios sejam regularizados para cuidar e preservar a água, para sermos guardiões da biodiversidade e de toda essa riqueza que temos no país”, afirmou à Radis. Números da Conaq indicam que mais de seis mil comunidades aguardam o reconhecimento das suas terras no Brasil, em um total de 16 milhões de pessoas.
Já o líder indígena Douglas Krenak contou à reportagem que seu povo teve o curso da vida alterado pelo maior desastre ambiental do país: o rompimento da barragem de Fundão, operada pela Samarco, em novembro de 2015. Para Douglas, é um equívoco falar que houve um acidente. “Houve um crime. Meu povo não pode mais exercer a vida cotidiana. Há dois anos que não comemos peixe, não batizamos nem realizamos nossos rituais sagrados. Fomos impedidos de viver”, declarou. O Rio Doce, chamado de “Watu”, tem uma dimensão espiritual e simbólica na vida do povo Krenak. Por isso, ele considera todas as propostas de recuperação e revitalização do rio insuficientes. “É um dano irreparável. O rio não é só subsistência. Ele vai além de água: ele é cura, é sagrado”.
Antes do desastre, as plantas medicinais é que davam o curso dos tratamentos na aldeia. Agora, nem isso mais os Krenak têm para atender os que sofrem com problemas de pele ou demais transtornos. Douglas identifica, em seu povo, os mesmos problemas constatados por pesquisa do Instituto Saúde e Sustentabilidade (ISS) na população atingida pelo desastre: depressão, dengue, problemas respiratórios, falta de ar e manchas na pele, entre outros sinais e sintomas. No lançamento do estudo, em março de 2018, a coordenadora Evangelina Vormmitag explicou que os efeitos dessa tragédia para a saúde são tão amplos que a literatura científica internacional não registra outro desastre com essa magnitude e essas características, envolvendo tantos fatores — água, ar, solo e animais contaminados, danos emocionais e mentais — na proporção do que ocorreu com o Rio Doce.
Na visão de Douglas, nada disso teria acontecido se o rio e os povos originários tivessem sido respeitados. “Temos que impedir que essas empresas tenham o poder de controlar territórios e recursos naturais e minerais. Temos que demarcar os territórios das populações originárias e tradicionais ao longo de todo o rio. Porque somos nós que preservamos e somos os protetores fundamentais dos recursos da natureza”, diz.
Na Ilha de Maré, na Bahia, a disputa entre os grandes empreendimentos e a população local envolve o direito à água. “Há poucos dias, o governador disse que a gente não pode ser um entrave para o desenvolvimento do estado ”, relatou Eliete Paraguassu, representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais. Eliete contou à Radis que o projeto de construção de um novo terminal industrial da Braskem vai aumentar a poluição na Baía de Todos-os-Santos. Segundo Eliete, a contaminação com metais pesados, como chumbo e mercúrio, já ocorre a partir da atividade intensiva da petroquímica do Porto de Aratu. Para ela, o direito dos povos é desrespeitado por conta do racismo ambiental. “É um racismo com a cor da pele dessas pessoas. Tudo o que não presta é jogado nessas comunidades. Todos os empreendimentos são levados para comunidades tradicionais, quilombolas, de pesca, indígenas e ribeirinhas. É um povo menos favorecido, é um povo preto”, denuncia.

Ocupação ordenada

O aquífero de Alter do Chão, como é conhecido o Sistema Aquífero Grande Amazônia (Saga), é o maior reservatório de água potável do mundo. Esse lago gigante que fica no subsolo do Amazonas, Pará e Amapá é uma reserva estratégica para o país, e também está sendo ameaçado pela exploração e contaminação de suas águas. Luciana Cordeiro, professora de Direito da Universidade de Campinas (Unicamp), disse que a área é de grande interesse comercial e há riscos diretos que podem impactar na qualidade da água. “Alter do Chão pode se tornar uma área de interesse para a especulação imobiliária, com a construção de grandes resorts, e o estabelecimento de indústrias envasadoras, que visam exportar água para outros países. Isso é um perigo”, indicou.
Luciana contou à Radis que, num evento recente, um pesquisador sugeriu a transferência de indústrias paulistas para a região Norte, com o intuito de superar a crise de água que afeta o estado. “É um absurdo. Alter não pode receber indústrias poluentes. Esse aquífero tem formação rochosa e é bem poroso. Nós precisamos saber qual é essa vulnerabilidade antes de lotear toda essa região”. Por isso, ela recomenda muita cautela na exploração desse solo. “Todo mundo está olhando esse potencial. Mas é preciso proteger a área para preservar as águas e os territórios. Os municípios devem fazer um zoneamento correto e autorizar apenas atividades de menor impacto possível”, salientou.
Quem vive em Alter do Chão acompanha as mudanças e sente na pele os problemas decorrentes do desrespeito aos recursos naturais. “Primeiro, veio o desmatamento de matas ciliares, nos igarapés, onde estão nossas nascentes. Depois a ocupação e, com ela, a poluição como resultado das grandes construções. Onde isso vai parar?”, perguntou à reportagem Leila Borari. Muitas famílias indígenas já deixaram o lugar, mas a casa onde Leila cresceu, às margens do rio Tapajós, ainda está lá. “Minha mãe resiste, eu resisto. Tem que ter resistência”, disse. Leila conta que a ocupação sem controle altera o meio ambiente e o modo de vida das populações locais. Ela aponta também os vários problemas de saúde decorrentes do processo, como o surto de hepatite que ocorreu em 2015. “Já peguei água do rio para beber e tomar banho. Naquele tempo não havia água encanada. Hoje tudo mudou. Na margem do Lago Verde não tem tratamento de esgoto. Ao lado da minha casa, tem um prédio que não cuida das suas fossas e descarrega tudo no rio. Como viver desse jeito?”, pergunta.
Para Leila, o processo de destruição só vai ser barrado com ações ordenadas e voltadas para os cerca de seis mil habitantes de Alter do Chão. “Temos uma vegetação muito rara, a Savana amazônica, com plantas e animais endêmicos [únicos] que só existem em Alter. Os grupos avançam, desmatam e vendem a terra. A especulação imobiliária é muito grande na região”, denuncia. Segundo ela, na aldeia Borari vivem 400 famílias, entre indígenas e não indígenas. “De forma cotidiana, a nossa existência está sendo praticamente negada, não só pela população não indígena, mas também pelos governos”.
O Cerrado é outro berço das águas que vem sendo sistematicamente agredido pela consolidação do agronegócio. O conjunto de negócios que envolve a produção agrícola e pecuária está sendo determinante para alterar o ecossistema local. Para fazer frente à devastação e mostrar a importância desse bioma, em 2016 foi lançada a Campanha em Defesa do Cerrado. A coordenadora do Projeto de Articulação do Cerrado Isolete Wichinieski disse que o agronegócio e o capital suplantaram o direito dos povos e comunidades. “O Cerrado é colocado como o celeiro do mundo e facilita o processo de expansão do capital no campo. Parece que ali não tem gente. Precisamos mostrar que o Cerrado tem uma identidade, uma cultura, um jeito de produzir, um modo de vida diferente. E há uma forte relação dos povos tradicionais e comunidades com seu território. Eles é que são os guardiões desse bioma”, declarou, em conversa com a reportagem.
De acordo com Isolete, o Cerrado ocupa 36% do território brasileiro entre áreas de transição e contínuas. O avanço do agronegócio, diz, tem um impacto grande na gestão do território. “Junto com ele vem a grilagem das terras e a ação do governo, que não regulariza essas terras e tenta fazer uma regularização individual, diminuindo a força do coletivo”. Uma das coordenadoras da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ela  destaca que o agronegócio não permite que a água se infiltre no solo como acontece com a vegetação nativa. “O Cerrado é tido como uma floresta invertida porque sua vegetação tem a raiz profunda e faz com que a água penetre no subsolo e seja armazenada nos aquíferos. Só que soja, algodão e cana de açúcar têm raízes frágeis, e não acumulam água. A soja pode até ser verde, mas seu plantio tira essa importante função do Cerrado”, advertiu. Segundo ela, também há perdas na forma de ocupação da terra. “O agronegócio ocupa a chapada, área de recarga dos aquíferos. As comunidades estão nas áreas de descarga e conseguem manter o equilíbrio desse habitat. Por ano somem 10 rios da região. Várias espécies nativas já foram extintas. Tudo está sendo apropriado para a produção”, avaliou.
Isolete criticou a visão de que o Cerrado é um lugar adequado para a produção agrícola, já que tem terras planas, que facilitam o desempenho do maquinário, e água em abundância. “A água é finita, pode acabar. Esse modo de produção retira grande quantidade de água dos rios para fazer todo o processo de irrigação, diminuindo a vazão dos rios e impactando fortemente a vida das comunidades”, alertou. “As empresas fazem poços profundos e retiram água do lençol freático e dos aquíferos. É um ciclo predatório”, sentenciou. Outro problema que aponta se refere ao plantio de soja, que deixa o solo “solto”, fazendo com que seus folículos entrem nos rios, que acabam assoreados e com menos água.

Conflitos pela água

As diferentes visões sobre o uso e a gestão da água vêm acirrando os conflitos no campo. De acordo com a pesquisa “Conflitos no Campo Brasil 2016”, realizada pela CPT, o número de embates por água no país cresceu 150% entre 2011 e 2016, saltando de 69 para 172. Aumentou também o número de pessoas envolvidas nesses conflitos. Se, em 2007, foram 164 mil, nove anos depois, em 2016, esse total foi de 222 mil, um acréscimo de 35,8%. O relatório mostra que, entre 2002 e 2010, havia oscilação. De 2011 para cá, aumento. Eram 28 mil famílias envolvidas em 69 conflitos, nesse ano. O número em 2016 foi de 44 mil famílias, envolvidas em 172 conflitos. Segundo a CPT, a mineração responde por mais da metade dos problemas (51,7%) e as hidrelétricas, por 23,2%.
Mauricio Correa, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia (AATR-BA), observou que o aumento da disputa pela água é fruto de uma política de Estado que privilegia as empresas frente às populações em seus territórios. Como exemplo, ele citou a Bahia, quarto maior produtor de minério do Brasil. “A área do agronegócio aumentou 43% entre 2006 e 2015”, exemplificou. Ele apontou que a água é chamariz e orienta a ocupação das empresas. “Elas divulgam no exterior que estão em cima de um aquífero e que isso é um fator positivo para a produção”, relatou. O ativista reforça que as empresas esgotam os recursos em um determinado lugar e partem para outras áreas para recomeçar esse ciclo. Além disso, ele identifica que muitas empresas têm comportamento nômade e pouca ligação com a vida local.
André Machado, pesquisador do Instituto Aggeu Magalhães (IAM/Fiocruz), observa que o agronegócio consome muita água nos territórios, deixando as populações locais sem acesso a esse recurso. “Há muitos impactos nesse ativo e destaco sobretudo os grãos e o eucalipto. Não é à toa que a plantação de eucalipto é chamada de deserto verde. Todas as fontes e aquíferos são rebaixados ou perdidos por conta desse processo que leva à extensão territorial, muda o regime de chuvas nas regiões desmatadas e impacta fortemente a quantidade de água de aquíferos e rios”, declarou à Radis.
Segundo André, as alterações no meio ambiente são rapidamente visíveis e o rio São Francisco é um exemplo claro desse processo predatório. “O mar está entrando cerca de 40 quilômetros na Foz do São Francisco. Isso é um fato inédito. Há populações urbanas que estão recebendo água salgada na torneira. Já temos denúncias de uma epidemia de hipertensão”, revelou. André conta que recentemente esteve na comunidade quilombola Brajão dos Negros, no município de Brejo Grande, em Sergipe, situada na foz do rio, e encontrou água salgada, o que impede 600 famílias de beber ou plantar. “Essa comunidade produzia 45 mil toneladas de arroz por ano e hoje não produz nada. Depende de caminhão-pipa e agora enfrenta um problema muito sério de segurança alimentar”, denunciou.
A água que não chega, ou que chega contaminada, afeta diretamente a saúde das famílias. Que o diga Vera Lúcia de Oliveira Silva, de Jequitaí, em Minas Gerais. Em conversa com a reportagem, ela relatou que a água que chega ao povoado do Barrocão, onde mora, não serve para o consumo humano. “Ela é amarela, escura, sem condições de a gente beber”, descreveu. Vera conta que há casos de hepatite e verminoses na comunidade, e que suas quatro filhas já tiveram problemas de pele. O quadro, segundo conta, é constantemente agravado pela falta de água. “Ficamos de uma a duas semanas sem água alguma”. Em sua casa, a água é armazenada em caixas de plástico e ela recorre ao serviço privado para ter água de beber. “A gente bebe só água mineral”, revelou. A família gasta R$ 21 pelo tambor de 20 litros. Em um mês, são utilizados quatro tambores. A conta chega a R$ 90 por mês. “É muito dinheiro, é um dinheiro que faz falta”, reclamou.
Em conversa com a Radis, Edson Aparecido da Silva, integrante da coordenação do Fama, reforçou a importância de se combater a ideia da água como mercadoria. De outra forma, acredita, ela se tornará objeto de luxo. “Água é um direito. Esse é o nosso contraponto. Defendemos que as pessoas não devem pagar pela água que consomem e devem ter acesso à água e ao saneamento”. Assessor da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), Edson sustentou que a população não pode ser excluída desse debate, como ocorreu no fórum das corporações. “Entendemos que o verdadeiro fórum da água aconteceu nesse espaço. Aqui é que tivemos todas as representações para lutar em torno da garantia do acesso à água para todos os povos”.
Autor:
Liseane Morosini


in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 10/05/2018

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