Powered By Blogger

terça-feira, 25 de março de 2014

Uma década depois do furacão Catarina, Brasil pouco avançou na previsão de fenômenos naturais extremos

Publicado . em Denúncia
Nas fotografias de Torres, a destruição de 2004 e a situação atual
Foto: Mauro Vieira/Felix Zucco / Agencia RBS
Para quem teve a casa e os negócios arruinados, fica a dúvida: pode acontecer de novo?
Por André Mags e Sâmia Frantz
Mal detectado por instrumentos, subestimado por meteorologistas, o furacão Catarina atingiu 200 quilômetros de área entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, na madrugada de 28 de março de 2004. Casas foram ao chão, quatro pessoas morreram e milhares ficaram desabrigadas. Ainda hoje, o Catarina inspira estudos e suposições. Nesses 10 anos, surgiram pelo menos três evidências sobre o primeiro furacão registrado no Atlântico Sul. Primeiro, a explicação para a transformação de um ciclone extratropical em furacão está no fundo do oceano. Segundo, indícios apontam que o Catarina teria sido um furacão de categoria 2, e não 1, como se calculava. Por fim, os sistemas meteorológicos brasileiros pouco avançaram — e há dúvidas se, hoje, poderiam prever, de forma mais ágil e precisa, uma tempestade semelhante.
É nessa possibilidade de repetição do passado que reside o maior receio: o de que algum dia ou alguma noite as condições propícias possam voltar a se conjugar, e um furacão renascerá do mar com seu olho gigantesco mirando a costa brasileira. Para o PhD em física pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Marcio Luiz Vianna, o Catarina foi uma raridade.
Uma conjugação de fatores possibilitou que o fenômeno invertesse a lógica de se dissipar no mar. O que não quer dizer que não possa se repetir. Uma coisa é certa: a região atingida é propícia aos exageros climáticos, que podem estar se exacerbando por causa do aquecimento global. Nos cinco primeiros anos após o furacão, toda vez que um temporal se aproximava da região, a imprensa buscava comparação com o fenômeno. A frase "mas não vai ser como o Catarina", dita por meteorologistas para acalmar a todos, multiplicou-se em jornais, revistas, rádios e TVs até a história arrefecer nos anos seguintes. Na vida dos moradores das cidades afetadas, o furacão mantém o trauma. E possivelmente ainda será assim por muitos anos.
No Brasil, havia pouca informação
Uma provocação botou o físico aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Marcio Luiz Vianna no caminho do furacão Catarina. Hoje com 73 anos, o cientista já havia realizado algumas proezas. O PhD em física pelo MIT, em 1975, foi uma delas. Também realizou pesquisas com foco nos oceanos. Derivando para os feitos da vida pessoal, gosta de contar que participou da "festa de arromba" da chegada da Apollo 13 à Terra, em 1970.
Portanto, a situação de Vianna era bem confortável quando a sua parceira na empresa e ex-aluna de mestrado Viviane Menezes o provocou a estudar o Catarina. A forma como ocorrera a transformação do ciclone em furacão e a mudança do seu trajeto eram as incógnitas. Vianna e Viviane acreditavam que poderiam desvendar o segredo com base em suas experiências na análise de dados observacionais de qualquer natureza.
A dupla estava confiante de que os aspectos oceanográficos teriam influenciado na trajetória do Catarina. Havia pouca informação no Brasil, mas satélites e argo floats (espécie de boias submarinas que ficam uns 10 dias a 2 mil metros de profundidade e sobem para transmitir seus dados por satélite) ligados a um projeto internacional tinham registros em abundância.
Os pesquisadores desvendaram a causa do comportamento anômalo do Catarina. Descobriram a existência das chamadas "panelas de água relativamente quente" (denominadas de vórtices de núcleo quente), a centenas de quilômetros da costa. As panelas permitiram que o Catarina mudasse o trajeto que seguia, em sua inicial direção para Leste (África), voltando no rumo da costa brasileira. No caminho, foi se abastecendo de água quente das panelas até se transformar em furacão.
— Nosso trabalho explicou bem o que houve — afirma Vianna.
Desvendar o Catarina foi intrigante, conta:
— Para o pesquisador, fazer ciência é um prazer.
Falando em diversão, e a festa da Apollo 13? Foi quase um Woodstock, com o pessoal da ciência, relembra. Durou dois dias:
— Anos 70, né?
Pouco avanço na prevenção
Na última segunda-feira, um alerta estampou o site da Epagri/Ciram, órgão oficial de previsão do tempo em Santa Catarina. Postado às 15h40min, o comunicado anunciava que, em até quatro horas, o tempo viraria no Estado, e um temporal com chuva, descarga elétrica, granizo e ventos de até 100 km/h atingiria municípios de cinco regiões. Às 18h30min, uma hora antes do previsto, o tempo fechou.
Há um ano, previsões assim — com hora e prazos exatos — viraram rotina. A divulgação das informações, direto para os catarinenses, não era costume dos meteorologistas até pouco tempo atrás. De resto, a região ainda pena para avançar.
Os primeiros passos de um avanço na área só começaram a ser percebidos em 2008, quando novas estações meteorológicas foram adquiridas. Há um ano foi instalada a primeira — e única — boia oceanográfica em águas catarinenses, que ainda não é monitorada por instituições de pesquisa locais. Só em julho um radar de dupla polarização e alta tecnologia conseguirá dar a assistência para prever desastres naturais. Com ele, 77% do território catarinense estará protegido.
— Estamos hoje num processo de reordenamento total no que se refere à previsão do tempo. Antes só íamos lá contabilizar o prejuízo, hoje vamos formar uma cultura de autoproteção — diz o secretário da Defesa Civil, Milton Hobus.
Para o meteorologista Leandro Puchalski, do Grupo RBS, pouco ou quase nada foi feito em relação à previsão e prevenção.
— O radar é um ganho, mas não é solução. Se for um furacão muito forte, o raio de monitoramento só vai ter informações quando estiver quase chegando à costa. Não haverá tempo para evacuar uma cidade, por exemplo.
A pós-doutora Magaly Mendonça, coordenadora do Laboratório de Climatologia Aplicada e do Grupo de Estudos de Desastres Naturais da UFSC, acredita que o Catarina representou um marco no sentido de reconhecer o quanto a população está exposta a desastres climáticos. Para ela, caso ocorresse um novo furacão, o Estado estaria despreparado para enfrentá-lo, sem um plano para ser executado.
Em Torres, cidade gaúcha mais atingida pelo Catarina, o susto de 2004 não repercutiu em reforço. Desde o Catarina, o efetivo dos bombeiros no município diminuiu de 25 para 20 militares, enquanto a população cresceu.
Força do vento é reavaliada
Como se fosse formada por caçadores de tornados de filmes americanos, nos dias 27 e 28 de março de 2004, uma equipe de cinco cientistas esteve em diversos locais atingidos pelo Catarina. Integrantes do Grupo de Estudos de Desastres Naturais (GEDN), do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), formaram uma parceria com a Defesa Civil catarinense e realizaram estudos in loco para identificar a intensidade do fenômeno. Como não havia equipamentos confiáveis de medição da velocidade do vento, coletaram dados de outras maneiras, em campo (fotografias, entrevistas e mensurações) e nos relatórios de Avaliação de Danos (Avadan) enviados à Defesa Civil. Também foram distribuídos 161 questionários em Passo de Torres, Balneário Gaivota, Arroio do Silva, Araranguá, São João do Sul, Sombrio e outros nove municípios. Antes do resultado, os cientistas tinham certeza de que a força do Catarina era inédita no país.
— Fomos a única equipe do mundo que esteve no olho do furacão — diz o professor Masato Kobiyama, que foi integrante do grupo e hoje leciona a disciplina de Gerenciamento de Desastres Naturais na UFRGS.
Dos estudos nasceu o artigo "Impacto do furacão Catarina sobre a região sul catarinense: monitoramento e avaliação pós-desastre". Os dados apontaram que o Catarina chegou perto de 180 km/h, alcançando o nível 2 na escala Saffir-Simpson, que mede a velocidade do vento dos furacões. A conclusão não foi uma unanimidade no meio científico. Até hoje, boa parte dos meteorologistas considera que o nível foi 1, com velocidade máxima de 153 km/h. Há ainda quem não admita sequer a classificação de furacão, mantendo a concepção de ciclone.
O debate sobre o Catarina se prolongou, gerou artigos científicos, congressos e, na prática, nenhuma medida para minimizar os efeitos de um novo furacão para a população que vive em lugares de risco, lamenta o geógrafo Emerson Vieira Marcelino, um dos autores do estudo. Decepcionado, desde 2008 é pastor evangélico em Florianópolis. Diz que, assim, chega mais perto do povo. Na comunidade, conseguiu implantar procedimentos para o caso de desastre ambiental.
O IDEAL PARA PREVER UM FURACÃO
— Boias oceanográficas
— Radares meteorológicos
— Aviões meteorológicos para sobrevoar o olho do furacão e, por meio de monitoramento local, determinar pressão, velocidade e deslocamento do sistema
— Modelos numéricos de previsão de trajetória específicos para o Brasil
PARA QUE SERVE A BOIA
— É instalada em alto-mar para captar variáveis atmosféricas (como precipitação, umidade, vento e radiação) e oceânicas (como salinidade, temperatura e pressão) que impactem nas condições climáticas do país
— É formada por diversos sensores
— Na torre superior, acima da água, há pluviômetros (para medir a quantidade de chuva), anemômetros (para indicar a direção e a velocidade do vento), espectrorradiômetros (para checar a radiação solar), termômetros, GPS e medidores da concentração de gás carbônico e da umidade relativa do ar.
— Na parte submersa, há um cabo de 4 mil metros de comprimento fixado ao fundo do mar. Ao longo dos primeiros 500 metros do cabo, a partir da superfície, há sensores como fluorômetros (que medem a concentração de flúor), espectrorradiômetros e termômetros.
Foto: Félix Zucco
Os anjos da noite
As súplicas que compuseram a sinfonia de 28 de março de 2004 em Torres se enraizaram na mente do bombeiro da reserva Sidnei Scheffer de Matos, 48 anos. Sempre que tem temporal, lembra a cena de uma mulher sobre um colchão, disputando espaço com a tesoura do teto, que caíra sobre a cama nas proximidades da Guarita.
Na escuridão, no meio do entulho, Matos foi puxando a mulher. Adiante, onde ficou menos complicado caminhar, decidiu tomá-la nos braços. Então, um destroço caiu sobre suas costas. A casa se desmanchava. Cansado, ele cruzou pelos restos do imóvel e alcançou o caminhão dos bombeiros. Deitada sobre um banco, a vítima foi levada ao QG. Lá chegando, levantou e correu. Os olhos de Matos ficam vermelhos e molhados ao contar a história. O bombeiro nunca recebeu tratamento psicológico. Também não foi promovido por bravura. A promoção veio da comunidade, que nomeou os que trabalharam nos resgates são chamados de Anjos da Noite.
Foto: Félix Zucco
Casas mais fortes
Fecham-se os olhos de Valdir da Silva Fermiano, 55 anos, descendente de açorianos cujas vidas se integravam ao mar com harmonia. Proprietário de um restaurante-pousada na beira-mar de Balneário Gaivota (SC), Fermiano parece cansado da batalha que perdeu há 10 anos. Frente à ira do Catarina, tentou segurar vidros e paredes do seu estabelecimento. Tudo ruiu ao seu redor. A reconstrução levou meses.
— A gente ficou tudo meio atordoado — suspira.
O município catarinense ainda tem vestígios da passagem do Catarina. A sede dos pescadores estava parcialmente construída, na época. Depois do furacão, nunca mais a obra foi retomada (foto acima). A tempestade mudou os costumes na construção civil de Gaivota. Mais de 80% das novas construções contam com uma laje entre o telhado e o interior das residências, estima o chefe de gabinete da prefeitura, Luiz Carlos da Silva.
Foto: Félix Zucco
Meses de internação
— Era como se eu não existisse — lembra a pescadora Maria Martins, 52 anos, sobre o furacão Catarina.
Ela estava sozinha em casa em Balneário Gaivota. Quando o telhado e o forro começaram a ser levados pela ventania, correu em direção ao banheiro. No caminho, uma telha caiu sobre o seu braço direito, quebrando-o. Maria passou horas no banheiro e viu sua casa ser despedaçada em volta. Não bastasse a devastação, logo depois a residência foi saqueada. Uma semana antes, tinha sofrido com a morte de uma filha adotiva de seis anos em um acidente de carro. A pescadora se internou em uma clínica em Ana Rech, Caxias do Sul, onde trabalhava o marido, Estevan Martins, 65 anos. Não o reconhecia. Nem aos filhos. Somente depois de seis meses é que pode deixar a clínica e voltar a Balneário Gaivota. Nunca reconstruiu o forro da casa.
— Perdi o amor pela casa — diz.
Em dia de vento forte e chuva, ela toma calmantes.
Foto: Félix Zucco
Sem indenização
Uma década depois do Catarina, o bairro das Ilhas, em Araranguá (SC), ainda não se recuperou. As ruínas da oficina de Hamilton Vieira Valério, 56 anos, tornaram-se o símbolo dos efeitos do furacão na região. Descobriu os estragos no dia seguinte, após ter passado uma noite e madrugada terríveis segurando a porta de casa com uma mesa na tentativa de conter o vento. Sem dinheiro para reformar a oficina, Valério foi deixando para depois. O mato tomou conta do espaço, que virou um depósito de entulhos. Como o local não servia de moradia, ele não obteve uma indenização do governo. Nem as telhas conseguiu.
— A única coisa que o Estado deu foi telha. Mas, quando fui buscar, não tinha mais. Tem gente que levou telhas de caminhão, antes de mim — recorda.
Além da oficina, Valério perdeu um Passat, uma canoa, um trailer e equipamentos de solda, tudo esmagado por destroços.
Foto: Félix Zucco
Da ruína à superação
Na feição séria do agricultor Valentim Zanoni, 52 anos, estampa-se a recordação nada bem-vinda. Naquela noite, o susto foi compartilhado pela mulher e pelos três filhos na roça, na Barra da Sanga, Forquilhinha (SC). As crianças foram para debaixo da mesa. Os pais se apavoravam com o aguaceiro que invadia a residência. Os equipamentos de plantio voavam no galpão. No final, o milharal de seis hectares estava perdido.
— Nunca vi o milho ficar deitadinho, assim — lembra.
Zanoni não esmoreceu. Baixou a cabeça, replantou o milho, que agora viceja a caminho da colheita. Hoje, a vida está melhor. Fala com orgulho do carro e da casa novos. Restou a ponta de insegurança quando um relâmpago aparece no horizonte:
— Tenho medo. Dá essas trovoadinhas, e a gente acha que não vai dar nada. Mas eu vou para dentro de casa.
Foto: Félix Zucco
Marcado pelo SPC
Perder a casa em Passo de Torres (SC) não foi o único incômodo para o ex-pescador João Carlos Kejellim e sua família. Aos 45 anos, ele diz estar irremediavelmente marcado pelo SPC, o Serviço de Proteção ao Crédito. Não pode comprar carro, financiar imóvel, nada. Tudo por causa do Catarina. Nada sobrara da residência além de uma mesa, a geladeira e o fogão.
— A prefeitura construiu uma casa nova, mas resolveu nos cobrar R$ 55 por mês. Não conseguia nem comprar comida para os filhos, como ia pagar isso?
A família ficou dois anos no imóvel emprestado, em situação precária. Adquiriu uma padaria e a vida melhorou um tanto. O nome do ex-pescador, porém, continua no SPC. Ele investe na amizade com um ex-vereador para tentar limpar a ficha.
Foto: Félix Zucco
Exemplo de resiliência
Em fevereiro deste ano, um ciclone de amplitude bem menor do que o Catarina atingiu a região mais frágil de Torres, nas cercanias do Parque da Guarita. Passou mais concentrado do que o Catarina, sem abranger grandes áreas. Bem no meio do caminho do aguaceiro e da ventania estava a pousada de Maria Selena Assmann, 53 anos. Ela costuma dizer que está há 15 anos em Torres sem que o vento consiga "correr com a gente".
— Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come — brinca.
Finca pé e reconstrói o que foi perdido. Como a pousada, completamente destelhada pelo ciclone, resultando em perdas financeiras gigantes para Maria Selena, como o cancelamento das reservas para o Carnaval. Telhas doadas pela prefeitura ajudaram a recompor um pouco a construção. Só que ainda falta muito para arrumar, e a obra deve levar o ano todo na Rua Santa Luzia, calcula Maria Selena.

Fonte: ZeroHora.

Nenhum comentário: