Fomos nós que fizemos a chuva – O empresário Rodolfo Acri nunca imaginou que estivesse entrando em atividade de risco quando montou, ao longo dos últimos 17 anos, seu complexo turístico na cidade de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Ele comprou o histórico teleférico da cidade, que opera desde 1974, e o ampliou para 1.500 metros de extensão (um dos maiores do Brasil). Ao lado do teleférico, abriu um hotel, um boliche e um parque de diversões. Na madrugada de 12 de janeiro, o complexo turístico de Acri foi atingido pelas chuvas que praticamente arrasaram a região. Parte do hotel e do boliche desabou. A água derrubou a base do teleférico e destruiu a casa das máquinas. Acri estima o prejuízo em R$ 5 milhões. “Nunca houve uma enchente tão grande quanto esta”, diz. O empresário espera que o BNDES libere metade do valor para começar a reconstruir as atrações e empregar novamente seus 50 funcionários. “Mesmo que eu não consiga a ajuda financeira, vou reconstruir tudo. Não quero ser vencido pela chuva.” Acri já tem um novo projeto para o teleférico, que terá a base elevada a 1,5 metro do solo, altura que as águas alcançaram em janeiro. Esse cuidado será o suficiente? Reportagem da Revista Época Online.
Segundo os cientistas, talvez não. Olhar os recordes do passado não nos ajudará a nos preparar. O conjunto de gases de efeito estufa que a atividade humana está lançando na atmosfera está mudando o clima. Entre as consequências esperadas estão o aumento da frequência e a intensidade das tempestades. Na semana passada, duas pesquisas independentes mostraram, pela primeira vez, que isso já começou a acontecer em larga escala. Os estudos, publicados pela revista científica britânica Nature, devem reduzir a cautela dos cientistas em associar as tragédias recentes ao aquecimento global. E têm um efeito imediato: quem planeja construir ou reformar o que foi atingido pelas chuvas precisa considerar que as próximas tempestades poderão ser ainda mais destrutivas e mais frequentes.
Os pesquisadores, das universidades de Edimburgo, no Reino Unido, e de Victoria, no Canadá, analisaram os recordes anuais de chuvas de 6 mil estações meteorológicas da América do Norte, Europa e Ásia durante o período de 1951 a 1999. Depois, usando dezenas de modelos diferentes de simulação do clima no computador, compararam como teria sido o comportamento da atmosfera em cada um desses lugares sem os gases de efeito estufa lançados por nós. A conclusão é que o aquecimento global gerado pela humanidade intensificou dois terços dos recordes anuais de chuva registrados pelas estações. A pesquisa não mediu qual foi o tamanho da contribuição humana para as chuvas recordes. A influência foi ainda pequena nessas cinco décadas, quando os gases começaram a se acumular na atmosfera. As maiores consequências são esperadas a partir da próxima década. Outro grupo de pesquisa, liderado por pesquisadores da Universidade de Oxford, se concentrou em um evento específico: as chuvas causaram no Reino Unido, no ano 2000, as piores enchentes desde que as medições começaram, em 1766. Segundo várias comparações com modelos de computador capazes de prever o clima para um local preciso, os cientistas concluíram que o aquecimento global aumentou entre 20% e 90% a chance de haver enchente.
Essas descobertas têm consequências imediatas. Até certo ponto chuvas fortes fazem parte da rotina. No verão, as cidades brasileiras convivem com os transtornos de tempestades, como a que fez um lago transbordar em São Paulo na semana passada. O que vem acontecendo nos últimos anos é diferente. Trata-se de uma onda inédita de grandes catástrofes, que seriam esperadas uma vez a cada século. No início deste ano, uma chuva recorde nas cidades de Friburgo, Petrópolis e Teresópolis (na região serrana do Estado do Rio de Janeiro) deixou quase 1.000 mortos, entre soterrados e afogados. Antes disso, houve as chuvas do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, em 2008, as enchentes e os deslizamentos que mataram quase 300 pessoas no início de 2010, no Estado do Rio, e a devastação de São Luiz do Paraitinga, em São Paulo. Ainda em 2010, Alagoas e Pernambuco tiveram cidades arrasadas pelas chuvas. No resto do mundo, a tendência foi semelhante. A maior enchente da história do mundo matou em julho mais de 1.700 pessoas no Paquistão e mais de 3 mil na China – a destruição de plantações afetou mais de 30 milhões de pessoas. Em janeiro de 2011, as chuvas na Austrália alagaram uma área maior do que a França e a Alemanha juntas. Segundo a ONU, 2010 foi um dos piores anos da história em catástrofes naturais.
As tragédias e as previsões de mais alterações causadas pelo aquecimento global trazem um alerta para quem vai construir ou reformar pontes, ruas, prédios ou mesmo uma casinha na montanha. Os engenheiros costumam olhar para o histórico de chuvas da região e planejam sua obra para resistir ao pior evento que pode acontecer naquele lugar. É a chamada “chuva do século”, que cai uma vez a cada 100 ou 500 anos. Essa precaução não é mais o bastante. “O grande pressuposto é que o clima no futuro, ao longo da vida útil daquela estrutura, será o mesmo que o do passado”, disse a ÉPOCA Zuebin Zhang, um dos autores do estudo canadense. “Isso não vale mais. Os engenheiros vão precisar considerar as mudanças climáticas de agora em diante.”
Quanto vão aumentar as chuvas? Os cientistas não sabem. Os modelos climáticos revelam que, para cada grau de aquecimento da Terra, a umidade da atmosfera aumenta de 6% a 7%. Isso poderia levar a chuvas até 30% mais fortes daqui a 90 anos, segundo os cenários de mudanças climáticas mais considerados pelos cientistas. Alguns países e empresas já começaram a levar isso em conta. Há dois anos, a prefeitura de Londres começou obras para aumentar a altura das barragens que protegem a cidade das enchentes do Tâmisa.
No Brasil, as projeções do clima mostram que até 2050 as regiões Sul e Sudeste terão um aumento entre 10% e 30% na frequência e intensidade das chuvas. Elas serão, porém, irregulares. “O aquecimento global vai afetar o ciclo hidrológico e acelerar o processo de precipitação”, afirma José Marengo, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Isso quer dizer que os 100 milímetros de chuva previstos para cair durante todo o mês numa determinada região podem cair em apenas dois dias.” Serão, portanto, chuvas muito mais fortes. Nas regiões Norte e Nordeste, o volume de chuvas pode reduzir drasticamente. “As áreas quentes do Oceano Atlântico, responsáveis pela formação de nuvens que trazem umidade para o Nordeste, mudarão de posição.”
Isso significa que obras projetadas para aguentar o grande evento climático dos séculos passados estarão expostas com frequência aos riscos de enchentes, inundações e deslizamentos de terra no futuro. Segundo um estudo do ano passado feito pelo Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Inpe e pelo Núcleo de População da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mais de 20% da região metropolitana da cidade de São Paulo estará sujeita a inundações ou desabamentos, caso não ocorra uma mudança no padrão de uso e ocupação do solo. “O aquecimento global exige uma mudança na percepção do risco climático”, afirma Luiz Pinguelli Rosa, diretor da Coppe, o Departamento de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na semana passada, ele entregou à presidenta Dilma Rousseff um documento com sugestões para engenharia e planejamento na região serrana do Rio. Entre as medidas estão o mapeamento de áreas vulneráveis, sistemas de previsão e alerta, obras de proteção de encostas e educação ambiental para que a população aprenda a agir em situações de emergência.
Um passo inicial é a criação do Sistema Nacional de Prevenção e Alerta de Desastres Naturais, do Ministério de Ciência e Tecnologia. A operação é coordenada por Carlos Nobre, do Inpe, um dos principais cientistas do clima no Brasil. O sistema juntará dados de áreas de risco de deslizamento com as previsões e observações de chuvas de radares meteorológicos. Seu cérebro será o supercomputador Tupã, que custou R$ 50 milhões e entrou em funcionamento em 28 dezembro. O sistema deverá estar todo pronto em quatro anos, mas já no próximo verão haverá dados das áreas mais críticas.
“A intenção é que o sistema identifique o risco de um desastre com no mínimo 24 horas de antecedência”, diz Nobre. “Poderemos lançar alertas de desastre iminente entre duas e seis horas antes, com a ajuda da Defesa Civil.” Humberto Viana, secretário nacional de Defesa Civil, diz que a entidade está trabalhando para criar uma aproximação mais intensa com Estados e municípios. “Hoje a comunicação é muito formal. Não podemos ficar isolados. Isso precisa mudar”, diz. Estão previstas também ações educativas nas comunidades, remoção de moradias em áreas de risco e aumento da fiscalização para que não ocorram ocupações irregulares.
Mas isso é só um passo. Também será preciso transformar o que está construído e mudar as regras para novas edificações. A mineradora Vale, que teve problemas recentes com inundação de ferrovias, está readaptando terminais de carga, pontes e armazéns, prevendo um aumento de 30% na chuva. Após as chuvas de janeiro, a prefeitura de Teresópolis, no Rio de Janeiro, optou por mudar de lugar todo o bairro de Campo Grande, praticamente destruído. “Grande parte do bairro virou área de risco”, afirma Flávio Castro, secretário do Meio Ambiente e Defesa Civil do município. “Mesmo que as chuvas aumentem, os antigos moradores de lá estarão em um lugar mais seguro.” Os terrenos para a construção das moradias, no entanto, ainda não foram definidos.
Os estudos divulgados na semana passada deixam pouca dúvida: a frequência de chuvas extraordinárias deve aumentar. Cabe a nós – governos e cidadãos – estarmos mais preparados. E apressar as ações para reduzir as emissões de gases responsáveis pelo aquecimento global, para evitar que as tragédias climáticas ameacem a civilização que nossos filhos vão herdar.
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FONTE : EcoDebate, 23/02/2011
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