FORTALECER PARA PARTICIPAR, ENFRENTAR E INCIDIR
O 1º ano do Projeto Garantindo Direitos traz bons resultados: a certeza da capacidade indígena de enfrentar e confrontar os poderes constituídos para que respeitem as leis indigenistas.
As equipes do CIMI em Tefé, no Amazonas, pertencente ao Regional Norte I, apoia e caminha junto com os povos indígenas da região do médio rio Solimões há mais de 40 anos. Nessa caminhada, muitas pedras que surgiram precisaram ser contornadas. Mas, enfrentando os percalços, vários projetos permitiram importantes conquistas sobre os territórios, políticas públicas e valorização das culturas indígenas da região.
Em tempos atuais, mais do que nunca é preciso perseverança e força na luta. As pedras da atualidade aumentaram de peso e os povos originários enfrentam tempos difíceis, especialmente os povos da Amazônia. Como disse o Papa Francisco durante o encontro com os povos indígenas, em Porto Maldonado, no Peru, dia 19 de janeiro: “provavelmente os povos indígenas amazônicos originários nunca estiveram tão ameaçados em seus territórios como estão agora”, referindo-se às expropriações das riquezas da Amazônia. “A Amazônia é uma terra disputada em várias frentes: o neoextrativismo e a forte pressão de grandes interesses econômicos que apontam sua ganância sobre petróleo, gás, madeira, ouro, monoculturas agroindustriais”, alertou o Pontífice.
Foi com esta preocupação e a missão de contribuir com o fortalecimento dos conhecimentos e habilidades indígenas da região, para enfrentar com coragem e determinação os invasores de seus territórios e os órgãos responsáveis por seus direitos, que as equipes do CIMI em Tefé e a Cáritas de Tefé iniciaram em 2016, o projeto “Garantindo a defesa de direitos e a cidadania dos povos indígenas do médio rio Solimões e afluentes”. Com apoio da União Europeia e da Agência Católica para o Desenvolvimento Internacional (CAFOD), o objetivo traçado foi de “fortalecer as capacidades das lideranças e organizações dos povos indígenas na região, para participação nos processos de consulta e tomada de decisões, influenciar políticas públicas e garantir a exigibilidade e proteção de seus direitos humanos, civis e políticos”.
De 2016 a 2017, as atividades do projeto foram desenvolvidas com mais de 1000 indígenas dos povos Kanamari, Madja Kulina, Miranha, Kambeba, Mayoruna, Maku Nadëb, Kokama e Tikuna, dos municípios de Tefé, Japurá, Carauari, Maraã e Itamarati e possibilitaram vários momentos de troca de informações e experiências entre as comunidades dos diferentes povos. Com as realidades específicas de cada local, somadas às informações sobre cidadania e direitos indígenas levadas pelas equipes do CIMI e Cáritas, os conhecimentos de todos se ampliavam a cada encontro, a cada oficina.
Formação Político-jurídica.
Organizado em três eixos temáticos, o projeto previu Formação Político-jurídica, Ações de Proteção e Incidência e Fortalecimento Institucional. Nas Oficinas foram estudados os direitos individuais e coletivos. Direitos humanos, civis, políticos, sociais, econômicos e culturais que cada pessoa ou cada grupo de pessoas deve ter para viver com dignidade. O professor indígena Antônio Alexandre Kanamari diz que aprendeu muito: “Eu pensava que só tínhamos direitos depois de tirar documento, mas aprendi que temos vários outros e que o ser humano já nasce com direito”, constata o professor.
Nos encontros, os indígenas do médio rio Solimões identificaram os direitos que estão sendo violados em suas vidas, entre eles estão: invasão e falta de demarcação de seus territórios; descaso com a saúde diferenciada e educação escolar indígena; discriminação a sua cultura; falta de documentação; completa desconsideração à consulta livre, prévia e informada que lhes é garantida pela Convenção 169 da OIT. “Entendemos o quanto nossos direitos são violados, mesmo estando nas leis. Esses conhecimentos dos nossos direitos são importantes para saber cobrar das autoridades”, afirmou o Kanamari.
Mutirões em Defesa dos Direitos
Outro momento de formação foram os Mutirões em Defesa dos Direitos que reuniu os povos Kokama, Kambeba, Ticuna, Miranha, Madija e Kaixana, em Tefé, e Deni, Kanamari e Madija Kulina, em Itamarati, para promover debates, palestras, trabalhos em grupo, plenárias e apresentações culturais. Os objetivos foram de dar as mãos, saudar o coração e ampliar os conhecimentos.
Nos dois Mutirões, as violações de direitos foram novamente denunciadas e os indígenas produziram Cartas Abertas exigindo maior responsabilidade dos órgãos públicos, políticas públicas específicas e proteção aos territórios e comunidades. Segundo o professor indígena Kavarivi Minu Deni, da Aldeia Morada Nova, em Itamarati, o Mutirão em Defesa de Direitos permitiu aprofundar o conhecimento sobre a legislação indígena brasileira e, com isso, ter uma posição firme diante de leis que vão contra a vida indígena: “No Mutirão de Direitos aprendemos sobre os direitos humanos e sobre as leis que o Brasil tem para nós indígenas. Estudamos a PEC 215 e vimos que ela é desumana. Não serve para nós, porque vai mexer em nossas terras”, concluiu Kavarivi, afirmando que seu povo “não aceitará essa lei. Esse governo não tem responsabilidade. Essa PEC vai parar”.
Incidências Políticas
Os indígenas participantes do projeto foram além dos estudos. Fizeram incidência política com os órgãos públicos municipais e em Brasília e foram às ruas mostrar para a população dos seus municípios a sua cultura e denunciar as violações de direitos que sofrem.
Muitos resultados foram alcançados nas incidências políticas: em Tefé, os Kokama, Kambeba, Tikuna, Kaixana e Miranha se reuniram com o Ministério Público Federal, que garantiu o atendimento à saúde para suas comunidades no Polo de Saúde Indígena Barreira da Missão; Em Carauari, os indígenas Kanamari e Madijá Kulina denunciaram ao ICMBio e no rádio as invasões de madeireiros, pescadores e caçadores em suas terras. Depois das denúncias, as invasões diminuíram. A Associação do Povo Takuna do Rio Xeruã (ASPOTAX) se reuniu com a Secretaria Municipal de Educação de Itamarati e disse que não concordava com a contratação de uma professora que não mora na aldeia. A secretaria aceitou a reivindicação. Em Japurá, os indígenas Maku Nadëb, Baré e Kaixana foram à Câmara de Vereadores e entregaram às autoridades um documento com suas demandas de saúde, educação e proteção de seus territórios. O debate foi intenso, mas as lideranças foram firmes.
Em Brasília, uma delegação dos indígenas da região se reuniu com o MEC, a SESAI e a FUNAI para apresentar seus problemas com educação, saúde e territórios. Protocolaram documentos e gravaram em áudio os compromissos assumidos pelas autoridades. As respostas evasivas mostraram o quanto o Estado brasileiro está desconsiderando os direitos indígenas. A FUNAI demonstrou interesse em resolver os problemas, mas vem recebendo cortes orçamentários comprometedores pela atual política nacional.
O saldo é positivo, apesar das pedras
No entanto, o saldo positivo destas atividades todas está no conhecimento dos indígenas sobre o que lhes é de direito enquanto pessoas e cidadãos, sobre o funcionamento da política indigenista brasileira e na certeza de que são capazes de enfrentar e exigir das autoridades o cumprimento de suas responsabilidades.
O tuxaua Jó dos Santos Kokama, da comunidade Boara de Cima, em Tefé, resume os resultados do 1º ano do projeto: “Antes nós indígenas tínhamos pensamento, língua, mas não sabíamos falar. Com a presença do CIMI, nós agora temos pensamento, língua, boca e sabemos falar”.
Como bem disse o Papa Francisco, “agora sejam vocês mesmos que se autodefinam e nos mostrem sua identidade. Precisamos escutá-los”. É o que os povos do médio rio Solimões pretendem fazer: falar e exigir os seus direitos.
Colaboração de Ligia Kloster Apel, Comunicação comunitária e educação popular, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 31/01/2018
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