Com título extraído da interpretação do hexagrama 24 do milenar clássico chinês “I Ching – O Livro das Mutações”, a obra “O Ponto de Mutação” pode ser considerada uma consistente concepção teórica do que hoje chamamos sustentabilidade, a partir da visão sistêmica da vida como uma teia de relações interdependentes. Publicado há 30 anos pelo físico austríaco Fritjof Capra, o livro analisa a evolução humana à luz da ciência e demonstra, como propõe o texto chinês, que “após uma época de decadência vem o ponto de mutação” na seqüência natural do ciclo da vida. Esse padrão que Capra identifica em variados momentos históricos sintetiza também a expectativa em torno da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. O conjunto de eventos em escala mundial que acontecem até 26 de junho no Rio de Janeiro constitui uma oportunidade para influenciar as lideranças políticas, sociais e empresariais na direção da sustentabilidade socioambiental como solução para a crise sistêmica da economia global – “o ponto de mutação” da civilização contemporânea.
Dois eixos temáticos foram definidos pela ONU – Organização das Nações Unidas para os debates no Rio: “A Economia Verde no Contexto do Desenvolvimento Sustentável e da Erradicação da Pobreza” e “Governança Global para o Desenvolvimento Sustentável”. A harmonização entre as vertentes social, econômica e ambiental – que constitui o conceito de sustentabilidade – tem nesta Conferência um novo capítulo para enfrentar os históricos desafios da erradicação da pobreza e da estruturação de uma nova governança global. A chamada Economia Verde é alvo de uma acirrada polêmica: enquanto busca aplicar tecnologias para reduzir a emissão de carbono com a criação de empregos decentes e inclusão social, o conceito poderia servir como maquiagem para uma reforma superficial do atual modelo econômico, sem alterar substancialmente as condições que periodicamente produzem crises financeiras e permitem a ampliação da desigualdade social.
O Futuro em Pauta
A lentidão é necessariamente característica de uma transição desse porte. Trata-se de avaliar e reduzir os impactos socioambientais das atividades humanas num cenário em que o crescimento da população mundial pressiona o consumo de recursos naturais além da capacidade de reposição do planeta. O primeiro debate global sobre essa encruzilhada civilizatória ganhou corpo em Estocolmo, Suécia, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em 1972, quando foi criado o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Mas só 15 anos depois um grupo de notáveis reunidos na Comissão Mundial do Meio Ambiente elaborou um diagnóstico aprofundado sobre a situação planetária – o relatório “Nosso Futuro Comum”, que lançou as bases do conceito “desenvolvimento sustentável” e sugeriu a convocação da Rio-92. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada 20 anos atrás pode ser considerada o ponto de chegada de um processo de negociação que tinha mandato específico para produzir a Convenção do Clima, a Convenção da Biodiversidade, a Agenda 21 e iniciou a consolidação da posterior Convenção de Combate à Desertificação. Embora relevantes e significativos porque estabeleceram um novo patamar de abordagem dessas questões críticas para a humanidade, todos esses pactos – incluindo a bem intencionada Declaração do Rio – conduziram a compromissos parciais e progressos pontuais – muito aquém da necessária revisão dos padrões de exploração dos recursos naturais que ameaçam o equilíbrio ecossistêmico.
Duas décadas depois daquela cúpula histórica, a Rio+20 se caracteriza mais como um ponto de partida, com a possibilidade de ampliar o debate sobre a necessidade de alterar os padrões de produção e consumo para desviar a economia planetária da trajetória crítica de exploração abusiva dos recursos naturais.
Se, tal como no relatório “Nosso Futuro Comum”, o porvir continua no horizonte de preocupações das Nações Unidas, desta vez no entanto a Conferência não tem mandato para produzir acordos que responsabilizem governos, empresas ou cidadãos. O principal documento a ser publicado no final da Conferência, com o expressivo título “O Futuro que Queremos”, será então uma declaração de intenções de mais de uma centena de chefes de Estado e de governo, sem instrumentos para transformá-las em obrigações de qualquer espécie.
A inexistência de um acordo forte não autoriza, porém, uma avaliação antecipada que considere um fracasso a Rio+20. Secretário (com status de ministro) do Meio Ambiente durante a Rio 92, o professor José Goldenberg lembra que naquela Conferência foi feito um grande esforço para adotar medidas mandatórias, como as citadas convenções. “Mas, além desses tratados, foi adotada a Agenda 21, que tem um caráter parecido com o da Rio+20: é um conjunto de exortações, um conjunto de propostas. Não tem metas, simplesmente delineia caminhos. A Agenda 21 não foi aprovada em 1992: os governos não votaram. Ela se tornou um compromisso voluntário, mas curiosamente milhares de prefeitos em todo o mundo acabaram adotando muitas daquelas medidas e avançaram em direção à sustentabilidade.”
Sem mandato para voos mais ambiciosos, a Rio+20 deve gerar uma “Plataforma de Compromissos” voluntários de governos, empresas e organizações sociais; um conjunto de “Recomendações da Sociedade Civil” como resultado dos Diálogos sobre Desenvolvimento Sustentável; e finalmente a Declaração dos chefes de Estado e de governo: “O Futuro que Queremos”.
Mundo à Parte
Foi uma iniciativa do governo brasileiro propor os 4 dias de “Diálogos”, que devem atrair ao Riocentro até 50 mil participantes – de Organizações Não Governamentais, empresas e movimentos sociais do mundo todo – para “gerar propostas inovadoras de como a sustentabilidade pode ser aplicada a uma série de questões”, de segurança alimentar a migrações, passando pelo complexo tema da produção e consumo sustentáveis. Esse evento ocorreu entre 16 e 19 de junho, encravado entre a Prepcon – conferência preparatória que do dia 13 ao dia 15 reuniu a alta diplomacia internacional mas precisou estender o prazo até a madrugada do dia 19 para dar contornos finais ao documento “O Futuro que Queremos” – e a cúpula de governantes propriamente dita, do dia 20 ao dia 22.
Acreditam os mais otimistas entusiastas que os “Diálogos” são uma plataforma que permite à sociedade global influenciar os governantes para a adoção de um mínimo de metas em direção ao desenvolvimento sustentável. “O Futuro que Queremos” tinha ao fim da Prepcon uma edição reduzida do documento que chegou a ter mais de 300 páginas recheadas de sugestões oferecidas por países, ONGs, empresas e movimentos sociais, e sistematizadas pela Secretaria Geral da Conferência. Sob protestos de ONGs e delegações importantes como a da União Européia, restaram, porém, numerosos colchetes [que no jargão da diplomacia são trechos do texto oficial sobre os quais não existe consenso] cujo conteúdo final deverá ser decidido somente pelos governantes, além de acolher novas sugestões. É nesse espaço que a sociedade civil pode exercer pressão por meio das “Recomendações” remetidas aos participantes da cúpula.
“Pela primeira vez nós estamos promovendo um diálogo da sociedade civil com os chefes de governo e chefes de Estado a partir de uma pauta específica” – explicou-me a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. “Antes você ficava com o chefe de Estado num mundo à parte, encastelado. Agora, não: nós estamos colocando no mainstream político o setor produtivo e a sociedade civil latu sensu – mulheres, negros, todos os movimentos sociais – para debater esses temas estratégicos da agenda mundial.”
Os “Diálogos” atendem ao que proclama o Princípio 10 da “Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento” (assinada na Rio 92): “A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados”. A participação esteve aberta até o dia 3 de junho e as sugestões foram sistematizadas em 10 Painéis (veja quadro com temas) de debates – transmitidos pela webtv das Nações Unidas – e encaminhadas diretamente aos chefes de Estado e de Governo como “Recomendações”.
O mecanismo de interação entre os “Diálogos” e os governantes não significa, porém, que o “mundo à parte” estará aberto à escuta das demandas da “vida real”. A mais espessa das nuvens de interesses que separam os dois mundos se resume à questão invocada pelos céticos da Economia Verde: “Quem vai pagar a conta?” O secretário-geral da Rio+20, Sha Zukang, resumiu as divergências ao apontar a expectativa de que os países desenvolvidos “avancem mais rapidamente para mudar os padrões de consumo insustentáveis” e “cumpram a promessa de ajuda ao desenvolvimento”. Era uma referência ao fato de que os US$ 129 bilhões doados pelos países ricos em 2010 representam menos da metade dos 0,7% do PIB que, em setembro de 2000, eles acordaram oferecer anualmente às agências da ONU para ajudar os mais pobres a atingir em 2015 os Objetivos do Milênio (ODM) – um conjunto de 8 metas que devem ser alcançadas para melhorar a qualidade de vida das populações mais carentes. Já os países em desenvolvimento, segundo o diplomata chinês, “precisam evitar o modelo de crescimento convencional, baseado no uso intensivo de recursos naturais“.
Do G-20 à Rio+20
A avaliação prévia de Zukang indica que a Rio+20 é em essência uma Conferência que mira o futuro, que pretende estabelecer rumos para o desenvolvimento sustentável a médio e longo prazos – a despeito da urgência que despertam a frequência cada vez maior de eventos extremos provavelmente causados por mudanças climáticas, a assustadora crise financeira global e o vertiginoso aumento dos preços dos alimentos, do petróleo e de outras commodities baseadas em recursos naturais. No curto prazo, curtíssimo aliás, os líderes dos maiores países ricos mais a União Européia ficaram frente a frente, nos dias 18 e 19 de junho, com os governantes dos 8 maiores países emergentes na reunião do G-20. Evidentemente terão impacto na cúpula do Rio as decisões desse encontro no México, sobretudo no que se refere às medidas para debelar a persistente crise que mantém instáveis os mercados financeiros de todo o mundo. Se a Economia Verde pode oferecer instrumentos para a sonhada mudança estrutural da economia global, uma fresta se abrirá nestes dias, quando a maior parte dos chefes de Estado e de governo voará de Los Cabos, na Califórnia mexicana, para debater o Desenvolvimento Sustentável no Rio de Janeiro.
A diplomacia brasileira aposta que a anunciada ausência do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e da chanceler alemã, Angela Merkel, está amplamente compensada pela presença maciça dos emergentes – o grupo de países que mais cresceram e transformaram a economia global nas duas décadas recentes. Em consequência dessa transformação, o Brasil já tem 7% dos empregos formais gerados por empreendimentos “verdes”, de acordo com estudo publicado semana passada pelo Pnuma em colaboração com a OIT (Organização Internacional do Trabalho). O estudo defende que uma economia mais verde é sinônimo de criação de mais empregos.
Uma forma de facilitar o engajamento da sociedade global nos esforços para construir uma Economia Verde pode ser o estabelecimento dos ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – que a exemplo dos Objetivos do Milênio seriam compromissos com metas, prazos e resultados definidos. Mas a crise financeira global e a diversidade de estágios das economias nacionais são barreiras que impedem um consenso entre os representantes de mais de 190 países – a desgastante fórmula de negociação multilateral adotada pelas Nações Unidas. O que se espera agora, mais modestamente, é que haja uma declaração de princípios, com prazo para negociação de metas até 2015.
Governança e Segurança
Seja qual for o nível de ambição dos consensos pactuados para implementar a Economia Verde com inclusão social, a governança global para o desenvolvimento sustentável também passará por uma revisão. Uma das opções que se estuda, considerada modesta mas com apoio aberto do governo brasileiro, é melhorar o status do Pnuma – o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, que hoje funciona à mercê das doações (às vezes “carimbadas” para financiar atividades específicas) de um grupo reduzido de 58 países. O Programa seria transformado numa agência com mandato semelhante ao da Organização Mundial do Comércio para negociar políticas e impor sanções.
“Estamos falando de clima, de migrações, de desertificação, de economia, de segurança alimentar. É um problema de segurança” – defende o ambientalista Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra – Amazônia brasileira. “E o Conselho de Segurança é a instância das Nações Unidas que deveria ser objeto da discussão no âmbito da sustentabilidade. Aí sim, como anfitrião da Rio+20 e liderança ambiental, pautar esse tema estaria condizente com as pretensões que o Brasil legitimamente guarda em relação a ter um assento permanente no Conselho de Segurança.”
Com tantas implicações políticas e econômicas de gravidade extrema, é mais provável que surja na Conferência uma proposta de criação de um Conselho do Desenvolvimento Sustentável, com suporte político da Assembléia Geral das Nações Unidas para estimular a implementação da Economia Verde – mas sem força para impor sanções.
Outro tema que desperta paixões na Rio+20 é a substituição do conceito de Produto Interno Bruto (PIB) para medir a atividade econômica. “Você destrói uma floresta inteira, mas como existe atividade, e um produto gerado, isto vai aumentar o PIB, ta certo?” – pergunta o ex-ministro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, ao defender o estabelecimento de uma nova métrica. A ONU lançou no domingo, dia 17, o IRI – Índice de Riqueza Inclusiva; num ranking de 20 países que têm 72% do PIB mundial, o Brasil aparece em quinto lugar, ao lado do Japão e do Reino Unido, apesar de ter perdido 25% dos recursos naturais nos 20 anos analisados pela Universidade das Nações Unidas. Mas não existe, até agora, nenhuma indicação de que o IRI terá validade reconhecida por organismos que acompanham a evolução econômica dos países.
Limites da Inovação
No centro do debate que se intensifica na Rio+20, encontra-se na fronteira do conceito de Economia Verde o paradoxo entre os limites de um planeta finito e as possibilidades de superação das crises que a inovação tecnológica proporciona. “Até hoje, todas as previsões de catástrofes iminentes ou quase iminentes foram superadas por revoluções tecnológicas” – pondera o ex-ministro Goldenberg. “Um dos problemas mais agudos, o do suprimento de energia limpa, seguramente tem solução porque há uma fonte inesgotável, que é o Sol. Nós a estamos usando apenas parcialmente, com a eólica e as células fotovoltaicas, que são energias solares.”
É também a capacidade criativa do homem que lhe permitiu nos anos recentes reconhecer limites e aprender a reduzir o consumo, reutilizar e reciclar recursos naturais. “Mas as revoluções tecnológicas não resolvem um problema, que é o problema da equidade, o problema de atender às necessidades dos mais pobres sem provocar a reação adversa dos mais ricos” – acrescenta o físico José Goldenberg. Talvez seja este o sintoma mais agudo de decadência de um sistema, que o também físico Fritjof Capra identificou como ponto de mutação para uma nova ordem na sociedade humana.
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FONTE : * Sávio de Tarso é jornalista.
(Agência Envolverde)
Dois eixos temáticos foram definidos pela ONU – Organização das Nações Unidas para os debates no Rio: “A Economia Verde no Contexto do Desenvolvimento Sustentável e da Erradicação da Pobreza” e “Governança Global para o Desenvolvimento Sustentável”. A harmonização entre as vertentes social, econômica e ambiental – que constitui o conceito de sustentabilidade – tem nesta Conferência um novo capítulo para enfrentar os históricos desafios da erradicação da pobreza e da estruturação de uma nova governança global. A chamada Economia Verde é alvo de uma acirrada polêmica: enquanto busca aplicar tecnologias para reduzir a emissão de carbono com a criação de empregos decentes e inclusão social, o conceito poderia servir como maquiagem para uma reforma superficial do atual modelo econômico, sem alterar substancialmente as condições que periodicamente produzem crises financeiras e permitem a ampliação da desigualdade social.
O Futuro em Pauta
A lentidão é necessariamente característica de uma transição desse porte. Trata-se de avaliar e reduzir os impactos socioambientais das atividades humanas num cenário em que o crescimento da população mundial pressiona o consumo de recursos naturais além da capacidade de reposição do planeta. O primeiro debate global sobre essa encruzilhada civilizatória ganhou corpo em Estocolmo, Suécia, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em 1972, quando foi criado o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Mas só 15 anos depois um grupo de notáveis reunidos na Comissão Mundial do Meio Ambiente elaborou um diagnóstico aprofundado sobre a situação planetária – o relatório “Nosso Futuro Comum”, que lançou as bases do conceito “desenvolvimento sustentável” e sugeriu a convocação da Rio-92. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada 20 anos atrás pode ser considerada o ponto de chegada de um processo de negociação que tinha mandato específico para produzir a Convenção do Clima, a Convenção da Biodiversidade, a Agenda 21 e iniciou a consolidação da posterior Convenção de Combate à Desertificação. Embora relevantes e significativos porque estabeleceram um novo patamar de abordagem dessas questões críticas para a humanidade, todos esses pactos – incluindo a bem intencionada Declaração do Rio – conduziram a compromissos parciais e progressos pontuais – muito aquém da necessária revisão dos padrões de exploração dos recursos naturais que ameaçam o equilíbrio ecossistêmico.
Duas décadas depois daquela cúpula histórica, a Rio+20 se caracteriza mais como um ponto de partida, com a possibilidade de ampliar o debate sobre a necessidade de alterar os padrões de produção e consumo para desviar a economia planetária da trajetória crítica de exploração abusiva dos recursos naturais.
Se, tal como no relatório “Nosso Futuro Comum”, o porvir continua no horizonte de preocupações das Nações Unidas, desta vez no entanto a Conferência não tem mandato para produzir acordos que responsabilizem governos, empresas ou cidadãos. O principal documento a ser publicado no final da Conferência, com o expressivo título “O Futuro que Queremos”, será então uma declaração de intenções de mais de uma centena de chefes de Estado e de governo, sem instrumentos para transformá-las em obrigações de qualquer espécie.
A inexistência de um acordo forte não autoriza, porém, uma avaliação antecipada que considere um fracasso a Rio+20. Secretário (com status de ministro) do Meio Ambiente durante a Rio 92, o professor José Goldenberg lembra que naquela Conferência foi feito um grande esforço para adotar medidas mandatórias, como as citadas convenções. “Mas, além desses tratados, foi adotada a Agenda 21, que tem um caráter parecido com o da Rio+20: é um conjunto de exortações, um conjunto de propostas. Não tem metas, simplesmente delineia caminhos. A Agenda 21 não foi aprovada em 1992: os governos não votaram. Ela se tornou um compromisso voluntário, mas curiosamente milhares de prefeitos em todo o mundo acabaram adotando muitas daquelas medidas e avançaram em direção à sustentabilidade.”
Sem mandato para voos mais ambiciosos, a Rio+20 deve gerar uma “Plataforma de Compromissos” voluntários de governos, empresas e organizações sociais; um conjunto de “Recomendações da Sociedade Civil” como resultado dos Diálogos sobre Desenvolvimento Sustentável; e finalmente a Declaração dos chefes de Estado e de governo: “O Futuro que Queremos”.
Mundo à Parte
Foi uma iniciativa do governo brasileiro propor os 4 dias de “Diálogos”, que devem atrair ao Riocentro até 50 mil participantes – de Organizações Não Governamentais, empresas e movimentos sociais do mundo todo – para “gerar propostas inovadoras de como a sustentabilidade pode ser aplicada a uma série de questões”, de segurança alimentar a migrações, passando pelo complexo tema da produção e consumo sustentáveis. Esse evento ocorreu entre 16 e 19 de junho, encravado entre a Prepcon – conferência preparatória que do dia 13 ao dia 15 reuniu a alta diplomacia internacional mas precisou estender o prazo até a madrugada do dia 19 para dar contornos finais ao documento “O Futuro que Queremos” – e a cúpula de governantes propriamente dita, do dia 20 ao dia 22.
Acreditam os mais otimistas entusiastas que os “Diálogos” são uma plataforma que permite à sociedade global influenciar os governantes para a adoção de um mínimo de metas em direção ao desenvolvimento sustentável. “O Futuro que Queremos” tinha ao fim da Prepcon uma edição reduzida do documento que chegou a ter mais de 300 páginas recheadas de sugestões oferecidas por países, ONGs, empresas e movimentos sociais, e sistematizadas pela Secretaria Geral da Conferência. Sob protestos de ONGs e delegações importantes como a da União Européia, restaram, porém, numerosos colchetes [que no jargão da diplomacia são trechos do texto oficial sobre os quais não existe consenso] cujo conteúdo final deverá ser decidido somente pelos governantes, além de acolher novas sugestões. É nesse espaço que a sociedade civil pode exercer pressão por meio das “Recomendações” remetidas aos participantes da cúpula.
“Pela primeira vez nós estamos promovendo um diálogo da sociedade civil com os chefes de governo e chefes de Estado a partir de uma pauta específica” – explicou-me a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. “Antes você ficava com o chefe de Estado num mundo à parte, encastelado. Agora, não: nós estamos colocando no mainstream político o setor produtivo e a sociedade civil latu sensu – mulheres, negros, todos os movimentos sociais – para debater esses temas estratégicos da agenda mundial.”
Os “Diálogos” atendem ao que proclama o Princípio 10 da “Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento” (assinada na Rio 92): “A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados”. A participação esteve aberta até o dia 3 de junho e as sugestões foram sistematizadas em 10 Painéis (veja quadro com temas) de debates – transmitidos pela webtv das Nações Unidas – e encaminhadas diretamente aos chefes de Estado e de Governo como “Recomendações”.
O mecanismo de interação entre os “Diálogos” e os governantes não significa, porém, que o “mundo à parte” estará aberto à escuta das demandas da “vida real”. A mais espessa das nuvens de interesses que separam os dois mundos se resume à questão invocada pelos céticos da Economia Verde: “Quem vai pagar a conta?” O secretário-geral da Rio+20, Sha Zukang, resumiu as divergências ao apontar a expectativa de que os países desenvolvidos “avancem mais rapidamente para mudar os padrões de consumo insustentáveis” e “cumpram a promessa de ajuda ao desenvolvimento”. Era uma referência ao fato de que os US$ 129 bilhões doados pelos países ricos em 2010 representam menos da metade dos 0,7% do PIB que, em setembro de 2000, eles acordaram oferecer anualmente às agências da ONU para ajudar os mais pobres a atingir em 2015 os Objetivos do Milênio (ODM) – um conjunto de 8 metas que devem ser alcançadas para melhorar a qualidade de vida das populações mais carentes. Já os países em desenvolvimento, segundo o diplomata chinês, “precisam evitar o modelo de crescimento convencional, baseado no uso intensivo de recursos naturais“.
Do G-20 à Rio+20
A avaliação prévia de Zukang indica que a Rio+20 é em essência uma Conferência que mira o futuro, que pretende estabelecer rumos para o desenvolvimento sustentável a médio e longo prazos – a despeito da urgência que despertam a frequência cada vez maior de eventos extremos provavelmente causados por mudanças climáticas, a assustadora crise financeira global e o vertiginoso aumento dos preços dos alimentos, do petróleo e de outras commodities baseadas em recursos naturais. No curto prazo, curtíssimo aliás, os líderes dos maiores países ricos mais a União Européia ficaram frente a frente, nos dias 18 e 19 de junho, com os governantes dos 8 maiores países emergentes na reunião do G-20. Evidentemente terão impacto na cúpula do Rio as decisões desse encontro no México, sobretudo no que se refere às medidas para debelar a persistente crise que mantém instáveis os mercados financeiros de todo o mundo. Se a Economia Verde pode oferecer instrumentos para a sonhada mudança estrutural da economia global, uma fresta se abrirá nestes dias, quando a maior parte dos chefes de Estado e de governo voará de Los Cabos, na Califórnia mexicana, para debater o Desenvolvimento Sustentável no Rio de Janeiro.
A diplomacia brasileira aposta que a anunciada ausência do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e da chanceler alemã, Angela Merkel, está amplamente compensada pela presença maciça dos emergentes – o grupo de países que mais cresceram e transformaram a economia global nas duas décadas recentes. Em consequência dessa transformação, o Brasil já tem 7% dos empregos formais gerados por empreendimentos “verdes”, de acordo com estudo publicado semana passada pelo Pnuma em colaboração com a OIT (Organização Internacional do Trabalho). O estudo defende que uma economia mais verde é sinônimo de criação de mais empregos.
Uma forma de facilitar o engajamento da sociedade global nos esforços para construir uma Economia Verde pode ser o estabelecimento dos ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – que a exemplo dos Objetivos do Milênio seriam compromissos com metas, prazos e resultados definidos. Mas a crise financeira global e a diversidade de estágios das economias nacionais são barreiras que impedem um consenso entre os representantes de mais de 190 países – a desgastante fórmula de negociação multilateral adotada pelas Nações Unidas. O que se espera agora, mais modestamente, é que haja uma declaração de princípios, com prazo para negociação de metas até 2015.
Governança e Segurança
Seja qual for o nível de ambição dos consensos pactuados para implementar a Economia Verde com inclusão social, a governança global para o desenvolvimento sustentável também passará por uma revisão. Uma das opções que se estuda, considerada modesta mas com apoio aberto do governo brasileiro, é melhorar o status do Pnuma – o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, que hoje funciona à mercê das doações (às vezes “carimbadas” para financiar atividades específicas) de um grupo reduzido de 58 países. O Programa seria transformado numa agência com mandato semelhante ao da Organização Mundial do Comércio para negociar políticas e impor sanções.
“Estamos falando de clima, de migrações, de desertificação, de economia, de segurança alimentar. É um problema de segurança” – defende o ambientalista Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra – Amazônia brasileira. “E o Conselho de Segurança é a instância das Nações Unidas que deveria ser objeto da discussão no âmbito da sustentabilidade. Aí sim, como anfitrião da Rio+20 e liderança ambiental, pautar esse tema estaria condizente com as pretensões que o Brasil legitimamente guarda em relação a ter um assento permanente no Conselho de Segurança.”
Com tantas implicações políticas e econômicas de gravidade extrema, é mais provável que surja na Conferência uma proposta de criação de um Conselho do Desenvolvimento Sustentável, com suporte político da Assembléia Geral das Nações Unidas para estimular a implementação da Economia Verde – mas sem força para impor sanções.
Outro tema que desperta paixões na Rio+20 é a substituição do conceito de Produto Interno Bruto (PIB) para medir a atividade econômica. “Você destrói uma floresta inteira, mas como existe atividade, e um produto gerado, isto vai aumentar o PIB, ta certo?” – pergunta o ex-ministro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, ao defender o estabelecimento de uma nova métrica. A ONU lançou no domingo, dia 17, o IRI – Índice de Riqueza Inclusiva; num ranking de 20 países que têm 72% do PIB mundial, o Brasil aparece em quinto lugar, ao lado do Japão e do Reino Unido, apesar de ter perdido 25% dos recursos naturais nos 20 anos analisados pela Universidade das Nações Unidas. Mas não existe, até agora, nenhuma indicação de que o IRI terá validade reconhecida por organismos que acompanham a evolução econômica dos países.
Limites da Inovação
No centro do debate que se intensifica na Rio+20, encontra-se na fronteira do conceito de Economia Verde o paradoxo entre os limites de um planeta finito e as possibilidades de superação das crises que a inovação tecnológica proporciona. “Até hoje, todas as previsões de catástrofes iminentes ou quase iminentes foram superadas por revoluções tecnológicas” – pondera o ex-ministro Goldenberg. “Um dos problemas mais agudos, o do suprimento de energia limpa, seguramente tem solução porque há uma fonte inesgotável, que é o Sol. Nós a estamos usando apenas parcialmente, com a eólica e as células fotovoltaicas, que são energias solares.”
É também a capacidade criativa do homem que lhe permitiu nos anos recentes reconhecer limites e aprender a reduzir o consumo, reutilizar e reciclar recursos naturais. “Mas as revoluções tecnológicas não resolvem um problema, que é o problema da equidade, o problema de atender às necessidades dos mais pobres sem provocar a reação adversa dos mais ricos” – acrescenta o físico José Goldenberg. Talvez seja este o sintoma mais agudo de decadência de um sistema, que o também físico Fritjof Capra identificou como ponto de mutação para uma nova ordem na sociedade humana.
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FONTE : * Sávio de Tarso é jornalista.
(Agência Envolverde)
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