“Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho“. Com esta ideia, o bispo franciscano de Barra–BA dom Luiz Cappio justificava seus dois jejuns, em 2005 e 2007, contra o projeto de transposição, em defesa do Rio São Francisco e do semiárido brasileiro. Dizia que o projeto, além de ignorar o mal estado do rio, visava, como sempre no Nordeste, concentrar água, terra e poder, levaria dinheiro público para o ralo e votos para urnas e – vaticínio profético? – não seria concluído.
E não é que, não à parte a loucura, ele tinha razão! Quatro anos e meio depois de iniciado, o projeto capenga, confirmando as críticas do bispo, de cientistas respeitados e dos movimentos populares. O próprio sertanejo da região “beneficiada”, até aqui iludido com a mítica promessa, começa a desconfiar.
Como já estamos em temporada eleitoral, ficam mais claras tanto as manobras do governo como as da oposição, a mídia a reboque. O início de 2012 é pródigo em matérias em vários veículos sobre o desandar da transposição. O governo corre a cons(c)ertar… Em meio ao jogo dos interesses – de empreiteiras, políticos, empresas da indústria e do agronegócio e da mídia a estes ligados – nem sempre se evidenciam os fatos dando razão ao bispo e aos demais críticos.
Já em outubro de 2011, por ocasião do 4 de outubro, dia do santo e do rio São Francisco, a Articulação Popular São Francisco Vivo, com mais de 300 entidades da Bacia, lançava documento chamando atenção para a confirmação de quase todas as principais críticas ao projeto:
“1. A obra seria muito mais cara que o previsto: de 5 bilhões iniciais já estão reajustadas em 6,8 bilhões, um aditivo de 1,8 bilhões, 36% em média. Há lotes ainda não re-licitados, o que vai onerar ainda mais o preço final.
2. Não atenderia a população mais necessitada: efetivamente, não pôs uma gota d’água para nenhum necessitado; antes desmantelou a produção agrícola local por onde passou.
3. O custo da água seria inviável: hoje o governo reconhece que o metro cúbico valerá cerca de R$ 0,13 (poderá ser ainda bem maior), seis vezes maior que às margens do São Francisco, onde muitos irrigantes estão inadimplentes por dívidas com os sistemas de água. Para ser economicamente viável, este preço terá que ser subsidiado, e é certo que o povo pagará a conta;
4. Impactaria comunidades indígenas e quilombolas: comunidades quilombolas impactadas são 50 e povos indígenas nove. As demarcações de seus territórios foram emperradas, patrimônios destruídos. No caso dos Truká, em Cabrobó – PE, em cuja área o Exército iniciou o Eixo Norte, o território já identificado é demarcado se aceitarem as obras. No caso dos Tumbalalá, em Curaçá e Abaré – BA, na outra margem, se aceitarem a barragem de Pedra Branca. Ainda não foi demarcado pela FUNAI o território Pipipã e concluído o processo Kambiwá, a serem cortados pelos futuros canais, ao pé da Serra Negra, em Pernambuco, monumento natural e sagrado de vários povos. Muitas destas comunidades resistem. Em Serra Negra povoado e assentamento de reforma agrária não admitem as obras em seu espaço.
5. Destruiria o meio ambiente: grandes porções da caatinga foram desmatadas. Inventário florestal levantou mais de mil espécies vegetais somente no Eixo Leste.
6. Empregos precários e temporários: como sintetizou o cacique Neguinho Truká, “os empregos foram temporários, os problemas são permanentes”. Em Cabrobó, nada restou da prometida dinamização econômica, só decepção e revolta. Nas cidades por onde a obra passou ficou um rastro de comércio desorientado, casas vazias, gente desempregada, adolescentes grávidas…
7. Arrastadas no tempo, a obra se presta a “transpor” votos e recursos: não debela, antes realimenta a “indústria política da seca”. Nova precisão de data para conclusão: 2014! Vem mais uma eleição aí, em 2012, outra em 2014…
8. Faltam duas das conseqüências graves a serem totalmente comprovadas, que só teremos certeza se a obra chegar ao fim: vai impactar ainda mais o rio São Francisco e não vai levar água para os necessitados do Nordeste Setentrional. Enfim, a Transposição é para o agro-hidronegócio e pólos industriais do Pecém (CE) e Suape (PE).”
As obras começaram apressadas sob pressão político-eleitoral. Foram aprovados e iniciados projetos sem suficiente detalhamento. Ignoraram-se solenemente as condições climáticas e geológicas da região. O resultado logo apareceu: canais rachados, túneis desabando, deslizamento de solo, infiltrações… Montanhas de dinheiro público jogado fora! O governo diz que a responsabilidade pela reconstrução é das empresas… Mas o custo total da obra já foi acrescido em 36%. E o prazo dilatado para 2015. E ainda faltam 30% do eixo leste (287 km) e 54% do eixo norte (426 km). Se tudo ficar pronto mesmo, pleno funcionamento só em 2030! Até lá quanto ainda vai custar aos cofres públicos, à paciência sertaneja e nacional e à verdade científica e ética?
Empregos frustrados, caatinga devastada, animais mortos, lavouras perdidas, difícil recomeço para quem perdeu o que tinha e foi mal indenizado… Maria Rosa, aposentada, do povoado Montevidéu, em Salgueiro-PE, disse à reportagem do Jornal do Commercio (Recife, 07/02/2012) indignada sem a água que a obra da transposição ao invés de trazer estancou: “Cadê essa água que não chega? Só quando Deus mandar. Eu vou ficar aqui esperando por Deus. Diz que quem espera por Deus não cansa e eu acho que estou cansando, mas vou levando”. Todo estardalhaço da mirabolante transposição até agora fez foi confirmou a “sina” nordestina de conformismo e resistência, do que o bispo Cappio bem entende há quase 40 anos. A luta de sempre continua!
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FONTE : Ruben Siqueira, CPT Bahia / Articulação Popular São Francisco Vivo
Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no jornal da CPT, “Pastoral da Terra“, (Goiânia, no. 207, jan/fev 2012)
EcoDebate, 27/03/2012
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