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terça-feira, 7 de agosto de 2018

Surto de sarampo é resultado do relaxamento da saúde pública e da população

O surto de sarampo é um relaxamento da saúde pública e da população. Entrevista especial com Marcus Lacerda

Por Patricia Fachin, IHU
O surto de sarampo no Brasil, especialmente nos estados de Roraima e Amazonas, “é uma surpresa”, diz o infectologista Marcus Lacerda à IHU On-Line. Segundo ele, os especialistas da área da saúde estimavam que “a população brasileira tivesse uma cobertura vacinal alta, de 95%”, o que não parece se confirmar.

Vacinação
Vacinação. Foto: EBC

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-LineLacerda comenta as várias hipóteses que tentam explicar o retorno do sarampo no país e frisa que “houve, sim, um relaxamento da saúde pública e da população: como ninguém estava falando dessa doença na mídia, achou-se que não era mais preciso fazer nenhum tipo de vacinação. Portanto, trata-se de uma responsabilidade coletiva da saúde pública e da população como um todo”.
Ele diz ainda que o vírus de sarampo encontrado nos estados de Roraima e Amazonas, onde se concentra o surto no país, tem o mesmo genótipo do vírus “que circula hoje na Venezuela. Ele é diferente, por exemplo, do genótipo da Europa ou da Ásia, e isso nos faz acreditar, sim, que houve a migração de pessoas infectadas”. O médico esclarece também que “quando a população do país está vacinada, qualquer doença pode entrar, que ela não vai se instalar. Por isso, o problema não é o venezuelano em si ou a pessoa que entra doente no Brasil, pois se as pessoas são vacinadas, a doença não consegue se estabelecer em nosso território”. E adverte: “É muito importante que nasaúde pública se mantenham os níveis de vacinação sempre muito altos. Não podemos achar que, porque não circulam mais doenças como, por exemplo, saramporubéolacaxumba, se possa relaxar na realização da vacina”.
Marcus Lacerda pontua que, embora o sarampo seja uma doença benigna, ela pode causar complicações em crianças desnutridas ou com problemas respiratórios. “Na verdade, essa é uma daquelas doenças que acaba sacrificando muito mais a população humilde, a população negligenciada. Essa é a nossa maior preocupação. A população que já é vulnerável — que tem desnutrição, verminose e anemia —, quando pega sarampo acaba depois tendo pneumonia e morrendo. Isso, obviamente, sobrecarrega o sistema de saúde, que já tem tantas falhas e tantos problemas”, conclui.
Marcus Lacerda | Foto: SMBT
Marcus Lacerda é graduado em Medicina pela Universidade de Brasília – UnB, realizou residência médica em Infectologia pela Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado e doutorado em Medicina Tropical pela Universidade de Brasília em parceria com a Universidade de Nova York. É médico da FMT-HVD e especialista em Saúde Pública do Instituto Leônidas & Maria Deane (FIOCRUZ-Amazonas), além de professor do Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical da Universidade do Estado do Amazonas, e professor adjunto da Kent State University. É membro do Comitê de Assessoramento Técnico do Programa Nacional de Controle da Malária e do Subcomitê de Terapêutica em Malária, do Ministério da Saúde do Brasil, além de consultor eventual da Organização Mundial da Saúde em malária por Plasmodium vivax.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Que fatores explicam o surto de sarampo no país? Esse surto é uma surpresa para os especialistas na área da saúde ou não?
Marcus Lacerda — É uma surpresa, sim, pois esperávamos que a população brasileira tivesse uma cobertura vacinal alta, de 95%. Mas, na realidade, a migração venezuelana para o Brasil — com todos os problemas políticos e econômicos que a Venezuela está sofrendo — fez com que aparecesse sarampo no país e isso nos mostrou que a cobertura vacinal era muito inferior àquela que acreditávamos existir. Quando a população do país está vacinada, qualquer doença pode entrar, que ela não vai se instalar. Por isso, o problema não é o venezuelano em si ou a pessoa que entra doente no Brasil, pois se as pessoas estão vacinadas, a doença não consegue se estabelecer em nosso território. As Américas foram declaradas livres de sarampo recentemente, e de fato é uma surpresa para todos nós vermos que a doença ainda consegue se instalar no Brasil.
IHU On-Line — O senhor tem alguma informação da dimensão do surto de sarampo na Venezuela? A entrada de venezuelanos pela fronteira tem contribuído para o surto no Brasil ou não?
Marcus Lacerda — Temos a evidência de que o vírus do sarampo que está circulando hoje no Brasil é exatamente o mesmo vírus do sarampo típico da Venezuela. Obviamente não há como afirmar categoricamente que foi um caso de sarampo que veio da Venezuela, mas isso aconteceu ao mesmo tempo em que começou a haver uma migração muito densa de pessoas da Venezuela para os estados de Roraima e Amazonas. O genótipo que temos do vírus aqui — B8 — é exatamente o mesmo que circula hoje na Venezuela. Ele é diferente, por exemplo, do genótipo da Europa ou da Ásia, e isso nos faz acreditar, sim, que houve a migração de pessoas infectadas.
IHU On-Line — A imigração explica por que o surto de sarampo tem sido maior nos estados de Roraima e Amazonas, que são fronteira com a Venezuela?
Marcus Lacerda — Isso. Essa é a principal teoria que temos hoje. A queda da vacinação na Venezuela é um fato notório: a Venezuela tem tido falta de medicação e de vacinas, então a diminuição da cobertura vacinal no país é um fato conhecido de todo mundo. Na medida em que a cobertura na Venezuela ficou muito baixa, a doença apareceu e ela encontrou um local propício para se propagar. Como as pessoas começaram a migrar para o estado de Roraima e para o Amazonas, que é onde temos a maior parte dos casos hoje, é possível que a doença tenha se instalado aqui também e desses estados ela migre para outros estados do Brasil. Acreditamos que seja mais ou menos essa a trajetória que tenha acontecido.
IHU On-Line — Qual é a situação dos indígenas que vivem na região Norte? Fala-se que os Yanomami, na fronteira Brasil-Venezuela, são pouco imunes à doença. O que se pode esperar e fazer em relação a essas comunidades? Que informações o senhor tem sobre a situação deles em relação à imunização contra o sarampo?
Marcus Lacerda — As comunidades indígenas têm um complicador porque os Yanomami, em especial, vivem como uma nação que está presente em dois países: uma parte da nação Yanomami vive na Venezuela e outra vive no Brasil, e essa população não respeita a fronteira dos dois países. Os Yanomami do lado brasileiro estão submetidos ao sistema de saúde brasileiro, que tem um esquema de vacinação — desde a Constituição existe um programa de saúde indígena, que hoje é de responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena – Sesai. Porém, no lado venezuelano não temos essa mesma situação, por isso não tenho nenhuma outra informação mais detalhada para dar. Mas sempre, em qualquer situação que envolva fronteira, a nação Yanomami é uma das que ajudam no espalhamento de doenças, porque eles circulam entre os dois países de forma deliberada. Não posso dizer se eles têm ou não imunidade, mas eles ficam sujeitos à infecção pelo sarampo. Aqueles que vivem em território brasileiro têm acesso às vacinas do lado de cá, mas não é o que acontece com os Yanomami que vivem do outro lado da fronteira.
IHU On-Line — Segundo o Ministério da Saúde, no segundo semestre de 2017 a taxa de imunização foi de 84%, a pior dos últimos 12 anos. Quais são as razões da queda no número de vacinações? Alguns dizem que há um movimento antivacinação no país. O senhor percebe isso ou as causas são de outra ordem?
Marcus Lacerda — Tem se falado muito sobre campanhas antivacina, mas não sei se isso é uma coisa muito importante no Brasil, porque os movimentos antivacina são muito mais frequentes fora das Américas. Além disso, devemos lembrar que há vários anos ocorrem casos de sarampo na Europa.
O que acredito é que, com o desaparecimento dessas doenças, as pessoas deixam de temê-las e por isso vão relaxando a vacinação. É muito importante que na saúde pública se mantenham os níveis de vacinação sempre muito altos. Não podemos achar que, porque não circulam mais doenças como, por exemplo, saramporubéolacaxumba, se possa relaxar na realização da vacina. Houve, sim, um relaxamento da saúde pública e da população: como ninguém estava falando dessa doença na mídia, achou-se que não era mais preciso fazer nenhum tipo de vacinação. Portanto, trata-se de uma responsabilidade coletiva da saúde pública e da população como um todo.
IHU On-Line — Qual é o histórico dos casos de sarampo no país? Essa doença já havia sido erradicada, como tem se informado na imprensa?
Marcus Lacerda — Só podemos falar em erradicação de uma doença quando ela desaparece do planeta inteiro. Por exemplo, a varíola é a única doença erradicada, porque não existe mais no planeta. Então podemos parar de vacinar as pessoas contra a varíola, porque essa doença não vai mais voltar. No caso das Américas, há dois anos havíamos recebido um certificado de eliminação do sarampo, ou seja, não havia mais casos de sarampo nas Américas e o Brasil foi um dos últimos países a não ter relatos de casos de sarampo. Infelizmente, isso agora não é mais uma realidade.
IHU On-Line — Segundo o Ministério da Saúde, até o final do mês de julho foram registrados 822 casos confirmados de sarampo no país. Hoje se fala em 1.053 casos. Qual é o significado desse número de casos, considerando o tamanho da população brasileira e a gravidade da doença? Esse surto de sarampo é significativo? Há razões para preocupação? Quais são os riscos de se ter um surto de sarampo no país?
Marcus Lacerda — Com relação aos números, quando existe uma situação de zero casos da doença, na medida em que temos um único caso, isso já é alarmante. Em virtude disso não podemos dizer que tivemos dez casos ou mil casos de sarampo, porque a situação é a mesma independentemente do número de casos, pois sabemos que existe uma população que não está imunizada. Esses números estão aumentando e a maior preocupação é que o surto já não está mais apenas em Roraima e no Amazonas, pois já começou a aparecer em outros estados da federação. Certamente esperamos que, com a estratégia de vacinação da população entre seis meses e 49 anos de idade, isso seja, de alguma forma, controlado. Mas precisamos compreender que essa é uma mobilização relativamente complicada, porque os postos de vacinação da cidade de Manaus, por exemplo, não estão conseguindo dar vazão a todos, pois existem, relativamente, poucos postos.
Nós entendemos que não está faltando vacina: existe vacina suficiente para a população, e se não fosse a estratégia de vacinação, esse número poderia estar até pior. Não sabemos ainda o que vai acontecer, mas o sarampo é uma doença imunoprevenida, existe uma vacina, ela está disponível e esperamos que o surto não tenha uma proporção maior ainda.

Riscos de um surto de sarampo

Lembramos que o sarampo é uma doença, na maior parte das vezes, benigna, que não costuma matar ou dar complicações, mas é uma doença que, em especial em crianças, particularmente nas mais desnutridas, pode, sim, levar a complicações respiratórias graves e até à morte. Na verdade, essa é uma daquelas doenças que acaba sacrificando muito mais a população humilde, a população negligenciada. Essa é a nossa maior preocupação. A população que já é vulnerável — que tem desnutrição, verminose e anemia —, quando pega sarampo acaba depois tendo pneumonia e morrendo. Isso, obviamente, sobrecarrega o sistema de saúde, que já tem tantas falhas e tantos problemas.
IHU On-Line — Nos últimos anos tem havido surtos de várias doenças, como malária, dengue e agora sarampo. É possível estabelecer relações entre o surto dessas doenças no país e o investimento na área da saúde ou são fatores diversos que explicam esse quadro?
Marcus Lacerda — Cada uma dessas doenças que você mencionou tem desafios muito próprios. Por exemplo, quando falamos em sarampo, só estamos vendo essa doença hoje porque temos um menor índice vacinal; quando falamos no aparecimento de zika, estamos falando de uma produção de um vírus novo, com o qual não tínhamos nenhuma experiência e que foi facilitado pelo fato de ainda termos o Aedes aegypti, um mosquito que não conseguimos eliminar do Brasil. Quando entra um vírus que depende do Aedes aegypti, essa doença acaba se instalando; esse é um problema de várias décadas. Em relação à malária, não existe uma vacina para essa doença e muito menos conseguiremos eliminar o mosquito da malária, porque esse é um mosquito que vive em áreas silvestres, vive na floresta. Esse aumento da malária, provavelmente, tem muito mais a ver com questões climáticas e com a questão do próprio sistema de controle da malária ter chegado à exaustão: hoje não há muita inovação nessa área, as pessoas deixam de se preocupar com a doença e ela volta a subir.
Não sei se dá para fazer um link com a volta dessas várias doenças, mas o fato é que osistema de saúde precisa estar o tempo todo preocupado com prevenção. Isto é, quando a doença está muito baixa ou zerada, não podemos deixar de continuar tomando medidas para o controle dela. Este é um grande erro dos países subdesenvolvidos: quando estamos em uma situação confortável, deixamos de manter os mesmos níveis de atenção de quando a doença ainda estava alta.
IHU On-Line — O senhor tem informações de outras doenças que já foram controladas mas que podem voltar a atingir a população brasileira, com surtos específicos como o do sarampo?
Marcus Lacerda — Existem duas doenças com as quais continuamos muito vigilantes. Uma delas é o cólera, pois ainda existem casos de cólera em várias partes do mundo. Essa é uma doença que tem relação com as condições sanitárias, como o tratamento de água, que ainda é carente em vários lugares. Na época em que os haitianos começaram a migração para o Brasil — isso passou pela Amazônia também — tivemos uma preocupação muito grande com uma possível reintrodução do cólera no país, porque no Haiti havia casos de cólera registrados à época. Essa é uma doença com a qual sempre estamos muito vigilantes, porque os danos dela são bem maiores: é uma doença que mata com muito mais intensidade do que essas outras.
A outra doença é a filariose. O Brasil está pleiteando o certificado de eliminação da filariose, porque alguns pontos do Nordeste eram os últimos nos quais precisávamos confirmar o desaparecimento dessa doença. A filariose é uma doença que deixa a perna bem inchada, também conhecida como elefantíase, e também é transmitida por mosquito. No Haiti havia filariose e, entre os haitianos que vieram para Manaus, conseguimos detectar que alguns desses pacientes tinham o diagnóstico da doença. Essa é uma outra doença com a qual também devemos estar muito vigilantes, porque ela pode, de fato, reingressar no país, pois os vetores, os mosquitos, existem no nosso território. É tudo uma questão de vigilância e diagnóstico precoce para que possamos tratar os primeiros casos e evitar que a doença se espalhe.

(EcoDebate, 07/08/2018) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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