Imagem: Idesam
Projetos de hidrelétricas brasileiras da região da Amazônia Legal valeram-se da venda créditos de carbono sem lastro de adicionalidade para compensação de emissões de GEE por meio do chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). É o que mostra estudo inédito, lançado hoje em Bonn, durante a COP 23.
Contrariando o anunciado interesse do governo brasileiro de buscar recursos para a conservação florestal na Amazônia na 23ª conferência do clima, que acontece na Alemanha, um grupo de negociadores do país têm insistido em garantir exclusividade dos novos mecanismos de mercado de carbono – que estão em discussão tanto no âmbito do Acordo de Paris quanto em outros planos setoriais, como o da aviação civil internacional (CORSIA) – para projetos antigos e duvidosos do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Se a proposta brasileira for aceita, esses projetos tornam-se elegíveis para a compensação (offset) de emissões de outros países e setores no cumprimento de suas metas..Para um grupo de seis expressivas instituições, porém, essa proposta está longe de ser uma alternativa válida. Pior: literalmente polui novas metas e esforços de redução, com créditos de carbono que não geram reduções de emissões de gases de efeito estufa reais, adicionais e mensuráveis – ou seja, são hot-air. Juntas, as organizações autoras analisaram uma série de documentos sobre esse e outros pontos críticos em transações de MDL no estudo lançado hoje em Bonn: “Hidrelétricas e projetos de MDL na Amazônia brasileira: ludibriando investidores e trapaceando a atmosfera?”.
O trabalho é assinado por Bolsa de Valores Ambientais do Rio de Janeiro (BVRio), Environmental Defense Fund (EDF), Fundação Amazonas Sustentável (FAS), Instituto Centro de Vida (ICV), Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) e Instituto Socioambiental (ISA), com apoio do Instituto Clima e Sociedade (ICS). Os autores coletaram indícios em processos judiciais, artigos de imprensa e documentários, dentre outros materiais relacionados à construção das usinas hidrelétricas na Amazônia, com destaque para três grandes projetos especialmente polêmicos, cujo principal acionista é a Eletrobras. São eles: Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, e Teles Pires, no Mato Grosso.
A escolha deve-se ao fato de que o setor de energia foi o principal fomentador de projetos de MDL no país, detendo cerca de 25% do total que poderia ser comercializado por meio desse mecanismo. Mas a análise avança também sobre o universo completo do MDL brasileiro, que soma quase 7,8 mil projetos registrados. E os problemas são muitos.
Falta de adicionalidade Um projeto só deveria ser classificável como MDL se, primeiro, gerasse reduções de emissões reais, adicionais e mensuráveis e, segundo, dependesse de fato das receitas dos créditos de carbono do MDL para se viabilizar. No entanto, essa situação claramente não se aplica às hidrelétricas analisadas. Pior ainda, pode ter sobrado recursos para pagar propina, pois as três hidrelétricas analisadas estão sob investigação da Operação Lava-Jato.
Omissão de emissões de metano Pelas regras do MDL, hidrelétricas não são obrigadas a contabilizar as altas emissões de metano (CH4), um gás de efeito estufa, dos seus reservatórios. Também não contabilizam o CO2e resultante do desmatamento no entorno da sua implantação. Estudos indicam que essas emissões podem corresponder a até 50% das emissões totais de alguns projetos.
Risco de investimento A Eletrobras solicitou os registros desses projetos no MDL entre 2014 e 2016. Muito depois, portanto, do colapso no mercado de carbono em 2012, que jogou o valor do crédito de carbono de US$ 20 para cerca de alguns centavos. Assim, a única esperança de transformar essas chamadas Reduções Certificadas de Emissões (RCEs – cada RCE corresponde a um crédito de carbono) não adicionais em dinheiro é “empurrando” esses projetos para novos (e espera-se íntegros) mecanismos de mercado em formação na UNFCCC, CORSIA e outros setores.
Falhas de integridade socioambiental Inúmeros processos judiciais e conflitos fartamente noticiados pela mídia ligam esses empreendimentos a problemas, como: avaliações inadequadas dos impactos ambientais; liberação de licenças que desconsideram relatórios técnicos de Ibama e Funai e ignoram as medidas mitigatórias e de compensação exigidas; monitoramentos tendenciosos, realizados pelos próprios empreendedores; falha nas consultas às comunidades atingidas. Várias ações estão ainda em curso, mas é difícil não questionar os diversos impactos sociais e ambientais dos projetos de MDL dessas três usinas –- que podem gerar quase 20% de todos os créditos propostos pelo Brasil para o período de 2020-2030.
Risco reputacional Nas três usinas houve aumentos repentinos, substanciais e injustificáveis no valor das obras. A leitura do mercado (e da justiça, por meio da Operação Lava-Jato) é que o superfaturamento destinou-se a práticas maciças de corrupção e propinas. A própria Eletrobras já reconheceu que se empenha hoje em debelar os ilícitos que passaram a permear as atividades da empresa, como concorrência desleal, subornos etc. Algumas consequências disso são uma ação judicial de acionistas americanos da empresa, em Nova Iorque, e a exclusão da Eletrobras da carteira do KLP, um dos maiores fundos de investimentos do mundo, por alegado “risco inaceitável de corrupção massiva”.
Baixa credibilidade Pesquisadores do Instituto de Ecologia Aplicada e do Instituto Ambiental de Estocolmo e Infras analisaram 5.655 projetos de MDL e concluíram que apenas 2% deles tinham grande probabilidade de possuírem adicionalidade e não estarem superdimensionados no cálculo de créditos de carbono a serem gerados. Mas há outros indícios da baixa confiança do mercado nesse mecanismo: a União Europeia não aceita projetos de hidrelétricas e de gás natural, por problemas ambientais, nem iniciativas brasileiras, chinesas e indianas, por falta de conformidade (compliance); o mercado de carbono da Califórnia igualmente recusa offsets lastreados por projetos do mesmo tipo dos que captam recursos via MDL no Brasil.
Onde fica a saída?
Diante de tantas falhas e irregularidades, o estudo conclui que é um erro o Brasil insistir em impor esse mecanismo como único instrumento de mercado para offsets, especialmente quando busca recursos para conservação florestal.
Para os autores do estudo, o Brasil conta com alternativas mais promissoras para se firmar mundialmente no mercado de carbono em formação: “Enquanto os projetos de MDL geraram reduções de apenas 130 milhões de tCO2 até hoje, a redução do desmatamento na Amazônia evitou a emissão de mais de 4 bilhões de tCO2, de 2004 a 2015, das quais o país captou apenas 6% em doações para o Fundo Amazônia. Está claro que é nos créditos de carbono florestais que o país tem sua maior oportunidade, além de gerar inúmeros benefícios sociais e ambientais”, lembra Mariano Cenamo, cofundador do Idesam.
Segundo ele, até 2030, o fim do desmatamento ilegal pode gerar reduções de cerca de 5,8 bilhões de tCO2 de forma adicional aos compromissos nacionais já assumidos com a NDC do Brasil. “Isso significaria captações de até US$ 60 bilhões, que poderiam ser investidos no fortalecimento das atividades econômicas florestais, beneficiando comunidades tradicionais e indígenas e impulsionando um modelo de desenvolvimento econômico sustentável para a Amazônia”, completa.
Na opinião de Stephan Schwartzman, diretor do EDF, a insistência dos negociadores brasileiros em limitar a oferta de créditos de carbono do país a projetos de MDL ignora a intenção do Artigo 6 do Acordo de Paris de criar mecanismos efetivamente capazes de mitigar a emissão de gases de efeito estufa e, simultaneamente, apoiar o desenvolvimento sustentável. “A possibilidade de cooperação voluntária entre países e oportunidades como as geradas pela necessidade de compensação da aviação civil internacional por meio do Corsia/Icao abrem novas portas , mas é fundamental considerar as lições aprendidas com as falhas e deficiências estruturais dos projetos do MDL”, afirma.
É inegável a urgência de ampliar a captação de recursos, com base em novos mecanismos, para viabilizar a redução mais ambiciosa do desmatamento na Amazônia, e o REDD+ deveria ser uma opção preferencial para isso. “Oferecer créditos de offset oriundos de projetos de MDL de hidrelétricas não parece boa escolha nem para o país, nem para o clima, nem para o desenvolvimento sustentável. Esses projetos são questionáveis quanto à adicionalidade e negativos do ponto de vista social e ambiental”, enfatiza Virgílio Viana, superintendente geral da FAS.
Alice Thuault, diretora adjunta do ICV, concorda: “É altamente problemático o MDL estar hoje atrelado a projetos que ameaçam os direitos das populações locais, enquanto temos grande necessidade de recurso para iniciativas que reduzem o desmatamento e fortalecem esses direitos”, analisa.
Colaboração de Solange A. Barreira e Suzana Lakatos, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/11/2017
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