Agenda de retrocessos e o cumprimento da NDC brasileira
Por Camila Moreno, Heinrich Boell Foundation
O Brasil, um país em desenvolvimento e com grandes desafios na superação das desigualdades, destacou-se no âmbito internacional ao apresentar uma proposta ambiciosa de redução de emissões para contribuir à ação climática global e teve papel de liderança nas negociações que culminaram com o Acordo de Paris em dezembro de 2015. Porém, uma marcha de retrocessos em curso sobre a legislação ambiental doméstica e ataques ao marco dos direitos conquistados no campo socioambiental podem colocar em risco o cumprimento dos compromissos assumidos. [1]
Apesar do fator determinante ao fenômeno do aquecimento global antropogênico estar relacionado à queima de combustíveis fósseis (carvão, gás e petróleo) e seus impactos cumulativos na atmosfera do planeta, para o Brasil, e apesar das perspectivas do Pré-sal, o setor “uso da terra e florestas” é o fato determinante para o país fechar sua conta climática. Isso se dá em função do perfil das emissões do Brasil, em sua maioria oriundas do desmatamento para o avanço da fronteira agrícola ocupada pelo segundo maior rebanho bovino do mundo, com 226 milhões de cabeças (2017) e áreas “abertas” (desmatadas) ocupadas por pastagens, que alcançam quase 170 milhões de hectares.[2] A par e passo, avançam as maiores monoculturas do planeta – 34 milhões de hectares de soja (2017)[3] – equivalente ao território da Alemanha, que ocupa 35 milhões de hectares – além das áreas ocupadas com milho (17 milhões de hectares)[4] e cana de açúcar (9 milhões de hectares), entre outras, como eucalipto para celulose (7 milhões)[5] e que são indissociáveis dos impacto no uso do solo das respectivas infraestruturas de logística para atender a escala de produção e escoamento.
Coerentemente, a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, por sua sigla em inglês) brasileira definiu como setor prioritário para implementação das suas ações de mitigações o setor de uso da terra, mudança de uso da terra e florestas, seguido pelo impulso às energias renováveis, setor onde o Brasil é líder mundial em função da porcentagem que estas ocupam na composição da sua matriz energética, liderado pelo uso do etanol de cana de açúcar para combustível e biomassa na co-geração de eletricidade e seguido da hidroeletricidade; sendo a cana também uma monocultura, esta também impacta nas dinâmicas de uso da terra. De fato, o perfil de emissões brasileiras (2016) em termos de emissões líquidas aponta que enquanto 33% são oriundas da geração de energia, 31% advém da agricultura; 24% uso da terra; 7% da indústria e 5% resíduos.
Mais da metade (55%) das emissões brasileiras que são objetos da NDC vêm do complexo econômico do agronegócio, sua base tecnológica e seu projeto de ocupação territorial que impõe um gigantesco metabolismo: desde a mineração de rocha calcária e fosfato para a produção de fertilizante até o metano emitido na fermentação entérica associado aos processo digestivo dos rebanhos e o desmatamento para abertura de novas áreas.
Para atingir suas metas de redução, a contribuição brasileira estabeleceu na prática depender ainda mais da expansão das monoculturas e do próprio agronegócio, incluindo incorporar as questionáveis estratégias de “enverdecimento” da produção de commodities globais – que ao tratar do “como” produzir, não questiona a escala, para quê e para quem – seguindo tendências internacionais que incluem das certificações aos mecanismos de compensação (offset) para viabilizar cadeias de valor com “desmatamento zero”; estas, por sua vez, dependem para comprovar um “desmatamento líquido zero” da anterior reforma na legislação florestal do país, culminada com a promulgação do Novo Código Florestal em 2012, a qual, na prática, reduziu imensamente a proteção às áreas de preservação permanente (APP) e reserva legal (RL), criou mecanismos de flexibilização, como a possibilidade de venda de cota de reserva ambiental (CRA) e impôs o cadastro ambiental rural mandatório como espinha dorsal do seu processo de implementação, amarrando a execução das políticas florestais e de uso da terra que estão na NDC com um processo em curso, complexo, controverso e cujas consequências práticas – com as sobreposições de registros – podem traduzir-se em novas formas de expropriação, incorporando e atualizando dinâmicas, como a grilagem digital. O CAR aliás, já foi referido pelo governo em espaços de negociação internacional de clima como “o maior registro de carbono”, tendo em vista à construção no futuro de esquemas sejam domésticos ou internacionais de transação deste ativo.
A ênfase no setor uso da terra para alcançar a NDC por sua vez não questiona – ao contrário – aprofunda através da promoção e toda sorte de incentivos à Agricultura de Baixo Carbono (ABC) o uso de transgênicos, agrotóxicos (soja, milho) e seus devastadores impactos sobre a biodiversidade, solos e cada vez mais, saúde pública. Além disso, com a integração de Agricultura-Lavoura-Pecuária, se expandem em conjunto as dinâmicas que historicamente têm engendrado trabalho escravo e infantil de forma recorrente (cana, eucalipto e carvão vegetal, por exemplo), somada à demanda massiva sobre os recursos hídricos (eucalipto), etc.
Há cerca de um ano, em agosto de 2016, com a consumação do processo de impeachment e o início do governo Temer foi deflagrado um movimento já caracterizado como a maior ofensiva ambiental desde a ditadura. O alicerce das mudanças sendo o Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), ação prioritária e estruturante anunciada já no primeiro dia do novo governo, o qual, aliado a interesses do complexo agro-mineral que atua desde suas bancadas no Congresso querem aproveitar o momento político para tornar mais palatável às empresas nacionais e internacionais a legislação nacional em temas como biodiversidade, mineração, demarcações de terra, direitos indígenas, transgênicos e licenciamento ambiental, incluindo redução de prazos, modalidades “express” e até dispensa desta em muitos casos .[6] Desde o início de 2017, cerca de 25 projetos de lei para flexibilizar a legislação ambiental e a regulamentação sobre uso e aquisição de terras foram apresentadas no Congresso por membros do legislativo brasileiro que representam os interesses agro-minerais.
Sob o “ímpeto desregulador” do Estado frente ao arcabouço construído com lutas sociais ao longo dos últimos vinte anos, desde a Constituição de 1988, estas proposições estão diretamente relacionadas à escalada de violência no campo, com aumento de chacinas, assassinatos, desocupações forçadas, revogação de demarcações de terras quilombolas e outra violações de direitos humanos e a violação dos direitos territoriais – em especial dos povos indígenas.[7] Além disso, estas têm potenciais impactos diretos no aumento da degradação da terra, com isso afetando diretamente as condições de implementação do compromisso climático brasileiro, colocando em risco, segundo algumas avaliações, mais de 32 milhões de hectares de terras em unidades de conservação cujo regime de proteção vem sendo desconstituído a passos largos. Por exemplo, apenas as medidas provisórias 756 e 758, anunciadas no espaço de dois dias em 2017 reduziriam, juntas, cerca de 1,1 milhão de hectares de áreas de florestas nacionais; após várias reações, inclusive internacionais, as medidas foram ao final promulgadas com vetos parciais.
Diante da ofensiva sobre o arcabouço de proteção ambiental e a limitação de investimentos públicos pelos próximos 20 anos, aprovada na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, surge um risco adicional.
Está em curso um processo de elaboração de uma estratégia nacional de implementação e financiamento da NDC brasileira que já contou com diversos estudos e processos de consulta e formulação de propostas, algo que deverá ser finalizado em 2018. Neste contexto e frente a esta conjuntura desoladora ganha fôlego renovado a defesa de mecanismos de flexibilização, mercados ambientais (carbono, biodiversidade, água), agrocombustíveis e outras “falsas soluções”, apresentados no cenário de terra arrasada como sendo uma agenda positiva para a crise climática. O clima de desmonte acelerado, somado à ausência de recursos e perspectivas orçamentárias para a implementação de políticas públicas e ações de comando e controle cria um ambiente propício para a introdução de medidas de salvação, que aparecem sempre com o enfraquecimento do papel do Estado, via parcerias público privadas (PPPs), isenções fiscais que desoneram e favorecem o setor privado, arranjos de entes subnacionais (estados e municípios) diretamente com empresas, além de empréstimos e mercados, nacionais e internacionais.
Além disso, nas atuais condições, mecanismos controversos, que incluem alterações paradigmáticas profundas, tais como a incorporação de Pagamentos por Serviços Ambientais (carbono, biodiversidade e água) e promoção de mercados de ativos ambientais (o Rio de Janeiro, por exemplo, conta com uma iniciativa pioneira no mundo, a BVRio). Este é um debate que já leva anos no âmbito da sociedade civil, onde a crítica construída ao longo de anos e verificada em vários contextos concretos aponta que estas propostas vão na contramão da tutela constitucional em vigor, da proteção do meio ambiente como bem comum. A oposição a este paradigma economicista de aceitação social e juridical de um “direito de poluir” , também alerta no sentido da criação de novas formas de expropriação, privatização e restrição de direitos nos territórios, que apostam na chamada “financeirização” das políticas, jogando para a lógica do mercado o cumprimento da lei, como por exemplo a possibilidade de compra de cotas de reserva ambiental (CRA) para regularização de passivos ambientais.
Preocupa sobremaneira, portanto, o discurso de que os mecanismos de “comando e controle” chegaram ao limite (e com eles a capacidade do Estado de fazer cumprir a lei) e impõe-se a necessidade ou, ainda, a preferência, pela aposta no PSA, através de pagamentos de serviços ambientais, como compensações pelo “custo de oportunidade” para proprietários de terra que “abrem mão do direito legal de suprimir vegetação”, tal como destacou a fala do Ministro do Meio Ambiente do Brasil, ao anunciar em 30/10 as propostas que o Brasil vai defender na COP 23 em Bonn, Alemanha, de 06 à 17 de novembro.[8] É em meio ao caos político da conjuntura atual, das ameaças à legislação e da política de terra arrasada que estas e outras medidas correm o risco de serem impostas, passando ao largo do necessário e amplo debate público, atropelando os processo participativos e de tomada de decisão democrática e inclusiva. Sem este processo e o devido pacto com o conjunto da sociedade, sobretudo com os mais impactados pela crise climática, nenhum compromisso será viável, tampouco efetivo a longo prazo.
Camila Moreno é Doutoranda do CPDA, da Universidade Rural do Estado do Rio de Janeiro (UFRRJ), membro do grupo Carta de Belém e ex-coordenadora de programa da Fundação Heinrich Böll Brasil.
Da Heinrich Boell Foundation, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 20/11/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário