Em 15 anos, Cerrado perde 11% de cobertura vegetal nativa por causa do desmatamento. Entrevista especial com Tiago Reis
IHU
O resultado do desmatamento no Cerrado entre 2000 e 2015 é uma perda de 11% da cobertura da vegetação nativa do bioma, informa Tiago Reis, pesquisador no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – Ipam, e autor de um estudo recente que mede o desmatamento no Cerrado e na Amazônia. Segundo ele, o aumento do desmatamento no Cerrado nos últimos 15 anos representa “um prejuízo gigantesco, quase que inestimável para a sociedade brasileira e global, porque estamos perdendo uma quantidade inestimável de patrimônio genético, de capacidade de recarga de aquíferos e de formação de chuvas, que alimenta, abastece e permite a agricultura no bioma”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Reis expõe as causas do aumento do desmatamento e explica suas consequências negativas tanto para a tentativa brasileira de atingir as metas para o enfrentamento das mudanças climáticas, quanto para o abastecimento dos rios e aquíferos do país. “O solo do Cerrado tem algumas particularidades, ou seja, ele é fácil de se compactar, e o que predomina nesse solo é justamente sua capacidade de compactação. Então, quando se tira a vegetação nativa dessas áreas, o solo se compacta e com isso é mais difícil para a água da chuva, que já é escassa no bioma, abastecer os aquíferos e lençóis freáticos que abastem e mantêm o nível dos rios”, diz.
Reis informa ainda que o desmatamento do bioma se concentra no Mato Grosso e nos quatro estados que formam o Matopiba, Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, ou seja, “aqueles quatro estados que, inclusive, receberam um plano de desenvolvimento agropecuário decretado em 2015, justamente para fomentar a construção de infraestrutura e direcionar a expansão das empresas”.
Tiago Reis | Foto: Pedro França / Agência Senado
Tiago Reis é graduado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ e mestre em Política Ambiental pela University College Dublin, na Irlanda. Atualmente é pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – Ipam.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Como foi feito o estudo que identifica que o desmatamento do Cerrado foi maior que o da Amazônia entre 2000 e 2015? Como chegou a esse resultado?
Tiago Reis — O estudo foi feito com o cruzamento de dados oficiais de monitoramento do uso do solo, que já existiam. Então, usamos dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe, que foram obtidos com o monitoramento do Cerrado entre os anos de 2000 e 2010, e depois usamos dados também do INPE para período de 2013 a 2015. Esses dados foram usados para submissão brasileira de nível de referência das emissões florestais para Convenção Quadro Para a Mudança do Clima, para captar recursos por resultados de redução de desmatamento sob mecanismo REDD+. Apesar de a submissão brasileira, chamada FREL Cerrado, utilizar apenas as áreas de fisionomia florestal, o dado espacial disponibilizado pelo INPE mostra todas as conversões de vegetação nativa, incluindo as fisionomias não florestais. Utilizamos esses dados e, como havia essa lacuna de informação entre 2010 e 2013, juntamos os dados do TerraClass Cerrado, que também é gerado pelo Inpe, e também complementamos com dados de alertas de desmatamento do Lapig da Universidade Federal de Goiás. Esses dados do INPE deverão compor um sistema a ser chamado Prodes Cerrado, com metodologia semelhante ao Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite – Prodes da Amazônia, que já é divulgado anualmente. A diferença principal deverá ser o monitoramento de todos os tipos de vegetação nativa no bioma Cerrado, enquanto o Prodes Amazônia só monitora florestas..
Qual é o defeito desse processamento? O defeito é que não sabemos, exatamente, em que ano a conversão aconteceu, primeiro porque o dado de conversão do Inpe é bianual e, além disso, tem essa lacuna entre 2010 e 2013. Mas com o dado do TerraClass, que é de 2013, temos informações sobre o uso do solo e, com isso, é possível identificar que áreas são de pasto, agricultura, vegetação nativa, enfim, conseguimos separar o que são áreas remanescentes de vegetação nativa, do que são áreas convertidas para uso humano. Ao juntar esses dois dados conseguimos saber tudo o que foi convertido no período total, entre 2000 e 2015, mas não é possível saber com precisão em que ano essa conversão ocorreu.
IHU On-Line — Esse resultado já era esperado, considerando a realidade tanto do Cerrado quanto da Amazônia, especialmente porque os estudos apontam para um aumento do desmatamento do Cerrado nos últimos anos?
Não existe esse pacote de políticas de combate ao desmatamento que temos para Amazônia, que é uma conquista para a sociedade brasileira e global, para o Cerrado
Tiago Reis — O resultado foi um pouco surpreendente. A Amazônia tem uma área que é quase duas vezes e meia maior que a do Cerrado, mas é mais isolada, tem menos infraestrutura, é um local de difícil acesso e tem menos pessoas vivendo ali. O Cerrado, por outro lado, apesar de ser quase duas vezes e meia menor que a Amazônia, está mais permeado e habitado, tem estradas e ferrovias, ou seja, tem toda uma facilidade logística e produtiva que facilita o desmatamento. Além disso, tem todo um arcabouço de políticas públicas e acordos privados que incidem na Amazônia e não incidem no Cerrado; não existe esse pacote de políticas de combate ao desmatamento que temos para a Amazônia, que é uma conquista para a sociedade brasileira e global, para o Cerrado.
IHU On-Line — Pela análise dos dados, foi possível identificar em que regiões do Cerrado o desmatamento tem crescido significativamente nesses 15 anos?
Tiago Reis — Claramente o padrão e a fronteira de desmatamento se concentram no Cerrado do Mato Grosso e do Matopiba — Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia —, aqueles quatro estados que, inclusive, receberam um plano de desenvolvimento agropecuário decretado em 2015, justamente para fomentar a construção de infraestrutura e direcionar a expansão das empresas. Essas são as duas regiões mais críticas, com um agravante para o Matopiba, porque no Cerrado do Mato Grosso as áreas que eram altamente aptas para a agricultura, áreas mecanizáveis, com topografia plana, já foram ocupadas. Logo, o que resta de remanescente do Cerrado no Mato Grosso são áreas de baixa aptidão agrícola ou com restrições topográficas para a mecanização.
IHU On-Line — Segundo o estudo, o Cerrado perdeu 236 mil quilômetros quadrados de mata nesse período. Qual é o significado desse valor considerando a extensão do Cerrado?
Tiago Reis — Estamos falando de cerca de 11% da área total do bioma. Perder 11% da cobertura de vegetação nativa de todo o bioma, em apenas 15 anos, é um prejuízo gigantesco, quase que inestimável para a sociedade brasileira e global. Isso porque estamos perdendo uma quantidade inestimável de patrimônio genético, de capacidade de recarga de aquíferos e de formação de chuvas, que alimenta, abastece e permite a agricultura no bioma. Não somos nem capazes de quantificar economicamente esse prejuízo.
IHU On-Line — Quais são as causas envolvidas no crescente desmatamento do Cerrado?
O Brasil emitiu meio bilhão de dióxido de carbono, ou seja, já emitiu 40% do valor que precisamos reduzir para 2025
Tiago Reis — Primeiro, diria que é essa facilidade de acesso, porque o Cerrado tem mais infraestrutura e ele está mais habitado, isto é, tem mais gente vivendo ali. Além disso, há um arcabouço de políticas públicas claramente insuficientes, ou seja, temos poucas áreas protegidas publicamente no Cerrado — aproximadamente 8% do bioma está protegido em Unidades de Conservação de domínio público ou terra indígena, enquanto na Amazônia já temos mais de 50% do bioma em áreas protegidas.
Além disso, o Código Florestal estabelece que haja áreas de Reserva Legal, dentro de imóveis rurais do bioma Amazônia com fitofisionomia florestal, de 80%. No Cerrado, no entanto, essa área é de 35% ou 20%, isto é, as únicas áreas do Cerrado em que as propriedades privadas têm que manter 35% de Reserva Legal são no Mato Grosso e em Tocantins, porque esses são os estados que fazem parte da Amazônia Legal. Na parte do Cerrado do Maranhão, que fica fora da Amazônia Legal, este percentual é de 20%, assim como na Bahia, em Goiás e em Minas Gerais. Então, isso agrava muito a situação, porque a maior parte deste desmatamento no Cerrado é legal, e o que não é legal é legalizável, porque todo o desmatamento precisa de licenciamento do órgão ambiental estadual. Mas como o Código Florestal permite esse desmatamento, não há dificuldades em desmatar, porque o produtor faz a solicitação e em dois ou três meses a licença sai. O produtor licencia para muito mais do que ele é capaz de desmatar naquele ano, assim ele vai desmatando aos poucos à medida que vai tendo recursos para isso.
Claramente esse arcabouço de política pública insuficiente é uma causa, e a infraestrutura — facilidade de acesso — é outro vetor que favorece o desmatamento. Também existe um processo associado, que é a especulação de terras — grilagem —, isto é, existem atores operando no Cerrado, principalmente nessa região do Matopiba, que é onde tem menos governança, porque nas fronteiras agrícolas existem menos instituições trabalhando. Esses atores ocupam terras públicas, desmatam e valorizam a terra. Com isso, essas terras posteriormente são vendidas para a agricultura e a pecuária. Claramente as produções agrícola e pecuária têm um papel nessa segunda fase: primeiro tem uma especulação e depois tem uma ocupação pelo uso agropecuário, mas essa especulação não existe sem a demanda da agropecuária, portanto não dá para dissociar esse processo.
IHU On-Line — Segundo o Ipam, a expansão da agropecuária no Cerrado tem sido feita sem planejamento territorial adequado. Quais são as dificuldades de fazer um planejamento adequado para a agropecuária no bioma?
Tiago Reis — Além das dificuldades, há falta de informação, ou até a falta de disseminação da informação. Ainda temos pouca informação e pouco conhecimento sobre o Cerrado. A Amazônia, por ser foco há mais tempo e ser valorizada e reconhecida pelo seu valor social, ambiental e econômico há mais tempo, tem mais instrumentos de monitoramento e de geração de dados do que o Cerrado. Por isso, o primeiro passo é aumentarmos esse ferramental, esse conjunto de instrumentos de monitoramento, como, por exemplo, tendo um Prodes do Cerrado, um TerraClass, que faz o monitoramento do uso do solo a cada dois anos, como tem na Amazônia. Esses são dados oficiais, porque extraoficialmente já temos trabalhado muito e a sociedade tem produzido uma iniciativa chamada Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo do Brasil – MapBiomas, que tenta preencher essas lacunas de informações oficiais, mas é claro que ainda há vários ajustes que precisam ser feitos. Mas essa é uma produção muito interessante porque ela é colaborativa, envolve cerca de 30 organizações, fundações e empresas de tecnologia.
Então, como disse, faltam informações: precisamos ter mais informações, estudos, análises e monitoramento sobre o Cerrado, e essas informações precisam ser disseminadas e utilizadas pelos tomadores de decisão tanto do setor público quanto do privado — apesar de não ter todas as informações de que gostaríamos, já temos muitas informações. As empresas agrícolas poderiam utilizar essas informações para planejar a expansão de suas infraestruturas de armazenagem e de esmagamento de grãos. Por exemplo, se sou um trader de soja e tenho que construir silos de armazenagem e plantas de processamento de grãos, por que vou colocar essa infraestrutura em áreas de vegetação nativa, quando sei que tem, pelo menos, 30 milhões de hectares de pasto degradado, com alta aptidão agrícola no bioma Cerrado? Isso é inteligência territorial e precisa ser feito. Se uma empresa instala uma planta de processamento numa área de vegetação nativa, ela está emitindo um sinal de que quer que os produtores desmatem aquela área e produzam no local, porque existe uma questão de viabilidade econômica da produção que depende da distância entre as áreas produtivas e as plantas de processamento das empresas. Então, o tomador de decisão privada tem uma função muito importante de fomentar a produção agrícola em áreas que já estão abertas, pois existem áreas abertas onde pode ser feita a produção.
Do mesmo modo, os atores públicos podem usar as informações que já existem para fazer zoneamento ecológico econômico, para determinar quais são as áreas que vão receber incentivos econômicos e fiscais para a expansão ocorrer. O Plano Safra, que financia a agricultura brasileira de maneira altamente subsidiada, com o nosso dinheiro, deveria atentar para esse tipo de situação. Eu não gostaria de financiar a expansão agricultura para áreas de vegetação nativa, por exemplo. Existem informações e dados mostrando que muitas áreas desmatadas não estão sendo utilizadas. Se é assim, por que o financiamento público não poderia reorientar a expansão para esse tipo de área?
IHU On-Line — Qual é o impacto desse desmatamento para as mudanças climáticas? Como esses dados do desmatamento no Cerrado comprometem as metas nacionais do Brasil no enfrentamento das mudanças climáticas?
O Cerrado é extremamente relevante para a mitigação e adaptação da mudança do clima
Tiago Reis — O Brasil tem uma meta climática de chegar a 2025 emitindo 1,3 bilhão de toneladas de dióxido de carbono ou gases equivalentes. Hoje o Brasil está emitindo pouco mais de 2 bilhões e precisa começar a reduzir esse valor. O Brasil emitiu, em média anual entre 2000 e 2015, meio bilhão de toneladas de dióxido de carbono. Ou seja, se mantivermos este ritmo de desmatamento no Cerrado, chegaremos a 2025 com 40% de nossa meta da NDC já comprometida. E isso diz respeito a apenas a conversão em um bioma, não considera o desmatamento nos outros, tampouco os demais setores de emissão, como energia, resíduos, etc.
O Cerrado sempre foi muito negligenciado em relação à capacidade de estoque de carbono, porque não se tinha a completa dimensão de quanto de carbono era estocado nas raízes das plantas do Cerrado, mas estudos publicados em 2016 e 2017 mostram que existe uma quantidade de carbono mais significativa abaixo e no solo do que acima do solo. O Cerrado é extremamente relevante para a mitigação e adaptação da mudança do clima, porque ele armazena muito carbono e tem resiliência, ou seja, é um bioma que queima naturalmente e rebrota e, nessa rebrota, remove carbono da atmosfera e presta esse papel de mitigação.
IHU On-Line — De outro lado, que impactos esse desmatamento gera para as bacias hidrográficas localizadas no bioma e quais são as consequências para os recursos hídricos em geral?
Tiago Reis — O solo do Cerrado tem algumas particularidades, uma delas é que grandes porções são de fácil compactação. Então, quando se tira a vegetação nativa dessas áreas, incluindo formações campestres, o solo se compacta mais facilmente e com isso é mais difícil para a água da chuva, que já é escassa no bioma, infiltrar e abastecer os aquíferos e lençóis freáticos que abastecem e mantêm o nível dos rios. Algumas bacias importantes têm as nascentes no Cerrado, e outras recebem a águas que nascem no Cerrado.
O Cerrado ocupa essa área central no Brasil, que é uma área mais alta e que tem muita sensibilidade para a recarga dos aquíferos. Então, quando a água da chuva cai, ela escorre, porque o solo está compacto, mas quando há vegetação, a chuva cai e infiltra no solo e abastece os lençóis freáticos. Isso já está registrado em diversas pesquisas, e as pessoas que vivem no Cerrado dizem que o volume de chuva em algumas regiões ainda é o mesmo de outros períodos, mas os rios têm baixado cada vez mais. O que explica isso? Quando chove, o rio enche de uma vez, a água vai embora e depois o rio quase seca. Então, a vegetação nativa tem o papel de regular o ciclo hidrológico, ou seja, permite a infiltração da água e mantém o rio mais equilibrado.
IHU On-Line — Hoje discute-se no Brasil a possibilidade do fim ao licenciamento ambiental para alguns empreendimentos. Que impacto isso pode gerar em termos de aumento do desmatamento?
Tiago Reis — Esta proposta de licenciamento que está tramitando no Congresso diminui a avaliação dos impactos para as atividades, quer dizer, muitas atividades que tinham de ser avaliadas no sentido de verificar que impactos geram, não serão mais analisadas, então essas atividades vão acontecer sem que sejam feitos estudos ambientais. O licenciamento ambiental é chamado de burocracia pelo setor produtivo, mas isso não é uma burocracia, ao contrário, trata-se de um princípio de precaução, uma salvaguarda em relação a algumas atividades que geram impactos ambientais. O que essas análises fazem é verificar possíveis impactos e prejuízos e encontrar maneiras de contornar e mitigar esses efeitos. Com o licenciamento ambiental é possível encontrar maneiras de resolver impactos ou verificar que uma atividade não pode acontecer em determinadas regiões, mas isso deixará de ser feito, e perderemos um instrumento de controle. Isso será um prejuízo para toda a sociedade.
(EcoDebate, 29/11/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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