A construção de grandes centrais hidrelétricas no Brasil constitui uma tragédia para milhares de famílias deslocadas, e um pesadelo para as empresas que procuram reassentá-las seguindo a legislação local. Mas não é exclusivo do Brasil.
Por Mario Osava, da IPS –
Porto Velho, Rondônia, 26/9/2016 – Em todo o mundo resultou empobrecida a maioria da população afetada por 36 de 44 hidrelétricas construídas desde 1936, segundo um estudo de 2005,realizado por Thayer Scudder, professor de antropologia no Instituto Tecnológico da Califórnia, nos Estados Unidos.
Na realidade, apenas três das centrais permitiram melhorar a vida das pessoas. Em outros cinco casos, conseguiu-se recompor o nível de vida anterior. Das 50 centrais pesquisadas, foram 19 da Ásia, 10 da América Latina e o restante de outras regiões, mas apenas 44 apresentavam dados suficientes para o estudo comparativo.
Duas hidrelétricas gigantes recém-construídas no rio Madeira, na Amazônia brasileira,no trecho que cruza o extenso município de Porto Velho, capital de Rondônia, tendem a engrossar as estatísticas negativas, apesar do esforço desenvolvido, com investimentos milionários nos reassentamentos. Seis anos depois do deslocamento, as famílias reassentadas pelas centrais de Jirau e Santo Antônio, a terceira e quarta do país, respectivamente, continuam dependentes da ajuda das empresas concessionárias e uma parte minoritária renunciou à nova moradia.
A escola da Vila Nova Teotônio tem metade dos “quase 300 alunos” de sua localização anterior, e o número “tende a continuar diminuindo a cada ano”, apesar de suas novas instalações mais amplas e modernas, disse à IPS a vice-diretora, Aparecida Veiga. A aldeia de pescadores, surgida há sete décadas junto à cascata Teotonio, minguou juntamente com a escola, ao ser reassentada em um local mais alto, ficando a salvo da inundação da represa de Santo Antônio, construída entre 2008 e 2012, a seis quilômetros de Porto Velho.
“Temos salas com cinco alunos pela manhã, em contraste com os até 42 na antiga sede, com professores subutilizados, necessários em outras escolas”, contou Veiga. “Abaixo”, como a vice-diretora se refere à vila inundada, “a comunidade estava muito ligada à escola, favorecendo o ensino; aqui temos o problema das drogas, meninas grávidas. Tiraram suas raízes, sua cultura”, afirmou. Uma perda foi a cascata submersa.
Com o olhar de homem de negócios, Carlos Afonso Damasceno, de 48 anos e seis filhos, acredita que o problema da nova vila “não é que as pessoas não gostem, mas não haver fonte de renda”. Afirmou que “acabaram os peixes, o rio secou, está sedimentado e morto, sem os peixes de água corrente. Além disso, a estrada de terra foi alongada em 11 quilômetros, ao ser reconstruída rodeando uma ramificação da represa e afastando os turistas”.
Com o pescado escasso e o acesso mais difícil, além dos mosquitos que proliferam por causa da água parada, Teotônio já não atrai os visitantes que antes vinham desfrutar sua gastronomia, sua praia e a cascata, segundo Damasceno, dono de um comércio e do maior restaurante do lugar. Para ele, restaurar a antiga estrada, aterrando o trecho submerso, seria suficiente para superar a decadência econômica local, devolvendo, a aceitáveis 30 quilômetros de distância de Porto Velho, um mercado de 510 mil habitantes.
Apenas 48 famílias da antiga Teotônio aceitaram o reassentamento na nova localização, e delas “restam somente 18, mas algumas não são as originais”, explicou Damasceno.São diferentes os dados do consórcio Santo Antônio Energia (SAE), que construiu a central e tem sua concessão por 35 anos. “Vivem atualmente em Vila Nova Teotônio 47 famílias” e, das 72 casas construídas, 17 foram cedidas à Associação de Moradores e a outras instituições, informou a empresa à IPS.
“Menos de cinco famílias venderam suas casas”, indicou o consórcio, que apresenta a vila como “um caso de referência”, cujo potencial turístico se reflete em eventos ali promovidos e estruturas construídas pelo SAE, como a praia artificial, um embarcadouro de madeira, trilha ecológica, quiosques para refeições e casas de hospedagem.
A piscicultura do tambaqui (Piaractus macropomus), o peixe amazônico mais rentável em sua criação, ainda não decolou porque o grupo de moradores escolhido para a atividade rechaça o projeto oferecido para sua capacitação, os insumos, tanques e veículos necessários, lamentou o SAE.
Cada família de Teotônio continua recebendo ajuda mensal de R$ 1.250 da empresa, fixada pelas autoridades ambientais, por reconhecer que ainda não conseguem se manter por conta própria, após seis anos em novas casas de concreto, em áreas de dois mil metros quadrados, com saneamento e serviços básicos.
Dificuldades similares de adaptação à nova vida ocorrem nos outros seis reassentamentos promovidos pelo SAE e dois da Energia Sustentável do Brasil (ESBR), concessionária da hidrelétrica de Jirau, a 120 quilômetros de Porto Velho.
No Reassentamento Rural Coletivo Vida Nova, da ESBR, restam apenas 22 das 35 famílias iniciais. Ao final de 2016, caberá a elas assumir a piscicultura de tambaqui em tanques cavados no solo, cujos efluentes fertilizam hortas e pomares, segundo seu projeto-piloto desenvolvido durante seis anos.
Em Nova Mutum, um complexo urbano de 1.600 casas construído principalmente para alojar seus empregados, a ESBR assentou uma parte dos deslocados por sua represa. Em sua paisagem de fazenda de pecuária, de pastos sem árvores, se tentou reassentar centenas de famílias da velha Mutum Paraná, um povoado de gente ribeirinha e estreita relação com a mata, que foi inundada pela represa de Jirau.
Longe do rio e de seus peixes, das florestas com suas frutas, substituindo casas de madeira pelas de concreto e a tradicional praia fluvial por uma piscina, o novo habitat foi um choque cultural para os reassentados. Algumas famílias o deixaram, buscando recompor por contra própria o modo de vida anterior em Vila Jirau, uma pequena comunidade à margens do rio.
Mas Nova Mutum é uma das exceções de sucesso dos reassentamentos forçados, segundo Berenice Simão, coautora do ensaio Resiliência Socioecológica em Comunidades Deslocadas por Hidrelétricas na Amazônia, junto com a ecologista Simone Athayde, da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. Essa pequena comunidade de reassentados é “organizada, conta com uma associação de moradores e outra de mulheres muito ativa, que são persistentes nas negociações, lutam e não desistem de suas reclamações”, afirmou Simão à IPS.
Para isso contribui a presença de muitos comerciantes e funcionários públicos entre os reassentados. Além disso, a ESBR tem Nova Mutum como “vitrine” e parece decidida a investir o que for preciso para o desenvolvimento da nova comunidade, pontuou a autora.A empresa mantém o Observatório Ambiental de Jirau, uma organização social com participação das comunidades que promove a educação ambiental, por meio de hortas e reflorestamento, e que incentiva o cooperativismo entre agricultores.
Uma fábrica de móveis está se instalando no lugar, em um galpão sem uso depois de concluída a construção da represa. “Pode ser o embrião do polo industrial”, que estava nos planos da ESBR e não foi adiante, e gerar empregos, favorecendo o desenvolvimento da comunidade, concluiu Simão. Envolverde/IPS
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