Por Mario Osava, da IPS –
Entre a borracha e a hidroeletricidade, Rondônia viveu uma intensa expansão agropecuária e mineradora, desmatando extensas áreas. Numerosos indígenas foram massacrados por mineiros ilegais, agricultores e pecuaristas.
Porto Velho, Rondônia, 14/9/2016 – Euro Tourinho tinha oito anos, em 1930, quando acompanhou sua mãe até Campo Grande, já na época grande cidade do centro-oeste do Brasil, para o parto de um irmão. “Foram 30 dias viajando em carro de boi. Poderiam ser cinco, a cavalo, seguindo a linha do telégrafo, mas meu pai temia ataques indígenas”, contou à IPS.
Pouco depois, seu pai, um fazendeiro em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, na fronteira com o sudeste da Bolívia, escapou ileso de um tiroteio que perfurou seu carro, um dos poucos existentes no país naquela época. Conflitos pela terra costumavam ser resolvidos na base do “38”, o calibre do tipo de revólver que “todos usavam”. Mas um emprego público e a indenização recebida da ferrovia que cruzaria sua fazenda lhe permitiram evitar essa guerra, em troca de adentrar ainda mais na selva brasileira.
Para assumir o cargo no território que hoje é Rondônia, Estado na fronteira com o norte da Bolívia, teve que viajar por seis meses com a família, por terra até São Paulo e Rio de Janeiro, depois por mar até Belém e por rios amazônicos até seu novo lar. Uma volta quase completa pela geografia brasileira.
Acessível praticamente apenas por lentas embarcações fluviais até 1960, Rondônia hoje é um entroncamento logístico entre a Amazônia, o industrializado sudeste do país, a Bolívia e o Peru, um fator importante para seu possível desenvolvimento. Está em meio a estradas que unem os oceanos Atlântico e Pacífico no Peru, conta com outras que penetram na Amazônia ou vão para o norte colombiano e com a hidrovia do rio Madeira, por onde exporta boa parte da soja colhida no oeste brasileiro, barateando o transporte.
A mais recente transformação do Estado deriva da construção, entre 2008 e 2016, de duas grandes centrais hidrelétricas no rio Madeira, perto da capital Porto Velho, que assim passa a ser grande provedor de energia.
Aos 94 anos, Tourinho é a história viva desse processo e dos ciclos econômicos que se sucederam em Rondônia, Estado com 1,8 milhão de habitantes, 510 mil deles morando na capital. Começou pelo negócio da borracha, que enriqueceu a Amazônia desde o final do século 19, graças à demanda por pneus por parte da nascente indústria automobilística. Aos 22 anos, Tourinho herdou do pai falecido uma floresta de seringueiras.
Naquela época, 1944, vivia-se um auge da borracha. A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) demandava grandes suprimentos para os veículos militares e a Malásia, principal produtora, estava sob controle do Japão, deixando os Estados Unidos e seus aliados dependentes da borracha brasileira.Terminado o conflito, os preços caíram e foi inevitável a decadência da economia baseada na borracha na Amazônia, incapaz de competir com a produção intensiva do sudeste asiático.
Tourinho deixou o seringal e a selva e abriu um salão de bilhar em Porto Velho, capital do Estado, ao lado da sede do jornal Alto Madeira, onde começou a escrever em 1950 e desde então, como jornalista, se converteu em testemunha da evolução de Rondônia. Em 1970 adquiriu o jornal e até hoje dirige pessoalmente sua edição, com disciplinada dedicação. “Enquanto eu viver, o jornal impresso não acabará”, afirmou sobre o Alto Madeira, que completará cem anos em 2017.
Tourinho segue aferrado à sua velha máquina de escrever, rechaçando o computador, mas não os novos temas. “As centrais hidrelétricas têm um impacto negativo, que é destruir a natureza, engolir florestas, mas, sem eletricidade não há progresso. Porto Velho só tem funcionários públicos, necessita atrair indústrias, ainda que pequenas, como as de confecção de roupas”, opinou.
A hidrelétrica Santo Antônio, construída a seis quilômetros de Porto Velho, com capacidade para 3.150 megawatts (MW), se prepara para acrescentar outros 417 MW, somando seis novas turbinas às 44 já operando. A energia adicional se destinaria exclusivamente a Rondônia e ao vizinho Estado do Acre.
“É importante porque teremos excedentes energéticos para atrair investimentos. Até agora, nos apagões somos os primeiros a sofrer a queda no fornecimento e o restabelecimento se dá ao contrário, por último aqui”, apontou à IPS Marcelo Thomé, presidente da Federação das Indústrias de Rondônia (Fiero).
“O grande legado da construção das centrais é umanova cultura empresarial, a qualificação de empresas e empresários como melhores provedores de serviços e produtos. Também foi capacitada a mão de obra, com a experiência de trabalhar em uma grande empresa”, acrescentou Thomé. Mas a industrialização esperada pela Fiero não aconteceu. Tampouco o grande aumento do comércio com o Peru, para o qual foi construída a estrada interoceânica concluída em 2011.
Agora os empresários buscam identificar vocações e processos adequados a “cadeias de produção” locais. A indústria de alimentos, aproveitando a agricultura em expansão, é um bom caminho, disse à IPS o superintendente da Fiero, Gilberto Baptista.
Entre a borracha e a hidroeletricidade, o Estado viveu uma intensa expansão agropecuária e mineradora, desmatando extensas áreas. Numerosos indígenas foram massacrados por mineiros ilegais, agricultores e pecuaristas. Rondônia foi um dos Estados que recebeu mais migrantes, atraídos por campanhas governamentais de ocupação amazônica nos anos 1970 e 1980.
O eixo da devastação foi a rodovia BR-364, que cruza o Brasil de sudeste a noroeste, inaugurada em 1960 pelo então presidente Juscelino Kubitschek, derrubando com um trator a última árvore do caminho, mas cuja pavimentação em Rondônia demorou mais de duas décadas. “Naquela época, nem se falava de ecologia”, recordou Tourinho, que esteve no ato para entregar a Juscelino um exemplar do Alto Madeira.
Agora, os protestos e as denúncias de ambientalistas, ativistas sociais e do Ministério Público se tornaram inseparáveis dos projetos hidrelétricos, especialmente na Amazônia, apesar dos crescentes recursos destinados pelas empresas concessionárias a ações de compensação e mitigação de danos.
O Movimento de Afetados por Barragens (MAB) considera, por exemplo, que as empresas subestimaram a área inundada e, por fim, a quantidade de famílias a serem reassentadas ou indenizadas.“O solo aqui é argiloso, empapa, e, com a sedimentação, a represa se expande, matando árvores e deixando a terra improdutiva, além de contaminar poços de água potável”, afetando mais gente do que admitem as companhias, destacou à IPS um dos coordenadores do MAB em Rondônia, João Dutra.
“Nosso programa de monitoramento demonstra que não há interferência da represa no lençol freático”, contra-atacou a concessionária Santo Antônio Energia, em uma resposta por escrito.“O solo empapa, mas já inundava antes da represa. Grande parte da área vizinha é de ‘umiziral’ uma área vulnerável”, explicou Veríssimo Alves, gerente socioambiental da Energia Sustentável do Brasil (ESBR), a concessionária da hidrelétrica de Jirau, 110 quilômetros rio acima da de Santo Antônio.
“Umiziral” define a vegetação lenhosa nascida em solos pobres e inundáveis quando chove. Por isso a ESBR rechaça reassentar os moradores de Abunã, cerca de cinco mil, segundo o MAB. Todos reconhecem que a brutal cheia do rio Madeira, em 2014, alterou as condições, inclusive de sedimentação, e pode ter agravado esses fenômenos. Envolverde/IPS
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