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terça-feira, 21 de julho de 2015

Destruição em Belo Monte vira atração


Uma mega-escavação em Belo Monte. Foto: Reprodução
Uma mega-escavação em Belo Monte. Foto: Reprodução
Por Felipe Milanez, da Carta Capital –
Arqueólogos questionam projeto de consultoria que pretende levar estudantes para ex-sítio arqueológico e acusam desrespeito com população local
O Brasil está ampliando cada vez mais o seu portfólio para se tornar uma Disneylândia de conflitos. Quer ver sangue? Temos para espremer à vontade na favela mais próxima! Quer ver uma ex-floresta? Há um vasto pacote. E um ex-rio ainda habitado por ex-ribeirinhos em um ex-sítio arqueológico? No cardápio vem tudo concretado, difícil de ler, mas nesse safari a avistagem (assim se fala na gíria de agencias de ecoturismo) é garantida – ainda que a população local não esteja “habituada” (como algumas agências tentam treinar onças).
Uns anos atrás eu viajei pela Transamazônica visitando locais de tragédias no passado e escrevi um guia de turismo de conflito: Transando a Amazônia, essa quarentona. Era uma ironia, é claro, que representava uma luta pela memória de violências que não devem ser esquecidas. Nunca esquecer das atrocidades da ditadura empresarial-militar para que não se repitam.
Mas, na mesma Transamazônica, a história volta tanto como tragédia quanto como farsa. A destruição provocada por Belo Monte agora virou, efetivamente, uma atração operada pela empresa de consultoria Scientia Consultoria Científica. O nome, claro, deve ser mais sugestivo: um “sitio-escola”.
Os consumidores-alvo, que não precisam pagar pois a escola é subvencionada pelo cliente que concretou a região e barrou o rio Xingu, são alunos de graduação e pós-graduação que terão hospedagem paga e, portanto, serão visitantes de fora, funcionando como um turismo escolar. E o objetivo é: “a formação inicial de estudantes e pesquisadores na área de arqueologia por meio de atividades teóricas e práticas de campo relacionadas à arqueologia amazônica e escavação de sítios arqueológicos em um contexto de arqueologia consultiva”.
Treinados para servir a consultorias de grandes obras, e é importante lembrar que na Europa já existe um fórum sobre Mega Projetos Inúteis Impostos que, aparentemente, vai demandar mão-de-obra científica para a justificação de mega-obras inúteis, irão acompanhar as “pesquisas em andamento na área da UHE Belo Monte”:
“Os estudantes irão aprender técnicas básicas de prospecção intra-sítio, escavação, e registro necessários para execução de trabalho de campo. Os tópicos a serem abordados incluem estratégias de prospecção intra-sítio e escavação, estratigrafia, topografia, coleta de amostras de solo, técnicas e registro de escavação de sepultamentos, registro de gravuras rupestres e feições de polimento, além de técnicas de flotação de sedimento.”
Será então uma escola para aprender e reafirmar que a arqueologia foi, em quase toda a sua história, um violento instrumento de colonização e saque (lembram de Indiana Jones em busca de tesouros para trazer para casa?), ou, fosse diferente, que a arqueologia, como ciência, pode ser transformada acompanhando um mundo em luta por descolonização e respeito e consulta as populações atingidas por projetos? Paulo Freire deve estar revirando no túmulo sobre cada uso que se faz da ideia de “educação”.
O sítio-escola em um ex-sítio arqueológico (pois os impactos da obra destroem os vestígios arqueológicos da região) foi denunciado por arqueólogos comprometidos com novos paradigmas éticos da ciência que praticam, esses da descolonialidade e respeito às populações que vivem no entorno das áreas de trabalho.
Em uma carta publicada no site Xingu Vivo, e reproduzida abaixo, acusam o desrespeito com povos indígenas e populações locais em todo o processo da construção da usina e o fato dessas pessoas atingidas estarem excluídas da proposta do “sítio-escola”.
Atacam, ainda, os resultados das pesquisas e escavações realizadas nas obras da usina, que são agora objetos do “sítio-escola”, pois, segundo elxs, “em Belo Monte o resgate do patrimônio arqueológico tem assumido uma conotação fetichista, ou seja, é o resgate do patrimônio por ele mesmo”, e questionam se “é correto para a formação de novos arqueólogos realizar pesquisa e ensino em situações onde os seus fundamentos não atendam aos pressupostos humanitários e ambientais elementares sugeridos pela ONU e seus diversos organismos”.
A realização de um sítio-escola de arqueologia poderia ser motivo de comemoração por cientistas e, especialmente, para as comunidades onde eles ocorrem, que teriam uma chance de aprender mais sobre o passado social dos territórios onde vivem. A formação de novos quadros e a renovação dxs pesquisadorxs e das suas ideias é vital para o progresso da ciência. E, conforme sugere a ONU, xs arqueólogxs devem receber uma educação que também inclua a ética, a preservação do patrimônio cultural e, incondicionalmente, o respeito ao ambiente e às sociedades que vivem nas áreas de interesse para a arqueologia.
Tais preceitos também preconizam que xs arqueólogxs atuem em conformidade com as sociedades envolvidas, que as ouçam e as transformem em parceiras, respeitando e valorizando as suas perspectivas e histórias particulares e trabalhando em diálogo (não de cima para baixo, ou de fora para dentro).
No caso da hidrelétrica de Belo Monte, as populações locais não participaram da parte que coube à arqueologia. Nem, igualmente, de outros momentos da obra, como tem denunciando constantemente o Ministério Público Federal pela ausência de consulta às populações atingidas.
Nem foram ouvidas, e nem tiveram as suas perspectivas valorizadas. Basta andar por Altamira para ver que a maioria não concorda com a obra que irá mudar suas vidas — principalmente aqueles que estão deixando suas casas e assistindo à sua destruição por tratores, como tenho recebido relatos de amigxs que vivem lá.
Esse não é um processo muito diferente daquele que a ditadura implantou em Itaipu, em Balbina e em Tucuruí. Nesse sentido, Belo Monte, e me perdoem a ironia, respeita uma longa tradição. Assim como os arqueólogos e outros cientistas que lá estão servindo.
O governo espera ligar a tomada de Belo Monte ainda este ano. Fora cálculos apresentados para convencer investidores, não se sabe realmente qual será a quantidade de energia que efetivamente vai passar pelas turbinas, nem o tamanho da área que será inundada e nem a que será secada (principal efeito na Volta Grande do rio).
Quem está sofrendo mais diretamente as consequências tem descoberto que vive na linha de alagamento e está sendo removido à força de tratores – no processo mais violento de deslocamento humano do Brasil pós-ditadura. Para ligar as turbinas, a empresa Norte Energia vai depender de uma licença específica emitida pelo Ibama.
Mas, se for levado a sério por aqueles que sentam nos balcões dos aparelhos do Estado um minucioso levantamento feito pelo Instituto Socioambiental, essa licença não deveria sair. Em “Dossiê Belo Monte: Não há condições para licença”, não faltam descumprimentos de obrigações que a empresa havia se comprometido para avançar com a obra.
É provável, temo, que o governo utilize a tática que ficou conhecida pelas manobras do deputado Eduardo Cunha: mandar para o Ibama até que ele emita a licença, não aceitar jamais perder mesmo que esteja errado, repetidamente errado.
Esta não é a primeira vez que arqueólogos no Brasil que trabalham principalmente na Amazônia se posicionam contra o uso colonialista da ciência para a imposição de grandes obras para infraestrutura do extrativismo predatório. Aqui nessa coluna, publiquei carta onde escreveram (leia aqui): “conclamamos aos colegas de profissão a não participarem de atividades relacionadas ao licenciamento ambiental das barragens da bacia do Tapajós enquanto este processo seguir em um contexto de violações dos direitos das comunidades afetadas, que ainda não foram consultados segundo estipula a Convenção 169 da OIT”.
No Brasil, há arqueólogos que realmente miram o futuro quando trabalham sobre o passado, enquanto há aqueles que olham o presente mas pensam como se estivessem no passado.
Abaixo a carta assinada por mais de 50 arqueólogos de universidades brasileiras.
Posicionamento sobre atividades de ensino de arqueologia propostas no âmbito da usina hidrelétrica de Belo Monte – Pará, Brasil
Na condição de docentes e pesquisadores em Arqueologia, vimos nos manifestar sobre a proposta de realização de um sítio escola na área impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, recentemente divulgada por empresa de consultoria através do site da SAB (Sociedade de Arqueologia Brasileira).
Esta obra segue a descumprir as condicionantes do licenciamento ambiental e vem gerando irreversível desestruturação sobre as formas de vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais da região. Foi acusada de causar um etnocídio indígena pela Procuradora Federal da República, Thaís Santi, também por afetar e violar direitos fundamentais dos demais povos tradicionais com remoções forçadas[1] e degradação ambiental.
Consideramos grave o fato de que o Estado não exigiu nenhum trabalho etnoarqueológico neste empreendimento, isolando os arqueólogos das comunidades tradicionais locais. Tampouco está claro se o destino da coleção arqueológica resgatada será a cidade de Altamira e se o material estará disponível para os descendentes das populações que ocuparam essa região.
Em Belo Monte o resgate do patrimônio arqueológico tem assumido uma conotação fetichista, ou seja, é o resgate do patrimônio por ele mesmo – algo que a lei prevê, mas que devemos começar a questionar e propor alternativas que sejam igualmente respaldadas pela legislação. Tentar reconstruir a história dentro de um processo que acaba com a possibilidade de transmissão de conhecimentos para as próximas gerações nos parece um paradoxo. Naturalizar e mercantilizar este processo, que leva à destruição ambiental e que representa a desestruturação cultural dos povos – que, em muitos casos, podem ser descendentes daqueles que produziram o patrimônio arqueológico que está sendo escavado – implica participar de um processo totalitário.
Preocupações semelhantes levaram a Sociedade de Arqueologia Brasileira em reunião da SAB Norte em agosto de 2014 a aprovar, em Assembleia Geral na cidade de Macapá, estado do Amapá, uma moção de Solidariedade para com os Povos do Tapajós. Um apelo foi feito aos colegas de profissão para não participar do licenciamento ambiental das hidrelétricas da Bacia do Tapajós, enquanto a consulta livre, prévia e informada (conforme estipulada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT e da qual o Brasil é signatário), não fosse efetuada entre os povos indígenas e comunidades tradicionais afetadas e reconhecida como tal pelo Ministério Público Federal. No dia 15/06/2015 o juíz federal Ilan Presser suspendeu o licenciamento da hidrelétrica de São Luíz do Tapajós e determinou a necessidade de realização da referida consulta.
Acreditamos que um sítio escola deva, antes de tudo, ser norteado por uma perspectiva de ensino pautada por preceitos teóricos explícitos, onde a metodologia aplicada e a ética profissional estejam alinhadas para que os estudantes participem de um processo de formação integral, o que necessariamente inclui o desenvolvimento de um senso crítico em relação ao contexto social em que atuam. Hoje, em pesquisas arqueológicas em áreas que envolvem povos originários e comunidades tradicionais, não é mais possível desconsiderar o contexto social circundante e desenvolver projetos ignorando ou alienando seus moradores. Perguntamos se é correto para a formação de novos arqueólogos realizar pesquisa e ensino em situações onde os seus fundamentos não atendam aos pressupostos humanitários e ambientais elementares sugeridos pela ONU e seus diversos organismos.
Por estes motivos, manifestamos publicamente nossa contrariedade à proposta tal como ela foi divulgada, recomendando que ela não seja implementada. Propomos ainda discutir a criação de um protocolo único pelo IPHAN, na forma de uma portaria e com termos de referência específicos para cada caso, que definam com transparência todos os passos da pesquisa arqueológica em contextos onde há povos indígenas ou tradicionais, ou mesmo grupos sociais que vivam nos locais afetados. Uma proposta deste tipo implica, ainda, a participação do Ministério Público Federal, da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), da Fundação Palmares, de movimentos sociais, da SAB e de outros setores da sociedade nacional. Isto deveria envolver também a obrigatoriedade da divulgação e da publicação detalhada dos resultados dentro de um período previamente estipulado, igualmente dentro de um protocolo único e rigoroso.
Brasil, 24 de junho de 2015.
Firmamo-nos aqui,
Anderson Márcio Amaral Lima – Técnico do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
Anne Rapp Py-Daniel – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
Ariana Silva Braga – Doutoranda da Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro;
Bruna Cigaran da Rocha – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
Bruno Sanches Ranzani da Silva – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
Camila Pereira Jácome – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
Carla Gibertoni Carneiro – Educadora do MAE/Universidade de São Paulo;
Célia Maria Cristina Dermatini – Apoio ao Ensino e Pesquisa do MAE/Universidade de São Paulo;
Cínthia Moreira – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
Claide de Paula Moraes – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
Cláudia Turra Magni – Docente da Universidade Federal de Pelotas;
Cristiana Barreto – Pós-doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Daniella Magri Amaral – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Eduardo Bespalez – Docente da Universidade Federal de Rondônia;
Eduardo Góes Neves – Docente do MAE/Universidade de São Paulo;
Eduardo Kazuo Tamanaha – Pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
Elisangela Regina de Oliveira – Docente da Universidade Federal de Rondônia;
Erêndira Oliveira – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Fabiana Rodrigues Belem – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Fábio Guaraldo de Almeida – Mestre em Arqueologia;
Fabíola Andréa Silva – Docente do MAE/Universidade de São Paulo;
Francisco Antônio Pugliese Junior – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
Francisco Forte Stucchi – Mestre em Arqueologia;
Francisco Silva Noelli – Professor aposentado da Universidade Estadual de Maringá;
Gabriela Prestes Carneiro – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
Grasiela Tebaldi Toledo – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Guilherme Zdonek Mongeló – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
Gustavo Jardel Coelho – Graduando da Universidade Federal de Minas Gerais;
Jaqueline Gomes Santos – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Juliana Salles Machado – Pós-doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Kelly Brandão Vaz da Silva – Colaboradora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
Laura Pereira Furquim – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Lorena Gomes Garcia – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Luciano Pereira da Silva – Docente da Universidade Estadual do Mato Grosso;
Lúcio Menezes Ferreira – Docente da Universidade Federal de Pelotas;
Márcia M. Arcuri Suñer – Docente da Universidade Federal de Ouro Preto;
Marina Nogueira Di Giusto – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Márjorie do Nascimento Lima – Mestre em Arqueologia;
Maurício André Silva – Educador do MAE/Universidade de São Paulo;
Michael Joseph Heckenberger – Docente da Universidade da Flórida;
Michel Bueno Flores da Silva – Mestrando do MAE/Universidade de São Paulo;
Mikael Correia dos Santos – Historiador e graduando da Universidade Federal Vale do São Francisco;
Morgan J. Schmidt – arqueólogo
Myrtle Pearl Shock – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
Pedro Henrique Damin – Mestre em Arqueologia;
Rafael Guedes Milheira – Docente da Universidade Federal de Pelotas;
Raoni Bernardo Maranhão Valle – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
Renan Pezzi Rasteiro – Mestrando do MAE/Universidade de São Paulo;
Sarah Kelly Silva Schimidt – Graduanda da Universidade Federal de Minas Gerais;
Silvia Cunha Lima – Pós-doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
Vanessa Linke – Pesquisadora do MHNJB da Universidade Federal de Minas Gerais;
Vera Lúcia Guapindaia – arqueóloga
Vinícius Eduardo Honorato de Oliveira – Mestrando do Institute of Archaeology, University College London;
Vinícius Melquíades – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
Will Lucas Silva Pena – Mestrando da Universidade Federal de Minas Gerais.
(Carta Capital/ #Envolverde)
* Publicado originalmente no site Carta Capital.

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