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segunda-feira, 18 de maio de 2020

O apartheid ambiental é a norma no Antroceno

antropoceno

“O apartheid ambiental é a norma no Antropoceno”. Entrevista com Ian Angus

IHU
“As pessoas e os países que têm a menor responsabilidade pelo aquecimento global são as suas principais vítimas. É um clichê ambiental o lema de que todos nós estamos no mesmo barco no globo terrestre, ao contrário, na realidade, alguns viajam na primeira classe, com assentos reservados nos melhores botes salva-vidas, enquanto a maioria vai para o convés, em bancos de madeira, expostas a intempéries e sem acesso a botes salva-vidas. O apartheid ambiental é a norma no Antropoceno”, afirma Ian Angus, ativista ecossocialista canadense e membro-fundador da Rede Internacional Ecossocialista.
A entrevista é publicada por Viento Sur, 09-05-2020. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Conte-nos um pouco sobre sua trajetória biográfica e política.
Nasci no Canadá, onde passei minha vida inteira. Na adolescência, me senti atraído pelas revoluções cubana e vietnamita e sendo um estudante, tornei-me ativista da esquerda marxista. Participei da organização de manifestações contra a guerra e de apoio a refugiados latino-americanos, nos anos 1960 e 1970, e durante esse período escrevia regularmente em revistas socialistas do Canadá e dos Estados Unidos. Meu primeiro livro, publicado em 1981, foi Canadian Bolsheviks, uma história dos primeiros anos do Partido Comunista no Canadá.
Como socialista e marxista, quando ouviu falar sobre a mudança climática pela primeira vez? Quais foram os livros, os acontecimentos e os assuntos que chamaram sua atenção para essas questões?
Sempre me interessei muito por ciências, e é por isso que há muito tempo acompanho debates e questões ambientais. Não tenho certeza quando pensei na mudança climática como uma preocupação particular. No entanto, nos anos 1990, fiquei interessado em discussões e debates sobre a possibilidade de uma análise marxista da crise ecológica global. Li livros e artigos de uma ampla variedade de pesquisadores ecologistas, socialistas e marxistas e, por algum tempo, concordei com a ideia de que Marx e Engels não tinham muito a dizer sobre a natureza, e o que disseram era inadequado ou inclusive estavam equivocados.
Meu momento de inspiração foi quando li A ecologia de Marx, de John Bellamy Foster. Ao contrário de outros escritores, Foster ia até as raízes, mostrando em detalhes o que Marx disse sobre a agressão do capitalismo à natureza e como se relacionava com sua visão materialista do mundo. Marx analisou a grande crise ambiental de sua época – o declive da fertilidade dos solos na Inglaterra e na Europa – e identificou sua fonte como uma ruptura causada pelo capitalismo, no que ele denominou de “metabolismo universal da natureza”. Assim como Foster mostrou, esse conceito de ruptura da “fenda metabólica” nos oferece um marco indispensável para a compreensão das atuais crises ecológicas.
Essa análise e o trabalho nas mesmas linhas de Paul Burkett, em Marx and Nature, me convenceram completamente. Depois de escrever uma série de artigos sobre questões ambientais, impulsionei a revista online Climate & Capitalism, em 2007, e no mesmo ano participei da construção da Rede Internacional Ecossocialista (Ecosocialist International NetworkEIN).
Juntamente com Michael Löwy e Jel Kovel, escrevi o Segundo Manifesto Ecossocialista (também conhecido como a Declaração Ecossocialista de Belém), em 2008. A EIN teve uma vida curta, mas foi um primeiro passo importante. Acredito que a recém-criada Rede Global Ecossocialista promoverá a construção dos movimentos sociais amplos que precisamos.
Há alguns anos, escreveu ‘Facing the Anthropocene: Fossil Capitalism and the Crisis of the Earth System’. Poderia nos falar sobre os argumentos de seu livro, sobre o conceito de Antropoceno como a marca de uma nova época geológica e histórica?
Nas últimas décadas, o conhecimento científico do nosso planeta mudou radicalmente. Um número cada vez maior de pesquisas se concentrou não apenas em problemas ambientais específicos, mas no planeta como um todo, e mostrou que o sistema terrestre está mudando rápida e radicalmente. As condições ambientais que prevaleciam, desde a última era glacial – as únicas condições em que as civilizações humanas existiram -, estão sendo varridas.
A mudança climática é o exemplo mais óbvio: o nível de dióxido de carbono na atmosfera é agora muito maior do que em qualquer outro momento, nos últimos dois milhões de anos. Isso, juntamente com outras mudanças radicais, levou muitos cientistas à conclusão de que começou uma nova época no sistema terrestre. Chamam essa nova era de Antropoceno, e há um amplo consenso de que a mudança decisiva em direção a essas novas condições ocorreu em meados do século XX.
Em Facing the Anthropocene, tentei mostrar como as grandes mudanças do capitalismo durante e depois da Segunda Guerra Mundial provocaram as mudanças globais que os cientistas têm identificado. Basicamente, a fenda metabólica que Marx identificou se tornou um conjunto de fendas globais inter-relacionadas, enormes rupturas nos sistemas que sustentam a vida no planeta Terra.
Essa crise ampla, global, é o problema mais importante no momento. Houve um tempo em que os socialistas podiam tratar legitimamente os danos ambientais como um dos muitos problemas do capitalismo, mas isso não é mais verdade agora. Lutar para limitar os danos causados pelo capitalismo hoje e construir o socialismo nas condições do Antropoceno exigirá mudanças que jamais qualquer socialista do século XX teria imaginado. Compreender essas mudanças e se preparar para elas deve ser a prioridade número um em nossa agenda socialista.
Tenho que reconhecer que fiquei muito satisfeito com a acolhida que recebeu Facing the Anthropocene. Está agora em sua terceira edição, tornou-se parte da lista de livros obrigatórios em muitos programas universitários de Ciências Ambientais e foi traduzido para vários idiomas.
Falou-se muito sobre o Green New Deal, que remonta aos programas públicos, reformas financeiras e regulações que o Presidente Franklin Roosevelt aprovou nos anos 1930. Dizem-nos que um New Deal, radical e verde, precisa ser aprovado atualmente, supostamente mobilizando todos os recursos dos Estados para evitar a catástrofe ambiental. O que acha dessas propostas, defendidas por Naomi Klein e outros ecologistas?
Nos Estados Unidos, onde o termo foi cunhado, a etiqueta Green New Deal está sendo usada por um grande número de políticos e ativistas para defender propostas muito diversas. Os planos do Green New Deal abrangem desde reformas liberais do sistema tributário até propostas de um Estado de bem-estar de cunho social-democrata, incluindo, em alguns casos, a nacionalização das indústrias de energia. E são promovidas versões diferentes também em outros países, principalmente no Canadá e no Reino Unido. Nenhuma delas representa um desafio para o sistema capitalista como tal, mas também é difícil fazer avaliações gerais de seu conteúdo, teríamos que analisar o que significa cada um dos projetos que apresentam.
Os detalhes são importantes, mas do meu ponto de vista é muito mais importante que um projeto do tipo Green New Deal possa mobilizar as pessoas para fora dos corredores do poder. Nas palavras de Marx, “cada passo de um movimento real é mais importante que uma dúzia de programas”. E como Naomi Klein diz: “Agora, somente os movimentos sociais podem nos salvar”.
O que realmente vemos por parte da maioria dos líderes políticos e das Organizações não-Governamentais são planos verticais projetados para persuadir os políticos e servidores, usando a ação extraparlamentar como cortina de fumaça e a instrumentalizando para o apoio eleitoral aos políticos liberais. É uma fórmula projetada para vencer. Nisso consiste o Green New Deal: é papel molhado.
Mas, havendo dito isso, o crescente interesse em soluções ecológicos é um sinal positivo. Alguns anos atrás, seria impossível para Alexandria OcasioCortez fazer com que escutassem sua versão do Green New Deal, digamos que não seria apoiada por outros deputados e que a questão não teria lugar em importantes debates na imprensa e em outros meios de comunicação. Isso não significa conseguir as mudanças de que precisamos, mas mostra que alguns de nossos líderes estão começando a sentir o calor dos protestos e das mobilizações. Portanto, mesmo que essa não fosse a intenção de seus autores, a ideia de um Green New Deal pode nos ajudar a levar as pessoas para a rua.
‘Roape’ é uma revista e uma página web de economia política crítica, focada na África. Pode nos contar um pouco sobre a extensão da crise climática no continente e no Sul global de maneira geral?
Há um capítulo em Facing the Anthropocente intitulado “Não estamos nada juntos nisso”. O contínuo saque brutal na África é uma evidência clara disso. As pessoas e os países que têm a menor responsabilidade pelo aquecimento global são as suas principais vítimas. É um clichê ambiental o lema de que todos nós estamos no mesmo barco no globo terrestre, ao contrário, na realidade, alguns viajam na primeira classe, com assentos reservados nos melhores botes salva-vidas, enquanto a maioria vai para o convés, em bancos de madeira, expostas a intempéries e sem acesso a botes salva-vidas. O apartheid ambiental é a norma no Antropoceno.
Se o capitalismo fóssil permanecer dominante, o Antropoceno será uma nova era de governo selvagem, controlado por poucos e um terrível sofrimento para a maioria, especialmente no Sul Global. É por esse motivo que a direção da Climate & Capitalisme adaptou o slogan da famosa chamada de Rosa Luxemburg à resistência para impedir o desastre da Primeira Guerra Mundial, “Ecossocialismo ou barbárie: não há terceira via”.
O ativismo militante ecologista abalou o mundo inteiro no ano passado, com crianças e jovens desempenhando um papel central em greves e protestos. O que poderia nos dizer sobre o papel e a importância do ativismo e como esses movimentos precisam se vincular a grupos mais amplos e à política anticapitalista?
Como dizia, de fato, a tarefa diante de nós é construir amplos movimentos sociais nas ruas, fora dos corredores do poder. Deveríamos assumir que esses movimentos não serão perfeitos de acordo com uma teoria e assumirão formas inesperadas. Ninguém que conheço teria previsto as dimensões do movimento juvenil global pelo clima, iniciado por Greta Thunberg, nem o impacto do movimento Extinction Rebellion, no Reino Unido, mas ambos são exemplos significativos do que pode ser feito.
No Canadá, as campanhas mais eficazes estão sendo lideradas pelos povos indígenas que lutam para proteger suas terras ancestrais da exploração pelas indústrias de gás e petróleo. Recentemente, em seus protestos e piquetes, conseguiram cortar os principais trilhos de trem do país, forçando o governo a negociar com o povo Wet’sunwet’en, que está lutando para manter um gasoduto fora de suas terras.
Em situações como essa, a pior coisa que os socialistas podem fazer (e infelizmente muitos radicais puristas fazem exatamente a mesma coisa) é se afastar, criticando o movimento porque suas demandas não são suficientemente exigentes ou porque os ativistas têm ideias irrealistas sobre o que é possível conseguir com o sistema atual. Temos que lembrar a famosa explicação de Marx de que as pessoas não mudam suas ideias e depois mudam o mundo: mudam suas ideias na ação de mudar o mundo.
Os ecossocialistas precisam ser participantes ativos e construtores de um movimento conectado com à realidade, e, ao fazê-lo, temos que explicar pacientemente a necessidade de mudanças radicais, mostrando que a crise ecológica global é realmente uma crise do capitalismo global e que não será possível construir soluções sustentáveis enquanto o capitalismo continuar a dirigir este planeta.
Ao lado da minha mesa, tenho o famoso aforismo de Gramsci “Pessimismo da razão, otimismo da vontade”, porque para mim define qual deve ser a atitude ecossocialista em nosso tempo. O capitalismo é poderoso e sabemos que é realmente possível o desastre, mas não podemos nos render ao desespero. Se lutarmos, podemos perder, se não lutarmos, perderemos. Uma luta consciente e coletiva para parar o trem para o inferno que significa o capitalismo é a única esperança de um mundo melhor.
Muitas pessoas estabelecem um vínculo entre a crise climática, o capitalismo e o surgimento da Covid-19. Poderia nos descrever como estão intimamente relacionadas essas questões?
Há três anos, a Organização Mundial da Saúde recomendou que as agências de saúde pública se preparassem para o que chamavam de “Doença X”: o provável surgimento de um novo patógeno que causaria uma epidemia global. Nenhum dos países ricos respondeu a esse conselho, continuaram suas políticas neoliberais de austeridade, reduzindo os gastos em pesquisa e serviços de saúde. E mesmo agora, quando a Doença X chegou, os governos estão gastando mais dinheiro em resgatar bancos e empresas de petróleo do que em salvar vidas.
Toda uma série de novas doenças zoonóticas (vírus, bactérias e parasitas que passam da vida selvagem para humanos e animais domésticos) estão surgindo em todo o mundo porque o capitalismo está devastando as florestas primárias, substituindo-as por monoculturas para lucrar.
Nos ecossistemas desestabilizados resultantes, há mais oportunidades para doenças como ebola, vírus da zika, da gripe suína, outras novas gripes, e agora a Covid19 contagie as comunidades próximas.
O aquecimento global piora a situação ao permitir (e forçar) que os patógenos abandonem as áreas isoladas onde existiam, passando despercebidos por séculos inteiros ou mais tempo. A mudança climática, além disso, enfraquece o sistema imunológico das pessoas e dos animais, tornando-os mais vulneráveis a doenças e mais propensos a sofrer complicações extremas. Em última análise, o capitalismo coloca o lucro à frente das pessoas, e isso está nos matando.
(EcoDebate, 18/05/2020) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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