por Edgar Morin em entrevista a David Le Bailey e Sylvain Courage – Tradução: Edgard de Assis Carvalho –
No estado atual, qual o ensinamento que se pode tirar da pandemia do coronavírus?
Esta crise mostra que a mundialização é uma interdependência sem solidariedade. O movimento da globalização produziu a unificação tecnoeconômica do planeta, mas não ampliou a compreensão entre os povos. Desde seu início, nos anos 1990, guerras e crises financeiras se multiplicaram. Os perigos planetários – ecologia, armas nucleares, desregulação da economia – criaram uma comunidade de destino para os humanos que não se conscientizaram disso. De modo imediato e trágico, o vírus deixa clara essa comunidade de destino. Tomaremos, enfim, consciência disso? A falta de solidariedade internacional e organismos comuns para adotar medidas na escala da pandemia faz com que as nações se fechem nelas mesmas.
Em seu discurso, o presidente Emmanuel Macron adverte sobre o perigo de uma “retomada nacionalista”...
Pela primeira vez, estamos diante de um verdadeiro discurso de presidente. Não se trata apenas de uma questão econômica e empresarial, mas do destino de todos os franceses, dos enfermos e dos cuidadores, das pessoas desempregadas, obrigadas a trabalhar em tempo parcial. Sua alusão à necessidade de mudança do modelo de desenvolvimento pode ser indício de algo. O antídoto para a retomada nacionalista não é a retomada europeia, já que a Europa é incapaz de se unir: mas sim a formação de solidariedades internacionais, a começar pelos médicos e pesquisadores de todos os continentes.
Quais mudanças seriam necessárias para isso?
O coronavírus reitera veementemente que a humanidade como um todo deve buscar uma nova via capaz de abandonar o New Deal político, social, econômico. A nova via salvaguardaria e reforçaria serviços públicos como os hospitais que, há anos, na Europa passam por reduções insensatas. A nova via corrigiria os efeitos da mundialização criando zonas desmundializadas que se incumbiriam de salvaguardar as autonomias fundamentais…
Quais são essas “autonomias fundamentais”?
Em primeiro lugar, a autonomia de produtos alimentares. Na época da Ocupação, durante a Segunda Guerra Mundial, a agricultura francesa era diversificada, e isso permitiu alimentar a população a despeito dos ataques alemães. Hoje, mais uma vez, é preciso diversificar. Existe, igualmente, a autonomia da saúde publica. Muitos medicamentos hoje são produzidos na Índia e na China e corremos sérios riscos de passar por uma severa escassez. É preciso relocalizar o que é vital para uma nação.
A mundialização transforma a crise da saúde pública em crise geral?
Claro que sim. A decisão de Vladimir Putin de manter a produção do petróleo russo provocou uma baixa de preço na Arábia Saudita e nos Estados Unidos. O Texas, por exemplo, pode passar por graves dificuldades e talvez fazer com que Donald Trump perca a eleição presidencial… O pânico atinge também o mercado financeiro, e isso pode provocar um crash nas bolsas de valores, como o que ocorreu na chamada quinta-feira negra de 29 de outubro de 1929. Não se consegue controlar essas reações em cadeia. A crise gerada pelo vírus agrava a crise da humanidade estimulada por forças que ignoram qualquer tipo de controle.
Se fizermos uma comparação com a gripe espanhola de 1918-1919, objeto de uma verdadeira omertà da parte das autoridades, os governantes atuais se empenharam em dar mais transparência às suas ações. Isso não pode ser considerado como um efeito positivo da globalização?
Na época da gripe espanhola, ninguém queria que as populações, sobretudo os combatentes, tomassem consciência do flagelo. Essa opacidade é impossível nos dias de hoje. Mesmo o regime chinês não pôde esconder a informação, e puniu o herói que deu o sinal de alerta… As redes de informação permitiram que ficássemos a par do avanço da pandemia país por país. Mas isso não desencadeou uma cooperação internacional espontânea de pesquisadores e médicos. A OMS, assim como a ONU, é incapaz de fornecer os meios de resistência aos países mais desfavorecidos.
“Retornou-se aos tempos de guerra”: esta frase é muitas vezes citada para descrever a situação da Itália e da França. O senhor conheceu esse período. A analogia lhe serve de inspiração para alguma coisa?
Na época da Ocupação Nazista, houve fenômenos de encarceramentos e confinamentos, como no caso dos guetos… Mas a grande diferença com os dias de hoje reside no fato de que, na dominação nazista, as medidas de confinamento eram impostas pelo inimigo, enquanto agora elas se impõem contra o inimigo, o vírus. Após alguns meses da Ocupação alemã, as restrições de abastecimento começaram a aparecer. Não chegamos ainda a esse nível, mas já existem momentos de pânico. Mas se essa crise continuar, com a redução dos transportes de mercadorias em nível internacional, pode-se prever um retorno dos racionamentos. Mas a analogia para por aí. Não estamos no mesmo tipo de guerra.
Pela primeira vez desde 1940, escolas e universidades foram fechadas…
É verdade, mas naquela época o fechamento foi bem provisório. A derrota da França ocorreu em junho, no momento em que as férias começavam. Em outubro, as escolas foram reabertas.
O que se pode esperar do confinamento? O medo? A desconfiança entre os indivíduos? Ou, ao contrário, o desenvolvimento de novas relações com os outros?
Vivemos numa sociedade na qual as estruturas tradicionais de solidariedade se degradaram. Um dos maiores problemas é restaurar as solidariedades entre vizinhos, entre trabalhadores, entre cidadãos… Com as restrições que sofremos agora, as solidariedades vão ser reforçadas, por exemplo, entre os pais e os filhos que não estão indo às escolas. As possibilidades de consumo vão ser reduzidas e podemos aproveitar a oportunidade para repensar o consumo desenfreado ou, melhor dizendo, a dependência, o “consumo drogado”, essa intoxicação concernente a produtos sem utilidade real e substituir a quantidade pela qualidade.
Provavelmente, nossa relação com o tempo também vai mudar…
Claro. Graças ao confinamento, a esse tempo que recuperamos, que não é mais picado, cronometrado, um tempo que não se resume a andar de metrô-ir ao trabalho-voltar para casa e dormir, poderemos nos reencontrar a nós mesmos, perceber quais são as necessidades essenciais como o amor, a amizade, a ternura, a solidariedade, a poesia da vida… O confinamento pode ajudar a começar uma desintoxicação do nosso modo de vida e a compreender que o bem-viver implica o florescimento de nosso “Eu”, mas sempre entre os diversos “Nós”.
Em última análise, essa crise pode ser paradoxalmente salutar?
Fiquei muito emocionado ao ver mulheres italianas nas sacadas de suas casas cantarem esse hino de fraternidade denominado “Irmãos de Itália”. Devemos recuperar uma solidariedade nacional que não seja mais fechada e egoísta e sim aberta para nossa comunidade de destino “terrestre”. Antes do surgimento do vírus, os seres humanos de todos os continentes tinham os mesmos problemas: a degradação da biosfera, a proliferação das armas nucleares, a economia sem regulação que só faz ampliar as desigualdades. Não resta dúvida de que essa comunidade de destino existe, mas como as mentes estão angustiadas, em vez de tomar consciência disso, elas se refugiam num egoísmo nacional ou religioso. Que fique bem claro, precisamos de uma solidariedade nacional que é essencial, mas se não compreendermos que é preciso uma consciência comum do destino humano, se não ampliarmos os laços de solidariedade, se o pensamento político não mudar, a crise de humanidade se agravará cada vez mais. A mensagem do vírus é clara. Pior para nós, se não quisermos entendê-la.
(L’OBS/#Envolverde)
Agradecimento especial a Vivian Blasso que possibilitou essa publicação)
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