Sob críticas dos movimentos sociais e ambientalistas, o Projeto de Lei que regulamentará o acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional por indústrias e pesquisadores será votado nesta terça-feira (31), em regime de urgência, pelo Senado Federal, em Brasília.
Segundo as organizações sociais, entre elas, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, o projeto, apresentado pelo governo da presidente Dilma Roussef, em 2014, não atende os interesses dos povos tradicionais e sim das indústrias farmacêuticas e de cosméticos, que têm realizado um forte lobby em favor das mudanças na legislação. Elas criaram uma Coalizão Empresarial pela Biodiversidade, composta por várias entidades representativas dos dois setores.
Entre os pontos criticados pelo movimento social e considerado “graves” estão a dispensa do consentimento livre, prévio e informado para o acesso ao patrimônio genético, o conhecimento tradicional associado relacionado à alimentação e agricultura, a permissão para que empresas nacionais e internacionais acessem e explorem, sem controle e fiscalização, o patrimônio genético brasileiro e os conhecimentos tradicionais associados, permitindo, por exemplo, o acesso de empresas estrangeiras a bancos de sementes.
Os movimentos sociais também criticam a forma como a repartição de benefícios foi elaborada. O Projeto de Lei prevê que apenas produtos acabados serão objeto de repartição de benefícios, excluindo os produtos intermediários.
Proposto pelo Ministério do Meio Ambiente, em 2014 durante o período das eleições presidenciais, o governo conseguiu aprová-lo em “regime de urgência constitucional” em fevereiro passado na Câmara dos Deputados sob a forma de Projeto de Lei 7.735. No Senado, o projeto recebeu a nomenclatura de PLC No. 2/2015.
Em entrevista à agência Amazônia Real, a presidente da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Sonia Guajajara, disse que o texto do projeto de acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional reduz vários direitos dos povos indígenas e tradicionais. Ela criticou a atuação do governo federal na aprovação do projeto na Câmara.
“Há várias questões que são postas em forma de pegadinhas, mas que estão sempre do lado das indústrias. Se for aprovado do jeito que veio da Câmara, será mais uma prova de que estamos sendo “tratorizados” pelo governo, que só tem retrocedido e violado nossos direitos”, disse Sonia Guajajara.
Ela lembrou que a votação está ocorrendo às pressas para que os movimentos sociais não tenham tempo de se articular. “Não houve discussão. O governo quer votar e aprovar logo. Só as empresas tiveram condições de botar pressão para ser votado na Câmara da maneira que elas queriam”, afirmou.
À reportagem, o presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, antigo Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), Joaquim Belo, disse que o conteúdo do PL “está perfeito” para as indústrias, pois, segundo ele, apenas estas serão beneficiadas.
“Esse projeto, do jeito que está, é uma aberração. O item sobre repartição de benefícios, é um dos piores. Diz que só haverá repartição após o produto acabado. Isso, pra nós, é um prejuízo. As empresas podem pegar produtos intermediários e nunca repartir. A outra vergonha é a anistia de empresas que estão sob investigação de uso indevido. Vai acontecer com elas igual como aconteceu com os fazendeiros que foram anistiados no novo Código Florestal”, disse Joaquim Belo.
O extrativista demonstrou receio com a possibilidade das emendas incluídas no PLC do Senado não serem aceitas durante a votação no plenário. “Acho que é preciso um ponto de equilíbrio, se não perderemos tudo”, afirmou Joaquim Belo, à Amazônia Real.
Segundo Sônia Guajajara, os senadores Jorge Viana (PT-AC), que é o relator do Projeto de Lei, Telmário Mota (PDT-RR) conseguiram incluir algumas emendas que garantem direitos dos povos indígenas e tradicionais.
Uma das emendas do senador Telmário Mota, da CCT ((Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática) foi a substituição do termo “população indígena” para “povos indígenas” (que havia sido desconsiderado no PL da Câmara). Segundo sua assessoria, ele reconhece a adequação dessa terminologia aos diplomas legais relevantes, em âmbito nacional e internacional, e o consenso técnico e acadêmico sobre essa nomenclatura. O termo “povo” é ratificado pelo Brasil através da da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Emendas incluídas
O senador Telmário Mota também incluiu a retirada da definição de “produto acabado” na reparticipação de benefícios. Para ele, o componente do patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado deve ser apenas um dos elementos principais de agregação de valor ao produto para que haja a repartição de benefícios.
O senador de Roraima também questionou a criação de uma Lista de Classificação de Repartição de Benefícios com todos os produtos sujeitos à repartição. De acordo com a proposição, mesmo havendo o acesso ao conhecimento tradicional associado e uma posterior exploração econômica, o produto ausente da referida lista não será passível de gerar repartição de benefícios. O senador Telmário Mota acatou uma emenda que inverte essa lógica, criando uma lista apenas com os produtos isentos, de forma que a repartição de benefícios seja a regra e não a exceção.
Segundo a assessoria de Jorge Viana, a Comissão de Meio Ambiente (CMA), do qual ele faz parte, apresenta 15 mudanças em seu parecer com relação ao texto que foi aprovado na Câmara. Outras três comissões também apresentaram pareceres: CRA (Comissão de Agricultora e Reforma Agrária), CCT e CAE (Comissão de Assuntos Econômicos). Todos esses pareceres com as respectivas emendas serão levados ao Plenário amanhã.
A assessoria de imprensa de Jorge Viana informou que as emendas acatam alguns dos itens apresentados pelos movimentos sociais no documento divulgado logo após a votação na Câmara. Leia aqui a carta.
O advogado do ISA (Instituto Socioambiental), Mauricio Guetta, ong que atua junto aos povos indígenas na Amazônia, disse que a expectativa com a possibilidade do PLC No. 2 ser aprovado com as emendas vai minimizar os danos do texto enviado pela Câmara Federal.
Guetta enumerou as maiores ameaças contra os povos indígenas e tradicionais. Uma delas é a forma de fiscalização e controle das atividades de acesso e exploração econômica do patrimônio genético ficariam flexíveis. No PL, este sistema prevê um cadastro autodeclaratório. A partir deste cadastro, a empresa já está autorizada a fazer a pesquisa, sem qualquer aval do órgão de fiscalização e controle.
“Isso é temerário, já que viola princípios de direitos socioambientais. Como o poder público deve fiscalizar”, disse.
Outro prejuízo, já citado pelos representantes dos movimentos sociais, está na repartição dos benefícios. “Do jeito que está no PL, faz com a repartição seja uma exceção, e não regra”.
Guetta também disse que não está previsto no PL a possibilidade do povo ou comunidade negar o conhecimento.
Por fim, ele criticou a anistia prevista para as empresas que cometeram irregularidades. “Há uma cláusula inteira sobre isso. No entanto, há uma série de sanções no Ibama, com autos de infração milionárias e ações judiciais acusando as empresas de violações. Pelo PL, tudo isso será anistiado”, afirmou.
A Amazônia Real entrou em contato com duas instituições que integram a Coalizão Empresarial pela Biodiversidade, o Instituto Ethos e a empresa Natura, e solicitou entrevistas com seus representantes, mas não obteve retorno das assessorias. A reportagem não conseguiu falar com outros representantes. Mais informações sobre a coalizão podem ser obtida neste link.
Indígenas perderão autonomia, diz pesquisadora
Leia entrevista abaixo com a doutora em Direito Ambiental e pesquisadora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Sheilla Dourado, sobre o assunto. Sheilla Dourado escreveu artigo a respeito, que pode ser lido no site do PNCSA.
Amazônia Real – Quais são os itens do PL aprovado na Câmara mais danosos aos direitos dos povos indígenas/tradicionais e agricultores?
Sheilla Dourado – Entendo que os pontos mais preocupantes são os que dizem respeito à participação dos povos e comunidades tradicionais na tomada de decisões sobre o acesso e uso de seus conhecimentos e especialmente sobre a repartição de benefícios.
Amazônia Real – Desde quando este assunto vem sendo debatido?
Sheilla Dourado – No fim de 2006 o CGEN (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente) convocou a consulta pública para ter elementos para definir critérios de repartição de benefícios, mas a participação dos chamados “detentores” (esse termo é questionado pelos juristas) foi pequena, certamente pelo modo como a consulta foi feita.
Naquela época, a Fepi (Fundação Estadual de Povos Indígenas, substituída pela Secretaria Estadual de Povos Indígenas) promoveu oficinas junto a povos indígenas no Amazonas, na capital e nas comunidades, para informar sobre a consulta, mas elas foram insuficientes para realmente esclarecer tudo o que aquela consulta implicava e responder o questionário proposto. Os representantes indígenas pediram mais oficinas sobre o tema, se interessaram em conhecer seus direitos, mas era o início de um processo de discussão com eles, principalmente os que estavam nas aldeias e comunidades. Em seguida da consulta n.02, a Casa Civil propôs o texto de uma proposta legislativa para substituir a MP, um anteprojeto de lei (APL), que também foi posto sob consulta pública, mas a consulta foi “abortada”, porque o APL foi alvo de muitas críticas. O texto voltou para a casa civil que passou a discutir internamente e com ministérios, com subsídios do CGen, mas sem uma participação efetiva dos “detentores”.
Amazônia Real – O ideal é que o assunto tivesse sido debatido de forma ampla?
Sheilla Dourado – Certo seria que o texto apresentado pela Casa Civil fosse antes discutido com os representantes dos “detentores”, como diz o art. 6º da convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Ele diz que as medidas legislativas que afetem diretamente a vida de povos e comunidades tradicionais devem ser submetidas a consulta prévia e isso não foi feito. Essa é uma grande frustração para os movimentos, porque não tiveram voz na definição dessa proposta legislativa para defender seus interesses.
Sobre a repartição, a falta de definição de critérios precisos deste a edição da MP2186-16 de 2001 sempre foi uma dificuldade e o PL que está no senado hoje busca simplificar cálculos e procedimentos, mas simplifica para os usuários, sem consideração ao que poderia ser considerado “justo e equitativo” para os “detentores”.
Amazônia Real – Qual tem sido o papel das empresas na aprovação do PL na Câmara e agora, no Senado?
Sheilla Dourado – As empresas usuárias estão presentes desde o Cgen. Participam das reuniões do Plenário para acompanhar seus pedidos de autorização que tramitam lá, mas também como ouvintes, monitorando as decisões desse conselho. Conhecem como o conselho funciona e a partir disso, fazem propostas conforme seus interesses..
Amazônia Real – Por que é importante para o setor empresarial que o PL seja aprovado desta forma?
Sheilla Dourado – Os procedimentos para pedido de autorização e para a repartição de benefícios e cálculos foram definidos de forma que atendem seus interesses. A porcentagem de 1%, podendo ser reduzida até 0,1% da renda anual obtida com os produtos que comercializam, a exigência de repartição de benefícios apenas para produtos acabados, além da isenção que mencionei antes, são algumas das vantagens para as empresas.
Amazônia Real – Quais serão as perdas dos povos indígenas e tradicionais?
Sheilla Dourado – Considero que o maior problema é a própria falta de autonomia para definir os termos dos contratos de que farão parte, para o uso dos seus conhecimentos e recursos. Quem garante que a repartição “padronizada” como pretende o PL, vai ser “justa e equitativa”, como prevê a convenção sobre diversidade biológica? Certamente não será. Existem outros exemplos também.
Amazônia Real – O projeto foi apresentado pelo Executivo. Qual o interesse?
Sheilla Dourado – O interesse do governo pela riqueza biológica é enorme, como fonte de recursos financeiros, e ele fomenta a biotecnologia desde o PACTI (Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação) de 2007 (MCT&I), que fazia parte do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento). Existe projeto de lei tramitando no Congresso desde 1995, o primeiro de autoria de Marina Silva, mas o consenso sempre foi tão difícil que nunca se conseguiu chegar a um texto final para votação. Um dos problemas cruciais para os povos e comunidades tradicionais é a falta de representatividade no Congresso Nacional. Não há apoio às suas causas pela grande maioria dos congressistas, muito pelo contrário.
* Publicado originalmente no site Amazônia Real.
(Amazônia Real)
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