Jornal da Unicamp
Texto LUIZ MARQUES
Fotos REPRODUÇÃO
Edição de imagem LUIS PAULO SILVA
Fotos REPRODUÇÃO
Edição de imagem LUIS PAULO SILVA
Ondas letais de calor já antes do verão: 51,1º C no Paquistão em 27 de maio; 56º C no Irã em 4 de junho; em 16 de junho, 43º C em Portugal, favorecendo um dos mais mortíferos incêndios florestais europeus dos registros históricos. Em 19 de junho, 49º C em Oklahoma, nos EUA, impedindo aviões de menor porte de voar. Temperaturas extremas tornam-se mais extremas, prováveis, frequentes e adversas à vida vegetal e animal em latitudes crescentes do planeta à medida que se adensam as concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa (GEE).
Depois do dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4) é a personagem mais destacada na trama das mudanças climáticas antropogênicas em curso. Sua importância vem despontando nos últimos dez anos e deve crescer ainda mais nos próximos vinte. Uma pesquisa publicada em dezembro de 2016 na Geophysical Reseach Letters revisa para cima o impacto das emissões antropogênicas de metano sobre o sistema climático, em relação aos valores adotados pelo IPCC[1]. Segundo seus autores, considerado o período 1750-2011, a forçante radiativa do metano (sua capacidade de absorver e reter na atmosfera a radiação infravermelha reemetida pela Terra, impedindo que o calor se disperse no espaço) “é cerca de 25% mais alta (aumento de 0,48 W/m2 para 0,61 W/m2) que o valor adotado pela avaliação de 2013 do IPCC”[2].
A partir desses novos cálculos, Gunnar Myhre, do Center for International Climate and Environmental Research de Oslo, conclui que “as emissões antropogênicas de metano já causaram um efeito de aquecimento correspondente a cerca de um terço do efeito devido às emissões de CO2”[3]. Quando se afirma que, no último decênio, o metano entrou definitivamente em cena no balanço das causas maiores das mudanças climáticas, esse é o primeiro ponto a ser considerado.
O segundo ponto diz respeito ao ritmo de aumento das concentrações atmosféricas de metano. Em 1750, essas concentrações eram de 700 partes por bilhão (ppb). Em 2015, elas atingiram 1.834 ppb, como mostra a figura abaixo.
Entre 2000 e 2005, houve desaceleração e tais concentrações aumentaram em média apenas 5 partes por bilhão (ppb) ao ano. Mas a partir de 2007, elas começam a subir de novo muito rapidamente. Em 2015, elas aumentaram 9,9 ppb, praticamente o dobro da taxa média de aumento do começo do século. Nos últimos três anos, a curva das concentrações atmosféricas de metano está se aproximando do cenário de mais intensa emissão de GEE, isto é, o cenário RCP 8,5 W/m2 proposto pelo IPCC, como mostra a figura abaixo[4].
O terceiro ponto a considerar quando se fala na contribuição crescente do metano na composição dos GEE no último decênio é o amplo leque de suas fontes emissoras, todas elas crescentes. Antes de sua queima como gás natural, o metano escapa para a atmosfera em todas as etapas da indústria de combustíveis fósseis: extração por hidrofracionamento, distribuição, armazenagem, consumo e minas de carvão ativas e abandonadas. Mas além das emissões ligadas às energias fósseis, quantidades ainda maiores de metano são lançadas à atmosfera por outros quatro fatores principais:
1. Fermentação entérica dos rebanhos
2. Agricultura e incêndios de turfeiras
3. Liberação de metano nas hidrelétricas
4. Degelo dos pergelissolos e dos hidratos de metano
Por enquanto, as emissões de metano são predominantemente biogênicas, cabendo à indústria fóssil 30% a 45% dessas emissões e aos itens 1 e 2 (fermentação entérica dos rebanhos, agricultura e incêndios de turfeiras), 55% a 70% delas, conforme a figura abaixo[5].
Outra fonte de metano – as hidrelétricas – não é ainda claramente contabilizada nos cálculos das emissões de GEE, embora tenha sido quantificada, por exemplo, por Philip Fearnside, pesquisador titular do INPA. Ele mostra que “em termos de emissão de gases de efeito estufa a represa de Balbina no Brasil [é] pior que a queima de combustíveis fósseis”[6]. Além de seus brutais impactos socioambientais, as hidrelétricas são, portanto, grandes emissoras de metano e, desmentindo um tenaz lugar-comum, não oferecem uma matriz energética de baixo carbono.
O quarto fator, decerto o mais potencialmente perigoso, a assegurar ao metano uma posição cada vez mais central na cena climática é o fenômeno de amplificação do aquecimento global no Ártico. Segundo o relatório da Organização Meteorológica Mundial, de março de 2017, muito do aquecimento médio global de 1,1º C acima do período pré-industrial atingido em 2016 deve-se ao aquecimento do Ártico, onde as temperaturas médias já atingiram, em algumas áreas, ao menos 3º C acima do período 1961-1990 e até 6,5º C no aeroporto de Svalbard, na Noruega, um salto gigantesco de 1,6º C em relação ao último recorde. Esse enorme aquecimento desencadeia uma dinâmica de retroalimentação, na qual o maior calor causa retração do gelo marítimo e degelo dos pergelissolos terrestres e marítimos, diminuindo drasticamente o albedo (a fração da radiação solar reemitida pela Terra de volta para o espaço), o que aumenta, por sua vez, o aquecimento e assim sucessivamente.
O mais iminente perigo de um aumento desenfreado da liberação de metano na atmosfera provém da plataforma marítima continental da Sibéria oriental (ESAS), pois 75% de sua área de 2,5 milhões de km2 está a menos de 40 metros de profundidade. Seu leito, outrora recoberto de gelo, está agora, dadas temperaturas estivais muito acima de zero, cada vez mais exposto à radiação solar. Ocorre que há quantidades imensas de metano, em grande parte sob a forma de hidratos de metano, armazenadas nos sedimentos dessa plataforma. E como essa plataforma é muito rasa, o metano não mais aprisionado nesses hidratos, e liberado também pela ação bacteriana sobre o carbono aí represado, está subindo em colunas de bolhas de metano diretamente para a atmosfera. A taxa de aceleração desse processo é ainda objeto de controvérsia. Mas ele já está em curso. “Devemos lembrar – e muitos cientistas infelizmente esquecem – que é apenas desde 2005 que ocorre essa abertura estival do oceano nas plataformas marítimas do Ártico. Assim, estamos numa situação inteiramente nova, com a ocorrência de um novo fenômeno de degelo”, escreve Peter Wadhams, num livro recente e fundamental[7].
É claro que o metano permanece na atmosfera apenas cerca de 12 anos, enquanto o CO2 permanece em média de um a três séculos (sendo seu efeito, assim sendo, essencialmente cumulativo[8]). Mas a ameaça imediata do metano revela-se agora sempre maior, pois, em termos de potencial de aquecimento global (GWP), uma tonelada de metano na atmosfera equivale a 72 toneladas de CO2 num horizonte de 20 anos[9].
Os próximos 20 anos serão, de fato, cruciais. Segundo os cientistas de Cambridge, reunidos no Arctic Methane Emergency Group (AMEG), “o metano pode suplantar o dióxido de carbono e se tornar a maior forçante radiativa nos próximos 20 anos”. A Declaração do AMEG afirma: “as quantidades de metano na plataforma continental marinha são tão vastas que a liberação de apenas 1% ou 2% desse metano pode levar à liberação do metano restante em uma reação em cadeia irrefreável”[10]. E na conferência de imprensa na COP20 de Lima, em dezembro de 2014, John Nissen, diretor do AMEG, assim resumiu suas conclusões: “o degelo do Ártico é uma ameaça catastrófica para a civilização”.
[1] Cf. M. Etminan, G. Myhre, E.J. Highwood, K.P. Shine, “Radiative forcing of carbon dioxide, methane and nitrous oxide: a significant revision of the methane radiative forcing.” Geophysical Research Letters, 27/XII/2016: DOI:10.1002/2016GL071930. Para os valores da forçante radiativa do metano e demais GEE, sempre em relação ao potencial de aquecimento global (GWP) do CO2, adotados pelo IPCC/AR4, baseando-se nos cálculos de G. Myhre, veja-se “Climate Change 2007: Working Group I: The Physical Science Basis”, cap. 2.10.2: Direct Global Warming Potentials:
[2]M. Etminan et al. (cit.): “The 1750-2011 [methane] Radiative Forcing is about 25% higher (increasing from 0.48 W m-2 to 0.61 W m-2) compared to the value in the Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) 2013 assessment”.
[3] Cf. Gunnar Myhre, “Effect of methane on climate change could be 25% greater than we thought”. Cicero, 12/I/2017.
[4]Cf. M. Saunois, R. B. Jackson, P. Bousquet, B Poulter & J. G. Canadell, “The growing role of methane in anthropogenic climate change”. Environmental Research Letters, 11, 12, 12/XII/2016: “atmospheric methane concentrations are rising faster than at any time in the past two decades and, since 2014, are now approaching the most greenhouse-gas-intensive scenarios”.
[5]Cf. Adam Vaugham, “Fossil fuel industry’s methane emissions far higher than thought”. The Guardian, 5/X/2016; M. Saunois et al. (cit.): “New analysis suggests that the recent rapid rise in global methane concentrations is predominantly biogenic – most likely from agriculture”.
[6] Cf. Philip M. Fearnside, “Why Hydropower is not clean energy”. Scitizen, 9/I/2007; Fearnside, “Greenhouse Gas Emissions from a Hydroelectric Reservoir (Brazil’s Tucuruí Dam) and the Energy Policy Implications”. Water, Air, and Soil Pollution, Janeiro, 2002, 133, 1-4, pp. 69-96: “Tucuruí’s emission of greenhouse gases in 1990 is equivalent to 7.0–10.1 × 106 tons of CO2-equivalent carbon, an amount substantially greater than the fossil fuel emission of Brazil’s biggest city, São Paulo”
[7] Cf. Peter Wadhams, A Farewell to ice. A report from the Arctic. Londres, 2016. Veja-se também o excelente A espiral da morte. Como a humanidade alterou a máquina do clima. São Paulo, 2016, de Claudio Ângelo.
[8]Trata-se da média proposta por T. J. Blasing, “Recent Greenhouse Gas Concentrations”. CDIAC, Abril de 2016 <http://cdiac.ornl.gov/pns/current_ghg.html>. Entre 65% e 80% do CO2 lançado na atmosfera dissolve-se no oceano entre 20 e 200 anos, mas há uma “longa cauda” residual absorvida ao longo de milênios, de modo que, se fossem cessadas hoje as emissões de CO2, suas concentrações atmosféricas só retornariam aos níveis pré-industriais após mais de dezenas ou centenas de milênios. Cf. D. Archer et al.“Atmospheric Lifetime of Fossil Fuel Carbon Dioxide”. Annu. Rev. Earth Planet. Sci. 2009. 37:117-34 <http://climatemodels.uchicago.edu/geocarb/archer.2009.ann_rev_tail.pdf>.
[9]Cf. E isso apenas no que se refere aos efeitos diretos do metano. Mas é preciso ainda levar em conta, no cálculo de seu potencial de aquecimento global, as emissões indiretas, já que o metano tende a aumentar as concentrações de outros dois gases de efeito estufa: o ozônio e o vapor de água. Veja-se o IPCC, capítulo citado na nota 1.
Luiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 2a edição, 2016. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br).
Do Jornal da Unicamp, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 04/07/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário