Boletim do World Rainforest Movement, WRM, 231, (jun 2017)
Dercy Teles de Carvalho foi a primeira presidenta de um Sindicato de Trabalhadores Rurais do Brasil na pequena cidade de Xapuri, Acre, em 1981. Xapuri ficou conhecido nacional e internacionalmente pelo sucessor da Dercy na direção do sindicato: o Chico Mendes. Conversamos com Dercy durante o recente encontro “Os efeitos das Políticas ambientais-climáticas para as populações tradicionais: manejo florestal, REDD, PSA” (1), sobre a rica história de mobilização popular dos seringueiros, as dificuldades, aprendizagens e desafios.
Dercy é filha de uma família tradicional seringueira. O pai dela, como a maioria dos seringueiros, veio do Nordeste do Brasil, em busca de uma vida melhor. O pai do Dercy ensinou ela a ler e com ele ela aprendeu os exercícios básicos da matemática. Dercy iniciou sua militância durante a ditadura militar nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Inspirada na teologia de libertação, foi nas CEBs que ela começou a refletir sobre e incidir na realidade dos povos. Depois, se virou uma das professoras de educação popular. Atuavam a nível da comunidade e gratuitamente. Inspirados no método de Paulo Freire (2) elaboraram materiais didáticos específicos para a realidade dos seringueiros, usando a linguagem da comunidade. Conta que era muito divertido este trabalho, mesmo que para chegar nos locais de aula, as vezes tinham que percorrer 12 horas a pé.
Quando começou a entrar a pecuária no Acre, a partir da década de 1970, surge o conflito entre o povo seringueiro e os pecuaristas, grandes fazendeiros. Foi nessa época que o povo seringueiro, que dependia da floresta, começou, com sucesso, a usar a tática de luta do “empate”: uma ação coletiva, um grande mutirão, para sensibilizar os peões que dirigiam os tratores que destruíram a floresta.
Em 1981 Dercy foi eleita presidenta do Sindicato de Trabalhadores Rurais, eleita por mais de 900 delegadas e delegados. Naquela época, as lideranças sindicais não eram remunerados. Tinha os parceiros para ajudar nos deslocamentos e encontros. Construíram também nessa época o Partido dos Trabalhadores (PT), há mais de 20 anos no poder no Acre.
Pergunta: Quais foram os principais aprendizados da luta dos seringueiros para você?
Dercy: Neste processo de luta que foi desenvolvido em Xapuri a partir dos anos 1970, a gente construiu muitos instrumentos que fortaleceu a luta, possibilitando ao município de Xapuri ser reconhecido nacional- e internacionalmente a partir do movimento sindical com a participação do Chico Mendes, etc. Fomos percebendo que o sindicato de trabalhadores rurais não conseguiu abranger essa realidade especifica do povo seringueiro. Criamos organizações especificas o Centro de Trabalhadores da Amazônia, que trabalhou questões como a saúde e a comercialização. Em 1985, organizamos na Universidade de Brasília o primeiro encontro nacional de seringueiros do Brasil e criamos o Conselho Nacional de Seringueiros (CNS) com o apoio de vários parceiros. A partir disso começamos a idealizar a RESEX (Reserva Extrativista) que era uma espécie de reforma agrária, mas diferente, atendendo à especificidade do extrativista. Foi eleita uma direção do CNS e começamos a pensar áreas de atuação no intuito do extrativista poder viver seu modo de vida. Depois de tudo isso desandou porque a gente não vigiou, não controlou o processo de luta, a gente acabou entregando, fez toda uma construção, entregou para pessoas estranhas das organizações e do governo que depois utilizaram de uma forma completamente em desacordo com aquilo que a gente sonhava. O governo do PT cooptou tudo mundo e se transformou no pior dos inimigos enquanto afirma que está tudo maravilhoso com o “desenvolvimento sustentável”. Hoje vemos uma destruição dos movimentos pelas intervenções do governo. Apesar dos professores hoje seram contratados, as escolas libertadores de antes, com o PT, se transformaram em escolas tradicionais, escolas que preparam as pessoas para cidade e não para se manter na floresta. Há uma grande dificuldade de mobilizar as pessoas. A descredibilidade é muito grande. As pessoas só vão para reunião se é para ganhar alguma coisa. Se é para aprender alguma coisa não vão. O Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xapuri, hoje é um sindicato onde as lideranças são assalariados, distanciando elas das suas bases. A eleição recente da direção do sindicato de Xapuri resultou em que hoje se transformou no sindicato das empresas madeireiras. (3)
Então o que eu digo hoje principalmente para a juventude, para as pessoas que estão construindo um processo de luta, de defesa dos seus direitos, dos seus territórios é que a gente tem que confiar, mas tem que vigiar. E ao indicar um cidadão para assumir qualquer posto, representando a comunidade, ele tem que realmente representar aquilo que a comunidade deseja, ele não pode falar pela comunidade sem antes ter passado por uma discussão com a própria comunidade, porque ao contrário ele está fazendo uma representação ilegítima e não representando os anseios da comunidade. Isso é muito importante. Porque foi isso que nos fez perder muito do que nos construímos, de deixar por conta de pessoas que eram da nossa confiança mas na verdade não correspondeu com a confiança que lhes foi depositada.
Pergunta: O que significa para vocês uma reserva extrativista (RESEX), não na forma como ela acabou se tornando, mas da forma como vocês a idealizaram? O que era para vocês o principal dessa ideia?
Dercy: A ideia principal da reserva extrativista era institucionalizar um modelo de reforma agrária que atendesse as especificidades da cultura e da população tradicional. Que não fosse um loteamento haja vista que o loteamento não atende às especificidades da cultura e da população tradicional. Então a reserva foi projetada com esse sentido, de promover uma reforma agrária adequada à realidade da população seringueira na época que ela ainda era bem significativa.
Pergunta: E qual era a visão de vocês sobre as decisões o que fazer dentro da RESEX, a quem caberia essas decisões?
Dercy: o projeto original da reserva extrativista tinha em seu conteúdo como ponto principal que a reserva seria administrada pelos próprios moradores. É tanto que foi elaborado um plano de utilização com a participação dos moradores aonde eles determinaram ponto a ponto do que podia e que não podia acontecer dentro da reserva. E eles seriam os principais responsáveis.
Pergunta: E em que se transformou este RESEX hoje?
Dercy: Olha, com a intervenção do governo, de agentes estranhos à reserva, de agentes externas, dentro da Reserva todo este projeto original ele foi distorcido. Então o plano de utilização da reserva foi modificada gradativamente nos gabinetes em Brasília [capital do Brasil, sede do governo federal], com a participação destes que se dizem representantes da comunidade, mas realmente não representa nada porque hoje são funcionários do governo, estão a servir o governo e não a comunidade. Então todo este plano de utilização ele foi desmoronado e hoje existe um plano que atende aos interesses do governo e não dos trabalhadores. E morar hoje na Reserva se tornou uma situação de penúria porque as pessoas vivem sobressaltada, vivem sendo criminalizadas com multas exorbitantes por fazer suas roçadas de subsistência para receber R$ 100 da “bolsa floresta” (4), e não tem para quem apelar, porque o Instituto Chico Mendes que é o gestor da Reserva só entra na Reserva para punir-los, multar-los e criminalizar-los e ameaçar-los. Não tem um processo de educação para que as pessoas possam viver harmoniosamente com a natureza e o governo não oferece condições para que se possa sobreviver do extrativismo sem agredir a natureza porque está provada secularmente que uma das atividades que é harmonioso com a natureza é o extrativismo da seringa e da castanha. A castanha nem em todas as colocações existe e o extrativismo da seringa está falida porque não existe mercado para absorver. Isso tudo leva a um processo de expulsão suave: as pessoas vão sair espontaneamente.
Pergunta: Além de tudo isso que você já falou, que mais você diria para outras lutas, para jovens ativistas que se inspiram nesta luta aqui, em Xapuri e como resgatar o que foi perdido?
Dercy: É necessário ser fermento na massa, sempre. Em relação a aprendizagem, a mensagem que eu transmito para os jovens é o seguinte: que a gente tem que aprender fazendo, e fazer aprendendo, porque só assim a gente valoriza nosso meio, a nossa cultura e o nosso território. Este encontro que estamos aqui tem o objetivo de unir indígenas e não-indígenas que vivem na floresta. Sem a floresta, a gente não vive. A única coisa que resta na cidade é o trafico de drogas. Vamos esquecer nossas diferenças, e não será para nos, já foram 40 anos de luta, e hoje tenho o prazer de incentivar a luta. Nosso inimigo principal é o capitalismo. Só não combatemos ele porque estamos desunidos.
* Veja várias entrevistas realizadas durante esse encontro, incluindo uma com Dercy Teles: http://encontrodexapuri.blogspot.nl/2017/06/blog-post_7.html
* Educador brasileiro, destacou-se por sua contribuição na área de educação popular
* Veja artigo de denuncias da população da RESEX Chico Mendes em Xapuri sobre o chamado “manejo florestal comunitário”, em http://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/brasil-vozes-de-comunidades-no-acre-alertam-sobre-as-violacoes-envolvidas-no-manejo-florestal-sustentavel-comunitario/ Recurso de R$ 100 por mês repassado pelo Estado a famílias que vivem nas florestas sob a condição de não mais tocar na florestas, por exemplo não mais pôr fogo para fazer roça
* Educador brasileiro, destacou-se por sua contribuição na área de educação popular
* Veja artigo de denuncias da população da RESEX Chico Mendes em Xapuri sobre o chamado “manejo florestal comunitário”, em http://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/brasil-vozes-de-comunidades-no-acre-alertam-sobre-as-violacoes-envolvidas-no-manejo-florestal-sustentavel-comunitario/ Recurso de R$ 100 por mês repassado pelo Estado a famílias que vivem nas florestas sob a condição de não mais tocar na florestas, por exemplo não mais pôr fogo para fazer roça
Colaboração de Amyra El Khalili, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 18/07/2017
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