Caravana Agroecológica visitou comunidades da bacia do São Francisco no norte da Bahia para visibilizar os conflitos e a degradação ambiental gerados pelos projetos de desenvolvimento apoiados pelo Estado brasileiro
Reportagem de André Antunes – EPSJV/Fiocruz
Sabiá, São Tomé, Goiabeira, Brejão da Caatinga, Pacuí. São muitas comunidades diferentes, com problemas comuns: conflitos fundiários e por água envolvendo agricultores familiares e o agronegócio, uso indiscriminado de agrotóxicos, falta de saneamento básico e ausência de políticas públicas para manter pequenos produtores e comunidades tradicionais em seus territórios. Essas foram algumas das questões relatadas pelos moradores das localidades pelas quais passou a Caravana Agroecológica do Semiárido Baiano, que percorreu a bacia do rio São Francisco, no norte da Bahia. Fruto de uma articulação entre a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o Ministério Público da Bahia e dezenas de outras organizações, a iniciativa reuniu cerca de 70 pessoas, e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) esteve presente. O objetivo da caravana? Dar visibilidade à denúncias, conflitos e experiências de resistência e organização das comunidades frente aos impactos promovidos pelo agronegócio, pela mineração e pelas grandes obras que os viabilizam, como os barramentos de rios para captação de água e geração de energia. A reportagem do Portal EPSJV acompanhou uma das rotas da caravana, que percorreu localidades ao longo de um dos afluentes do São Francisco, o rio Salitre. Foram mais de 800 quilômetros, percorridos ao longo de três dias, entre 27 e 29 de junho.
André Búrigo, professor-pesquisador da EPSJV e um dos articuladores da caravana, explica que a rota ao longo do Salitre foi pensada como um microcosmo da realidade da bacia do São Francisco. “O Salitre espelha o que está acontecendo hoje em todas as outras sub-bacias que deságuam no São Francisco”, analisa. Búrigo afirma que a caravana contribuiu para a análise do papel que o Estado brasileiro tem tido historicamente naquela região com a promoção de um modelo de desenvolvimento cujos benefícios não se estendem para a maioria das populações dali, que são as mais vulneráveis aos impactos negativos desse modelo. “O Estado brasileiro está muito presente quando grandes empreendimentos, que produzem um conjunto de impactos, são instalados. Por outro lado, temos um Estado mínimo no que diz respeito à proteção da biodiversidade, da garantia dos direitos, das políticas sociais para as populações mais vulnerabilizadas. É uma regra que se expressa no país como um todo e que aqui vimos o poder de destruição”, ressalta Búrigo.
Salitre: de afluente a receptor das águas do São Francisco
A primeira parada já deu o tom da natureza dos conflitos que a caravana observaria ao longo de seu percurso. Na comunidade de Sabiá 2, em Juazeiro, conhecemos o seu Lôu, que relatou os problemas enfrentados pela comunidade para o abastecimento de água. “Eu sou salitreiro, mas o nosso Salitre hoje tá difícil”, lamenta. “E tá difícil por quê? A gente acha que o desenvolvimento se desenvolveu demais, nosso riachinho que era pouco secou, não tá chovendo. Não tem como molhar as plantas”, completa seu Lôu. Ali acontece uma situação curiosa: sobre o leito do rio Salitre correm, no sentido inverso ao fluxo original, as águas do São Francisco.
O Salitre secou ali depois da construção de barragens rio acima, no município de Ourolândia, no início da década de 1980. Diante dos conflitos pela água entre grandes proprietários, beneficiados pela construção da barragem, e os pequenos proprietários atingidos pela seca do rio, a solução encontrada foi construir ainda mais barragens, dessa vez para abastecer parte das comunidades localizadas no baixo Salitre, onde o rio secou. Em um primeiro momento foram construídas três barragens para reter a água, pela prefeitura de Juazeiro. Posteriormente, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), ainda na década de 80, construiu mais seis barragens e as equipou com um sistema de abastecimento por bombeamento em sequência, a partir do rio São Francisco. São as chamadas barragens galgáveis. Na última década a Codevasf construiu um canal de águas do São Francisco e duas adutoras para viabilizar a fruticultura irrigada na região através do Projeto Salitre. Com a água chegou toda a lógica de produção da Revolução Verde, com intenso uso de agrotóxicos, que beneficia principalmente grandes proprietários. Somadas as obras de barragens galgáveis com o canal de irrigação e adutoras o que ocorre na região é um tipo de transposição das águas do São Francisco.“Isso mostra o caos que é esse modelo”, ressalta Josemário Gonçalves, técnico do Instituto Regional para Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), que presta assessoria técnica voltada para convivência com o semiárido e promoção da agroecologia na região. “O São Francisco, de receptor, passou a doar água para a bacia. É insustentável”, completa.
Hoje os moradores denunciam que ainda têm que disputar a água com empresários do agronegócio que se instalaram ali depois que ela passou a chegar até o local. Uma disputa ingrata: as comunidades denunciam que a gestão do sistema é feita por uma empresa privada, a Agrovale, que utiliza uma grande quantidade de água para produzir cana de açúcar e frutas para exportação. O que sobra abastece os pequenos produtores do baixo rio Salitre. Mas com a falta de chuva na região – em alguns locais, a estiagem já dura 10 anos, segundo moradores – esse arranjo não tem sido suficiente. “E há uma contradição muito grande”, complementa o técnico do Irpaa. “O custo de captar do São Francisco e trazer para cá faz com que a água fique caríssima. A associação de produtores da região paga R$ 16 mil por mês para a Codevasf. Enquanto isso tem produtores ligados ao agronegócio no perímetro irrigado que não pagam nada”, critica. Segundo Josemário, as terras ao longo do Salitre estão entre as mais férteis do mundo, o que acirra também os conflitos fundiários. “Hoje a situação é que as famílias ribeirinhas não têm terra. As terras foram compradas e ocupadas por grandes projetos e muitas famílias às vezes preferem deixar de produzir em pequena escala de forma agroecológica para trabalhar como diaristas nas roças dos grandes empresários”, ressalta Josemário.
Os mais velhos ainda se lembram do tempo em que suas comunidades eram banhadas pelo Salitre, antes da chegada dos grandes projetos que prometiam trazer o desenvolvimento. É o caso de dona Maria Antônia, de 70 anos, moradora da comunidade de Brejão da Caatinga. “Este rio era a nossa vida, dependíamos dele para tudo. Era daqui que a gente tirava nossa sobrevivência: a gente tinha peixes aqui; as pessoas plantavam batata, cana. Tínhamos até engenho que moía cana. Era no rio que a gente lavava roupa, que a gente ia buscar água”, enumera. “Hoje não temos mais nada disso, nosso rio está morto. É uma tristeza”, lamenta.
Na comunidade quilombola de São Tomé, pertencente ao município de Campo Formoso, os mais velhos contam histórias parecidas. Na época de chuva, o Salitre também passava por ali até o início da década de 1980. “A gente tinha roça, tirava nossa comida de lá. Plantava feijão, milho, mamona, algodão. Nas vazantes por onde passava o rio tinha a batata-doce, a cana de açúcar. Aqui se produzia mel, tinha engenho onde se fazia rapadura”, lembra dona Eunides, da Associação Comunitária Quilombola do Povoado de São Tomé. “Hoje não temos mais essas coisas, mas estamos batalhando. Ainda tenho muita vontade de ver água nas nossas vazantes, nos nossos rios, descendo, para que a gente ainda tenha como plantar. Porque hoje quem tem condição de furar seu poço planta suas verduras. E quem não tem fica ganhando um dinheiro chorado nas roças dos que plantam, arriscando sua vida lá no meio dos agrotóxicos”, complementa.
Já no povoado de Lagoa da Canabrava, a reivindicação dos moradores e pequenos produtores rurais é outra. Ali há água em abundância, desde que foi construído um sistema de captação para agricultura irrigada em meados dos anos 1980, com financiamento da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a partir do projeto de um empresário local. O empreendimento, que segundo Ramalho José dos Santos, da Associação Comunitária dos Pequenos Produtores Rurais do Povoado de Lagoa de Canabrava, chegou a empregar cerca de 800 pessoas, foi desativado há duas décadas. Desde então, a associação vêm reivindicando a revitalização do local para viabilizar a agricultura irrigada pelos pequenos proprietários da região. “Aqui já tem a infraestrutura, já tem a energia, é bem mais simples revitalizar esse sistema para que a gente possa usar essa água do que furar poços artesianos. A minha roça fica a 600 metros daqui e não posso irrigar, não consigo plantar um pé de banana”, diz Ramalho, que reclama da falta de interesse do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), o órgão ambiental da Bahia, em viabilizar o projeto. “Aqui foi tudo feito com dinheiro público, e está aí, abandonado. E o Inema tá sabendo, mas não tá se preocupando. Quando a gente se reúne eles dizem que vão ver o que é possível fazer mas nunca falam ‘sim’. O nosso linguajar é diferente desse pessoal que estuda, e com isso eles vão despistando o povo com palavras difíceis, para que o povo não entenda nada, e aí fica por isso mesmo”, critica.
Nascentes em risco
A disputa pela terra e pela água gera conflitos em comunidades ao longo de toda a bacia. Na comunidade de Pacuí, adjacente ao rio de mesmo nome que abastece o Salitre, o problema são as inúmeras bombas clandestinas instaladas nas nascentes, o que é proibido pela legislação ambiental brasileira. Moradores denunciam que o problema se agravou a partir da instalação de um açude nas proximidades para irrigação de lavouras de maracujá, tomate, cebola e pimentão, entre outros produtos. “Tudo com agrotóxico”, ressalta Kezia Alcântara, da Associação Quilombola dos Agricultores Familiares da Comunidade de Buraco e membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Salitre, que tem tentado chamar atenção para o problema. Kézia aponta que o uso indiscriminado da água, aliado à falta de saneamento em toda a região, principalmente esgotamento sanitário e coleta de lixo, e à falta de preservação das nascentes, desenham um cenário de esgotamento para os próximos anos. “A gente que mora aqui se preocupa. Eles são empresários, vêm de fora, alugam terras, fazem uma plantação desse tamanho e usam muita água. Não tem coleta de lixo, que acaba no rio. Se um dia acabar a água daqui, eles vão embora, vão viver a vida de empresário deles. E a gente aqui vai ficar como? Vai ficar sem”, alerta. Ela afirma que a associação já procurou o Inema, órgão ambiental da Bahia, para tentar achar uma solução para o problema, mas os moradores denunciam que há conivência por parte do órgão com os grandes produtores proprietários das bombas. “Hoje não há nenhuma gestão dos recursos, não há coleta de lixo, que acaba no rio. O Estado abandonou o rio Salitre”, critica Kezia.
Para alguns moradores das comunidades da região, no entanto, o trabalho como diarista nas lavouras irrigadas pela água bombeada das nascentes do Pacuí é a única opção. Um morador de Pacuí, que se identificou como Valmir, expressou receio de que as bombas fossem retiradas dali durante a visita da caravana. “Eu concordo que tem que preservar para não secar, mas se não tivesse a irrigação aqui, que o pessoal de fora traz, a gente ia sobreviver do quê? A gente está na seca, não está chovendo, e aí vem um rapaz de fora que vai dar ganho pra gente e a gente vai ser contra? Vamos ganhar nossa diária”, disse.
Trabalho precário e exposição a agrotóxicos
A captação irregular nas nascentes do Pacuí está entre as causas da falta de água que atinge outras comunidades da região, como a de Goiabeira. É o que diz Martinho Romualdo da Silva, que mora ali desde que nasceu, há 79 anos. “Aqui é ‘quem pode mais chora menos’. Então quem tem bombas mais potentes puxam mais água. E os que não têm nada ficam sem beber”, aponta. Segundo ele, o rio Salitre, que na época da cheia passava a uma distância de 500 metros da comunidade, hoje já não chega mais. “Os barramentos irregulares contribuem, mas há outras coisas: tudo foi feito muito desordenadamente, não tem gestão no Salitre. A mata ciliar, que ajuda a conservar a água, foi toda desmatada. Tem vários trechos da calha do rio que estão assoreadas. Nossa agricultura familiar deixou de existir a partir do momento que o agronegócio tomou à frente desse processo”, critica Martinho. A alternativa, que seria a perfuração de poços artesianos, esbarra no alto custo para sua implantação. “Nosso solo é muito profundo, atinge 100 metros de profundidade, e fazer um poço custa entre R$ 60 e R$ 100 o metro perfurado. Então o pequeno produtor não pode perfurar o poço, e as autoridades, como a Codevasf, não liberam recursos para isso. E a nossa produção de caprino, de ovino e de galinhas, que a gente tem feito desde que o rio secou, não tem suporte das autoridades”, reclama.
Hoje os moradores reivindicam a construção, pela Codevasf, de um sistema similar ao que leva água para a comunidade de Sabiá 2, a partir da captação do canal do Projeto Salitre, para abastecer comunidades que, assim como Goiabeira, sofrem com a falta de água devido à seca do rio. “Essa é uma dívida do governo do estado e da Codevasf com o salitreiro”, avalia Adenício Gonçalves, morador da comunidade de Passagem do Sargento, a 10 quilômetros de Goiabeira. “O Projeto Salitre tirou terra dos salitreiros e deu para as grandes empresas, como a Agrovale, que é dona de quase toda a área do Salitre. Eles estão aí plantando cana-de-açúcar enquanto o salitreiro está tendo que trabalhar como diarista, muitas vezes em condições desumanas”, denuncia Adenício, que trabalha como agente comunitário de saúde na região. Segundo ele, são comuns os casos de intoxicação por agrotóxicos entre os trabalhadores diaristas. “Tem vários casos de pessoas que ficam com dificuldade pra enxergar, casos de glaucoma. É muito comum. De vez em quando tem mutirões do SUS para cirurgias de catarata, mas que não conseguem atender a demanda”, revela. Em diversos momentos durante o trajeto da caravana foi possível identificar trabalhadores aplicando agrotóxicos nas lavouras sem nenhum tipo de equipamento de proteção contra os venenos. “A falta de informação e de EPIs [Equipamentos de Proteção Individual] para os trabalhadores estão entre os principais problemas. Além disso, a empresa que deveria fazer o recolhimento das embalagens de agrotóxicos, e a Acavasf não está recolhendo”, denuncia.
Mineia Clara dos Santos também é agente comunitária de saúde em povoados ao longo do Salitre, além de atuar como vice-presidente do Comitê da Bacia do Salitre. Segundo ela, esses são problemas comuns em toda a região. “Não só no perímetro irrigado, mas no vale por onde o Rio Salitre passa, a gente tem vários casos de pessoas que foram intoxicadas por venenos. E a gente vê homens sem camisa, de bermuda, descalços, espalhando veneno. E jovens também. Outro dia chegou um menino de 14 anos na unidade de saúde totalmente intoxicado, fedendo a veneno de cima a baixo. A gente teve casos de infarto, de pressão alta, de pessoas com problemas de pele, com alergia, mas a população em si não associa aos agrotóxicos”, revela. Segundo Mineia, no Salitre, onde chega água chega também o modelo do agronegócio, mesmo entre os pequenos proprietários. “Nas próprias roças da agricultura que se diz familiar, mas irrigada, se utiliza agrotóxicos. O que foi colocado pra eles a partir de 1980, na famosa Revolução Verde, foi que só se plantava com veneno. Se você falar para um agricultor hoje da minha comunidade que ele pode produzir sem veneno, ele diz que você está louca”, diz Mineia.
A falta de saneamento básico agrava ainda mais as condições de saúde das populações da região, segundo a agente. “Na maioria das comunidades que eu atuo não tem nem esgotamento sanitário e nem coleta de lixo. É esgoto a céu aberto, então tem muitos casos de hanseníase, dengue, zika”, lista Mineia. Em muitos locais, a solução encontrada pelos moradores é a queima do lixo, prática que traz riscos à saúde da população. “E por mais que a gente reclame a gente vê que essa não tem sido uma prioridade do governo municipal, talvez por não termos uma representação política mais forte”. Nesse quadro, a possibilidade de contaminação dos cursos d’água por agrotóxicos se potencializa, ainda mais porque, segundo Mineia, o recolhimento dos vasilhames de veneno é feito apenas dentro do perímetro irrigado do Projeto Salitre. “A empresa que recolhe os vasilhames não chega às nossas comunidades. Quer dizer, o Vale de Salitre, por onde o rio passa, onde as comunidades vivem, onde tudo acontece dentro da comunidade, eles não passam, não divulgam”, observa.
Agronegócio: ocupando todos os espaços
A hegemonia do modelo da Revolução Verde, que se baseia na monocultura e no intensivo de agrotóxicos e fertilizantes à base de combustíveis fósseis, é apontada como um dos principais desafios no trabalho das organizações que prestam assessoria visando a implementação de técnicas de convivência com o semiárido e da agroecologia na região, como o Irpaa. “É complicado mudar essa lógica em um local que está paralelo ao agronegócio. O dinheiro circula mais rápido ali, comparado à caprinobovinocultura e a outros sistemas produtivos das comunidades tradicionais. Então a família, pelo viés econômico, termina aderindo a um modelo que traz toda uma degradação ambiental e uma série de consequências negativas que fazem com que esse dinheiro não compense no fim das contas”, acentua Josemário Gonçalves.
Ele pontua que no vácuo criado pela falta de políticas públicas voltadas para prestar assessoria técnica para promover a convivência com o semiárido, o agronegócio também acaba ocupando esse espaço, fomentando a adoção de pacotes tecnológicos, mesmo nos sistemas produtivos mais tradicionais dos sertanejos da região. “Hoje nós temos aqui na região o agronegócio entrando de sola na caprinobovinocultura, promovendo raças próprias. Nós temos raças nativas da nossa região que convivem bem com esse bioma, que comem pastando na caatinga. Se você traz uma raça de fora, você traz também todo um pacote tecnológico que é preciso adquirir: ração, vacina, vários medicamentos”, explica o técnico.
Essa é uma disputa que tende a ficar ainda mais desigual em um contexto de desmonte das políticas sociais voltadas para a agricultura familiar. Segundo Josemário, as organizações sociais ligadas à Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) sofrem hoje com o corte de recursos federais depois da extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário. “Nós do Irppa não recebemos mais recursos do governo federal. Ainda temos recursos do governo do estado, mas que tem prazo para acabar daqui a um ano, sem perspectiva de renovação”, lamenta.
Balanço e desdobramentos
Após três dias de viagem pelo sertão baiano, os participantes da caravana fizeram, no dia 30 de junho, um balanço dos relatos, das denúncias e também das experiências exitosas que testemunharam ao longo das duas rotas, que culminou com a elaboração de uma carta política, que ainda deve passar por alterações antes de ser divulgada. Foi também o momento de realizar um balanço em relação aos objetivos estipulados no processo de organização. Um deles era subsidiar a ação do Ministério Público da Bahia em suas ações na defesa da Bacia São Francisco e das comunidades que dele dependem.
Para a promotora de Justiça Luciana Khoury, coordenadora do Núcleo da Bacia do Rio São Francisco, a avaliação é positiva. “Nós tínhamos uma vontade grande de refletir a partir da caravana sobre coisas que o próprio Ministério Público vem atuando, mas ampliando esse olhar a partir dos movimentos sociais, a partir das universidades, a partir da Fiocruz, a partir de todos os parceiros que se incorporaram, refletindo essa realidade e buscando soluções para esse cenário de degradação que a Bacia vem vivenciando hoje”, pontua. Coordenadora do Fórum Baiano de Combate aos Agrotóxicos, ela afirma que o Ministério Público da Bahia tem procurado participar de ações articuladas paraverificar os reais impactos dos venenos. Segundo Luciana, está em fase de elaboração pelo Fórum um dossiê baiano sobre os impactos dos agrotóxicos, ao qual devem ser somadas os relatos e experiências reunidos durante a caravana. “Vimos que, em muitos municípios, não existe monitoramento da qualidade da água em relação aos agrotóxicos. São dados importantes para a gente identificar a falta de controle efetivo. Também vimos trabalhadores aplicando agrotóxicos sem EPI, o que infelizmente é muito comum. Então o Fórum está identificando esses casos e fazendo os devidos encaminhamentos, as denúncias, e a caravana com certeza trouxe mais elementos para esse trabalho”, avalia.
Ela destacou também a importância da articulação promovida pela caravana diante do cenário de desmonte da legislação ambiental capitaneado principalmente pela bancada ruralista no Congresso. “Nós temos atualmente um PL [projeto de lei] em tramitação que propõe isenções de licenciamento ambiental para muitos empreendimentos, que prevê a inexistência do requisito da certidão de conformidade com o uso do solo pelo município, o que é muito grave, e muitas outras questões. Também temos aí a proposta do PL 3.200, que vai flexibilizar ainda mais a legislação de agrotóxicos, que do jeito que está. já há um descontrole enorme no Brasil, o maior consumidor mundial de agrotóxicos”, lista a promotora. “O cenário é de flexibilização de leis e contingenciamento de recursos para fiscalização. É um momento de muito retrocesso. A caravana também é uma fonte de resistência a esse processo de retrocessos, e queremos que o Ministério Público esteja nessa linha de frente, para que a gente não permita mais retrocessos em direitos de forma alguma”, afirma.
Para o professor-pesquisador da EPSJV, André Búrigo, a caravana reforçou os argumentos sobre qual é o desenvolvimento que se deve buscar para as populações do semiárido. “De certa forma existe um mito da falta concreta de água e de que a água tem que vir para trazer o progresso, para trazer o desenvolvimento, para acabar com a fome. Mas o que a gente viu é que aonde essa água chegou através desses grandes projetos de desenvolvimento, chegou através de um projeto que devasta, que envenena o meio ambiente, que mexe nas relações sociais”, alerta. Segundo ele, as propostas de convivência com o semiárido que as organizações de assessoria popular, como o Irpaa, têm construído nas últimas décadas avançam mais onde os grandes projetos não chegam. “Não é através de grandes obras que vai se resolver a questão da falta de água no semiárido. A questão da convivência com o semiárido passa por outros processos muito mais de articulação local junto às associações comunitárias. Isso é um aprendizado que fica forte da caravana”, analisa.
Ao mesmo tempo, destaca Búrigo, a caravana permitiu identificar contradições e dificuldades que existem para a implantação de projetos contra-hegemônicos no campo brasileiro diante das transformações operadas pela Revolução Verde desde a década de 1980. “É impactante perceber o paradoxo que o agronegócio coloca às comunidades aonde ele chega. Porque o Estado brasileiro participou disso com tanta força, boa parte da população não consegue ver alternativa fora dele. Há uma baixíssima consciência da gravidade da situação em muitas comunidades, e o poder público não se interessa. A população fica refém desse grande modelo de desenvolvimento”, avalia Búrigo.
Do ponto de vista das organizações do campo da saúde que participaram da caravana, como a Abrasco e a Fiocruz, o professor-pesquisador da EPSJV acredita que o evento serve para fortalecer os laços entre a saúde coletiva e a agroecologia. “Se as tecnologias sociais implantadas pela Articulação do Semiárido, como o projeto Um Milhão de Cisternas, tiveram um impacto muito importante sobre os índices de mortalidade infantil e sobre a permanência do sertanejo nas comunidades nas zonas rurais, a Estratégia Saúde da Família certamente também teve grande impacto. Então, é interessante que a gente olhe pra isso e perceba que são políticas que se somam, que produzem um efeito sinérgico muito forte e que, às vezes, são analisadas de forma muito isolada”, avalia Búrigo, que defende que a participação da Fiocruz e da Abrasco em projetos que articulam agroecologia e saúde precisam ser fortalecidos. “Temos que nos integrar mais que para que nos territórios a gente possa ter profissionais do SUS atuando junto com profissionais que estão atuando no campo da agroecologia. A caravana é um exercício disso e ela reforça essa necessidade”, conclui. Já o vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (Vpaaps) da Fiocruz, Marco Menezes, que participou do encerramento da caravana, afirmou que o fortalecimento e a ampliação da articulação com os movimentos sociais e o estímulo às ações que integrem a agroecologia com ações de saúde e ambiente serão um foco da instituição. “As experiências das Caravanas Territoriais são importantes espaços para a promoção do encontro das instituições públicas de Estado, universidades, movimentos sociais e organizações não governamentais. A riqueza do aprendizado e os resultados da caravana serão muito importantes para agenda que teremos este ano no campo da saúde e ambiente, como na construção do dossiê das águas proposto pela Abrasco, na nossa participação na 1ª Conferência Nacional de Vigilância em Saúde em novembro e também no Fórum Alternativo Mundial das Aguas, em março de 2018”, destacou Menezes.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/07/2017
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