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quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

‘Perseguição a indígenas do Acre demonstra que pacto social nunca existiu no Brasil’. Entrevista com Lindomar Padilha


entrevista

IHU
Se o re­cru­des­ci­mento do trato aos mo­vi­mentos so­ciais per­passa o Brasil, não ne­ces­sa­ri­a­mente se re­sume aos úl­timos doze meses. Que o digam os povos in­dí­genas de vá­rias partes do ter­ri­tório, ex­cluídos dos prin­ci­pais de­bates sobre o de­sen­vol­vi­mento do país e até das prá­ticas ditas sus­ten­tá­veis. Nesta en­tre­vista, Lin­domar Pa­dilha, co­la­bo­rador do Con­selho In­di­ge­nista Mis­si­o­nário, alvo re­cente das im­pre­ca­ções da ban­cada ru­ra­lista, co­menta as de­nún­cias de per­se­guição de et­nias in­dí­genas do es­tado do Acre, há 15 anos go­ver­nado pelo Par­tido dos Tra­ba­lha­dores (PT).
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 14-10-2017.
“A se­bra­e­li­zação das re­la­ções, a mer­can­ti­li­zação dos ar­te­sa­natos e mesmo da cul­tura, assim como a fi­nan­cei­ri­zação da na­tu­reza por meio da eco­nomia verde tem um vício de origem. Ou seja, não pro­curam equa­ci­onar e re­solver os gra­vís­simos pro­blemas dos povos in­dí­genas, mas pro­curam apenas re­solver os pro­blemas de falta de po­lí­ticas pú­blicas da parte do go­verno e em vá­rios casos, re­solver o pro­blema de caixa de go­vernos e ONGs. Esses pro­jetos tendem ao fra­casso es­pe­ci­al­mente porque não es­cutam os povos in­dí­genas nem du­rante a ela­bo­ração e muito menos na exe­cução. São sempre vindos de fora, nunca nascem da von­tade desses povos e essa von­tade tam­pouco é con­si­de­rada”, ex­plica ele, ao fazer um re­tros­pecto das po­lí­ticas pú­blicas lo­cais.
Na con­versa, Lin­domar de­talha al­gumas nu­ances a res­peito das re­la­ções entre a classe po­lí­tica e os povos in­dí­genas, quase sempre pau­tadas por uma ver­ti­ca­li­zação da con­cepção de suas ne­ces­si­dades, ou até de seu modo de vida. Dessa forma, ana­lisa que, apesar da ofen­siva de um Con­gresso fran­ca­mente con­ser­vador em casos como o pro­jeto do Marco Tem­poral que visa rever a ocu­pação de terras in­dí­genas, chega a ser ab­surdo afirmar que os re­tro­cessos aos povos ori­gi­ná­rios do Brasil tenha aca­bado de co­meçar.
“O pro­blema dos povos in­dí­genas se deve menos aos po­lí­ticos tra­di­ci­o­nais e muito mais ao pró­prio Es­tado Na­ci­onal. Os povos in­dí­genas, apenas pela sua sim­ples exis­tência, re­pre­sentam uma ameaça ao Es­tado. Eles, os povos, mos­tram com sua exis­tência que, sim, é pos­sível e há um mundo me­lhor fora do ca­pi­ta­lismo e fora do cen­tra­lismo do Es­tado, ainda que este queira se tra­vestir de de­mo­crá­tico. O pacto so­cial nunca existiu no Brasil porque os povos nunca foram cha­mados para par­ti­ci­parem na ela­bo­ração e na firma deste pacto. Os povos in­dí­genas se­guirão nos pró­ximos anos fora deste pacto ou de qual­quer outro já que não re­pre­sentam nada ao sis­tema”, re­sumiu.

Eis a entrevista.

Quais se­riam os fatos re­pu­di­ados pelos ín­dios de quatro di­fe­rentes et­nias, Sha­ne­nawa, Hu­nikui, Asha­ninka e Ma­diha, e a res­pec­tiva per­se­guição que de­nun­ciam?
No dia 31 de julho deste ano de 2017, a Co­missão Pró-Índio do Acre (CPI/AC) pu­blicou em sua pá­gina na in­ternet um do­cu­mento cha­mado “Carta aberta em res­posta às de­cla­ra­ções sobre o Sisa, REDD + e Povos In­dí­genas no Acre”. O do­cu­mento, ao que consta, foi pro­du­zido na CPI/AC du­rante a as­sem­bleia geral da As­so­ci­ação do Mo­vi­mento dos Agentes Agro­flo­res­tais In­dí­genas do Acre – AMA­AIAC, entre os dias 28 e 31 de julho.
Ocorre que a cha­mada “Carta Aberta” que se pro­punha ma­ni­festar apoio ao go­verno do Acre e ONGs que se be­ne­fi­ciam de pro­jetos li­gados ao mer­cado de car­bono, se trans­formou em um opús­culo de agres­sões gra­tuitas e in­fun­dadas ao Cimi. De outro lado, o re­fe­rido do­cu­mento traz as­si­na­turas de in­dí­genas e não in­dí­genas, já que uma das as­si­na­turas atri­buída a uma mu­lher que seria Ja­mi­nawa foi des­men­tida pelos pró­prios Ja­mi­nawa, pois neste povo não há ne­nhuma pessoa com aquele nome, e há ainda as­si­na­turas de as­so­ci­a­ções cujos ti­tu­lares des­co­nhe­ciam o teor do do­cu­mento.
Por­tanto, os in­dí­genas de­nun­ciam o uso in­de­vido de seus nomes, a não in­for­mação das co­mu­ni­dades e re­pu­diam as agres­sões ao Cimi, já que não é a pri­meira vez que o Cimi no Acre é alvo de ig­no­mí­nias que re­velam uma ati­tude aberta de per­se­guição, que se deve ao fato de prestar es­cla­re­ci­mentos aos povos in­dí­genas sobre os riscos que correm ao per­mi­tirem a venda do que seria usu­fruto ex­clu­sivo – além de se tratar de bens co­muns a todos nós, de modo que nem mesmo os povos in­dí­genas são li­vres para “ne­go­ciar” o que per­tence a todos, como o ar que res­pi­ramos. Re­cen­te­mente, mais de 80 en­ti­dades pu­bli­caram uma “Moção de Re­púdio e So­li­da­ri­e­dade Frente a Ame­aças às Li­de­ranças no Acre” cujo texto diz:
“De­nun­ci­amos e re­pu­di­amos es­pe­ci­fi­ca­mente as ten­ta­tivas do go­verno do Acre e de or­ga­ni­za­ções não go­ver­na­men­tais li­gadas a ele de di­famar tais crí­ticos, ao alegar que os ques­ti­o­na­mentos por eles ar­ti­cu­lados in­vi­a­bi­li­za­riam a che­gada de re­cursos que po­de­riam be­ne­fi­ciar povos das flo­restas no Acre. Sa­bemos que o go­verno possui su­fi­ci­entes re­cursos para res­guardar os di­reitos e atender os le­gí­timos in­te­resses dos povos in­dí­genas e co­mu­ni­dades lo­cais. Não há ne­ces­si­dade de co­locar o fu­turo destes povos e co­mu­ni­dades em risco através de pro­jetos ques­ti­o­ná­veis e ne­bu­losos. O go­verno de­veria agir com trans­pa­rência acerca da apli­cação dos re­cursos que já re­cebeu através de tais pro­jetos e com isso re­ve­laria quem são seus ver­da­deiros be­ne­fi­ciá­rios”.
Qual o con­texto po­lí­tico e so­cial acreano em re­lação a seus povos in­dí­genas nos úl­timos tempos? E quanto a en­ti­dades como o Cimi, como tem sido a re­lação com os dis­tintos po­deres?
No Acre, desde o início dos anos 2000, as­sumiu o go­verno a fa­mília Viana, li­de­rada pelos ir­mãos Jorge Viana, atu­al­mente se­nador pelo PT, e Se­bas­tião Viana, o Tião, atu­al­mente go­ver­nador do es­tado também pelo PT. Ini­ci­al­mente, formou-se uma com­po­sição mais ampla com seg­mentos, di­gamos, mais con­ser­va­dores, como por exemplo o pró­prio PSDB e um grupo po­lí­tico mais afi­nado com a ex-se­na­dora Ma­rina Silva. São lan­çadas, assim, as bases do que fi­caria co­nhe­cido como “flo­res­tania” ou “Go­verno da Floresta“.
A ideia do go­verno era, e é, adotar um dis­curso am­bi­en­tal­mente cor­reto e que jus­ti­fi­casse a pura e sim­ples ex­plo­ração dos bens co­muns. Para tanto, era im­pres­cin­dível co­locar os povos in­dí­genas em con­so­nância com o ca­pi­ta­lismo. Para tanto, a Co­missão Pró-Índio do Acre (CPI/AC) cria uma cro­no­logia que os co­loca dentro da ló­gica ca­pi­ta­lista:
Como se pode ver na obra de Igle­sias e Aquino: “Faz-se re­le­vante des­tacar que, os Ka­xi­nawa, jun­ta­mente com a ONG Co­missão Pró-Índio do Acre e ou­tros povos in­dí­genas do es­tado, cri­aram uma cro­no­logia de suas his­tó­rias e uti­lizam os se­guintes termos: ‘tempo da ma­loca’, para de­signar o pe­ríodo da his­tória em que vi­viam juntos, antes do con­tato com os brancos; ‘tempo das cor­re­rias’, para de­signar o mo­mento em que há in­va­sões das terras in­dí­genas no Acre, e quando ten­tavam fugir; ‘tempo do ca­ti­veiro’, para a época em que foram hu­mi­lhados, es­cra­vi­zados e ser­viram como mão de obra para os se­rin­gais; e, fi­nal­mente, o ‘tempo dos di­reitos’ para de­signar o mo­mento em que foi ini­ciada a luta pelas de­mar­ca­ções de terra, a cri­ação da Cons­ti­tuinte de 1988 e o sur­gi­mento do mo­vi­mento po­lí­tico in­dí­gena, bem como suas or­ga­ni­za­ções”.
No texto é claro que se criou uma cro­no­logia his­tó­rica para re­a­lizar a pri­meira ade­quação dos povos e co­mu­ni­dades in­dí­genas à ló­gica do ca­pital. Ve­jamos como essa es­tru­tura teó­rica jus­ti­fica a trans­for­mação dos povos in­dí­genas em su­postos co­mer­ci­antes de Ser­viços Am­bi­en­tais (o que na na­tu­reza sempre teve função, agora é cha­mado de ser­viço, que vem de servo. Ou seja, a na­tu­reza se trans­forma ime­di­a­ta­mente em serva do ca­pi­ta­lismo, bem como os pró­prios povos) e em­pre­en­de­dores:
a) os povos in­dí­genas, via de regra, não pos­suem um pen­sa­mento his­tó­rico li­near. Esta é uma forma de pensar do Oci­dente Eu­ropeu, co­lo­ni­a­lista e ex­pan­si­o­nista. Falar em tempos his­tó­rico dos povos in­dí­genas nesta ló­gica é impor-lhes a ló­gica tem­poral co­lo­ni­za­dora. É vi­olar a ló­gica in­dí­gena e negar-lhe ci­en­ti­fi­ci­dade; é ainda impor, pela his­tória, um mo­delo de­sen­vol­vi­men­tista, evo­lu­ci­o­nista li­near, como se a ver­da­deira his­tória in­dí­gena não sig­ni­fi­casse nada e como se só fosse pos­sível sig­ni­ficá-la a partir de uma “cri­ação cro­no­ló­gica de sua his­tória”, sempre dos de fora, do co­lo­ni­zador;
b) ad­mi­tindo esses tempos his­tó­ricos, ad­mi­ti­remos ne­ces­sa­ri­a­mente que no Acre se chegou a um tempo, iden­ti­fi­cado como “tempo dos Di­reitos”. Este ponto é es­pe­ci­al­mente crí­tico porque en­fra­quece a ne­ces­si­dade de se­guir lu­tando por di­reitos e, o pior, co­loca os povos in­dí­genas como meros re­cep­tores desses di­reitos. Os di­reitos passam a ser uma dá­diva, um pre­sente, uma con­cessão por parte dos man­da­tá­rios. Este mo­delo fora apli­cado vá­rias vezes em nossa his­tória. Por exemplo, a Prin­cesa Isabel “li­bertou” os es­cravos como que em um gi­gan­tesco ato hu­ma­ni­tário, como se os es­cra­vi­zados nada ti­vessem feito por sua pró­pria li­ber­tação.
No caso dos in­dí­genas no Acre a ideia é a mesma: de­pois que os di­reitos lhes foram dados por pura ge­ne­ro­si­dade das au­to­ri­dades do Go­verno da Flo­resta, a eles, os povos in­dí­genas, restam apenas a eterna gra­tidão e sub­ser­vi­ência. Des­ta­camos que jus­ta­mente a partir do ano de 2002/2003, em pleno Go­verno da Flo­resta, todos os pro­cessos de de­mar­cação de Terras In­dí­genas no Es­tado do Acre foram pa­ra­li­sados. Com o dis­curso de que todos os di­reitos já estão ga­ran­tidos não se jus­ti­fi­caria lutar por novas de­mar­ca­ções de terras;
c) a não ne­ces­si­dade de de­mar­cação de novas terras, ou das terras que não foram de­mar­cadas, quer jus­ti­ficar a tese de que o pro­blema dos povos in­dí­genas no Acre não é a falta de terra, mas sim a falta de gestão. Os in­dí­genas, por­tanto, pre­cisam aprender a ser ges­tores de suas terras e dos re­cursos que também “re­cebem” do go­verno. En­tre­tanto, a re­pre­sen­tação tra­di­ci­onal dos povos in­dí­genas não dá conta desta nova de­manda, já que os ca­ci­ques quase sempre são vistos como in­ca­pazes, in­com­pe­tentes, não le­trados e essas di­versas formas pre­con­cei­tu­osas de en­tender a or­ga­ni­zação so­ci­o­po­lí­tica dos povos. Por isso se jus­ti­fica a cri­ação de se­tores es­pe­ci­a­li­zados em fo­mento e gestão que no caso fi­caram a cargo da CPI/AC por meio de con­vê­nios. Isso passou a acon­tecer em duas frentes: na Edu­cação Es­colar In­dí­gena, o que cul­minou com a cri­ação, dentro da CPI/AC, da OPIAC (Or­ga­ni­zação dos Pro­fes­sores In­dí­genas do Acre) e no campo ter­ri­to­rial na CPI/AC da AMA­AIACAs­so­ci­ação do Mo­vi­mento dos Agentes Agro­flo­res­tais In­dí­genas do Acre;
A partir de então, ex­tingue-se o mo­vi­mento das li­de­ranças in­dí­genas, for­madas ba­si­ca­mente por ca­ci­ques e ex­pe­ri­entes lí­deres, e o poder de re­pre­sen­tação e con­sulta fica res­trito aos di­re­tores da OPIAC e da AMA­AIAC sem ne­nhum vín­culo com as co­mu­ni­dades. De outro lado, essa nova forma de se or­ga­nizar se ajusta me­lhor às ne­ces­si­dades do go­verno e das ONGs res­pon­sá­veis por este “diá­logo”, já que não pre­cisam mais se di­rigir até as al­deias, pois as co­or­de­na­ções dessas ONGs (in­di­ge­nistas e in­dí­genas) são se­di­adas na ca­pital, Rio Branco;
d) essas ONGs, en­tre­tanto, em­bora ad­mi­nis­trem re­cursos oriundos de di­versos con­tratos e con­vê­nios, pelo fato de não terem ca­pi­la­ri­dade, não chegam até as al­deias e a gestão fica li­mi­tada às mesmas ONGs, sem uma prá­tica in­terna, local, nas co­mu­ni­dades. A al­ter­na­tiva apre­sen­tada é uma: trans­formar as co­mu­ni­dades ou se­tores dessas co­mu­ni­dades abrindo-as ao mer­cado. Mas como? Sim­ples, a se­nhora que produz ar­te­sa­natos é al­çada à con­dição de em­pre­en­de­dora. Os ar­te­sa­natos, muitos com pro­funda e ín­tima re­lação com o sa­grado, passam a ser apenas ob­jeto de co­mércio, mer­ca­doria. Há uma es­pécie de se­bra­e­li­zação da pro­dução ar­te­sanal e cul­tural, in­cluindo as­pectos ge­nui­na­mente re­li­gi­osos, com o uso de subs­tância como o chá da Ayahu­asca. Al­guns povos e co­mu­ni­dades, es­pe­ci­al­mente es­co­lhidos, são apre­sen­tados como pro­pa­ganda através de mí­dias e ou­tras ações não menos mi­diá­ticas como os fes­ti­vais;
e) a se­bra­e­li­zação das re­la­ções, a mer­can­ti­li­zação dos ar­te­sa­natos e mesmo da cul­tura, assim como a fi­nan­cei­ri­zação da na­tu­reza por meio da eco­nomia verde tem um vício de origem. Ou seja, não pro­curam equa­ci­onar e re­solver os gra­vís­simos pro­blemas dos povos in­dí­genas, mas apenas os pro­blemas de falta de po­lí­ticas pú­blicas da parte do go­verno e, em vá­rios casos, o pro­blema de caixa de go­vernos e ONGs. Esses pro­jetos tendem ao fra­casso es­pe­ci­al­mente porque não es­cutam os povos in­dí­genas nem du­rante a ela­bo­ração e muito menos na exe­cução. São sempre vindos de fora, nunca nascem da von­tade desses povos e essa von­tade tam­pouco é con­si­de­rada.
Evi­den­te­mente, en­ti­dades como o Cimi, crí­ticas às novas formas do velho ca­pi­ta­lismo, neste con­texto, são alvo de per­se­gui­ções, ca­lú­nias, di­fa­ma­ções e toda sorte de cri­mi­na­li­zação de suas lutas. Des­taco que o mo­vi­mento in­dí­gena no Acre foi pro­po­si­tal­mente des­truído para que ONGs, como a pró­pria CPI/AC, pu­dessem falar em nome dos povos.
Como você já expos, o Acre é um es­tado há muito tempo go­ver­nado pelo PT, tido ainda como uma ex­pressão pro­gres­sista da so­ci­e­dade bra­si­leira. Como você des­creve seus go­vernos para aqueles que pouco co­nhecem a res­peito do es­tado?
Eu não usaria o termo pro­gres­sista. Trata-se, antes, de um mo­delo de ca­pi­ta­lismo mais ade­quado aos gostos da grande mídia. A es­po­li­ação dos ter­ri­tó­rios e o roubo e sa­ques aos bens na­tu­rais, de todos nós, sempre foram a base de sus­ten­tação dos go­vernos do PT no Acre. Os apa­rentes avanços são em de­cor­rência única deste dis­curso mais so­fis­ti­cado, às vezes cha­mado de “de­sen­vol­vi­mento sus­ten­tável”, mas que não tem nada de sus­ten­tável. É um ca­pi­ta­lismo verde que nasce dentro de grandes em­presas e ONGs in­ter­na­ci­o­nais como pos­si­bi­li­dade de uma nova forma de acu­mu­lação para um ca­pi­ta­lismo em crise.
Res­pon­dendo a uma per­gunta, ao jornal O Globo, sobre a saída do PT da ex-mi­nistra Ma­rina Silva, o sau­doso Plínio de Ar­ruda Sam­paio disse: “cons­tatei o se­guinte: es­tranha fi­gura que deixa um go­verno por dis­cordar das po­lí­ticas desse go­verno e vai para um par­tido que apoia esse go­verno. Não tem ló­gica. Mas não con­si­dero que chamá-la de eco­ca­pi­ta­lista seja um ataque. É ataque na me­dida em que ela pro­curar es­conder isso. Se me chamam de ecos­so­ci­a­lista, eu fico muito alegre”.
Citei este trecho da en­tre­vista de Plínio para ex­ternar que a ideia de o go­verno do Acre ser pu­ra­mente ca­pi­ta­lista não é nova. Es­ver­dear o ca­pi­ta­lismo não re­solve suas gi­gan­tescas con­tra­di­ções. Os go­vernos do PT no Acre apenas estão es­ver­de­ando as cinzas do velho ca­pi­ta­lismo que nada tem de pro­gres­sista. Para tanto usam e abusam dos povos in­dí­genas e das ima­gens de lí­deres como Chico Mendes.
Houve um au­mento das di­fi­cul­dades após a posse de Mi­chel Temer na pre­si­dência ou a si­tu­ação vem de antes? Que ba­lanço se pode fazer desde os go­vernos Lula?
Mi­chel Temer foi co­lo­cado lá na pre­si­dência por al­guém que não fui eu, nem o povo. Deste ponto de vista po­deria sig­ni­ficar uma rup­tura de­mo­crá­tica, como muitos creem. En­tre­tanto, de­vemos nos per­guntar: se não fomos nós que o co­lo­camos lá, quem foi? A res­posta é lím­pida e cer­teira: o PT, es­pe­ci­al­mente o Lula. Deste ponto de vista, não houve rup­tura al­guma e, sendo assim, a si­tu­ação vem de antes. Se con­si­de­rarmos que o go­verno atual é, pois, uma sequência dos go­vernos an­te­ri­ores, se­remos obri­gados a ad­mitir que o ba­lanço dos go­vernos Lula não foi po­si­tivo.
Eu avalio ne­ga­ti­va­mente o go­verno do PT por dois mo­tivos bá­sicos: a) falta de trans­pa­rência; b) de­sen­vol­vi­men­tismo à custa da na­tu­reza e as­saltos aos ter­ri­tó­rios.
Lula ne­go­ciou sempre sem con­si­derar se­quer os pró­prios mi­li­tantes do par­tido e fez todo tipo de acordo para be­ne­fi­ciar em­presas que tra­ziam a fa­chada de de­sen­vol­vi­mento. Os go­vernos do PT foram os que menos de­mar­caram terras in­dí­genas e qui­lom­bolas.
Na­tu­ral­mente que, dada a po­la­ri­zação que querem nos impor de­pois da posse de Mi­chel Temer, a si­tu­ação pi­orou porque agora somos tra­tados como ini­migos e de­fen­sores de ban­didos quando nunca de­fen­demos a di­reita que, aliás, está lá por uma res­pon­sa­bi­li­dade que não é nossa.
Como avalia o Marco Tem­poral, que o Con­gresso tenta aprovar? Quais sig­ni­fi­cados teria?
A tese do Marco Tem­poral é uma ex­cres­cência. A Cons­ti­tuição Bra­si­leira é clara quando diz que “são terras tra­di­ci­o­nal­mente ocu­padas pelos ín­dios as por eles ha­bi­tadas em ca­ráter per­ma­nente, as uti­li­zadas para suas ati­vi­dades pro­du­tivas, as im­pres­cin­dí­veis à pre­ser­vação dos re­cursos am­bi­en­tais ne­ces­sá­rios a seu bem-estar e as ne­ces­sá­rias a sua re­pro­dução fí­sica e cul­tural, se­gundo seus usos, cos­tumes e tra­di­ções”. E também que “as terras de que trata este ar­tigo são ina­li­e­ná­veis e in­dis­po­ní­veis, e os di­reitos sobre elas, im­pres­cri­tí­veis”.
A im­pres­cri­ti­bi­li­dade do di­reito a terra pelos povos in­dí­genas, di­reito ori­gi­nário, é fron­tal­mente ata­cada pela tese do Marco Tem­poral. A ideia, claro, é sempre de li­berar mais terras e des­tiná-las ao ca­pital, ao mer­cado. Os sig­ni­fi­cados desta ex­cres­cência são muitos. To­memos por exemplo os ter­ri­tó­rios dos Gua­rani e Kaiowá. Estes ter­ri­tó­rios foram in­va­didos e os in­dí­genas, seus le­gí­timos donos, ex­pulsos. Isso antes da pro­mul­gação da Cons­ti­tuição. Claro que não es­tavam na posse da terra por oca­sião da pro­mul­gação da Cons­ti­tuição. Este é o caso de muitos ou­tros povos. Se pre­va­lecer esta tese ab­surda, es­ta­remos pro­va­vel­mente di­ante de ver­da­deiros ge­no­cí­dios.
Outra ten­ta­tiva de avanço sobre terras in­dí­genas se deu no de­creto que vi­sava abrir a Re­serva Na­ci­onal de Cobre e As­so­ci­ados (Renca) para ex­tração mi­neral. Apesar do recuo go­ver­na­mental, o que o pro­jeto pre­nuncia, em sua visão?
A pro­posta de ex­tinção da Renca se en­caixa per­fei­ta­mente na mesma ló­gica do Marco Tem­poral. Qual seja, abrir as terras e ter­ri­tó­rios à ex­plo­ração e co­locá-las no mer­cado. Na prá­tica não houve recuo. O que o go­verno fez foi ade­quar o dis­curso frente às ma­ni­fes­ta­ções em con­trário, mas a pro­posta segue firme.
De­fi­ni­ti­va­mente, os ru­ra­listas e as mi­ne­ra­doras estão dando as cartas do jogo. A si­tu­ação só não está pior porque o go­verno está en­vol­vido em graves de­nún­cias e tenta se li­vrar. Isso o mantém ocu­pado e lhe falta tempo para se de­dicar de forma mais in­tensa às mal­dades contra os povos. Pre­ciso, no en­tanto, lem­brar que os ru­ra­listas, assim como o pró­prio Temer, não che­garam lá à toa. A Kátia Abreu foi al­çada como Mi­nistra da Agri­cul­tura no go­verno do PT, para dar um exemplo.
Não pa­rece exa­gero afirmar que o pacto so­cial deixou de vi­gorar no Brasil e a classe po­lí­tica re­pre­senta in­te­resses mi­no­ri­tá­rios, quase ex­clu­si­va­mente atre­lados ao grande ca­pital. Como isso deve se re­fletir para os povos ori­gi­ná­rios e também tra­di­ci­o­nais nos pró­ximos anos?
O pro­blema dos povos in­dí­genas se deve menos aos po­lí­ticos tra­di­ci­o­nais e muito mais ao pró­prio Es­tado Na­ci­onal. Os povos in­dí­genas, apenas pela sua sim­ples exis­tência, re­pre­sentam uma ameaça ao Es­tado. Eles, os povos, mos­tram com sua exis­tência que, sim, é pos­sível e há um mundo me­lhor fora do ca­pi­ta­lismo e fora do cen­tra­lismo do Es­tado, ainda que este queira se tra­vestir de de­mo­crá­tico.
O pacto so­cial nunca existiu no Brasil porque os povos nunca foram cha­mados para par­ti­ci­parem na ela­bo­ração e na firma deste pacto. Os povos in­dí­genas se­guirão nos pró­ximos anos fora deste pacto ou de qual­quer outro já que não re­pre­sentam nada ao sis­tema. É exa­ta­mente na au­sência destes povos no pacto que re­side a grande força re­vo­lu­ci­o­nária. Pactos são para aco­modar, não para re­vo­lu­ci­onar.
(EcoDebate, 06/12/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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