“Os agricultores, há 10 mil anos, desde a revolução agrícola, vêm melhorando sementes de forma coletiva, histórica, selecionando e reutilizando sementes para a safra seguinte. Mas a Monsanto, a Bayer e a Syngenta se apropriam desse material genético com algumas modificações feitas em laboratório e, a partir daí, os países optam por remunerar as inovações vindas dos laboratórios em detrimento das inovações feitas há 10 mil anos pelos agricultores”. A reflexão é da advogada Larissa Ambrosano Packer, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Sobre a questão dos transgênicos, ela coloca que os direitos dos agricultores vêm sendo ofendidos e que “falta quase tudo para a implementação da Constituição Federal e para a implementação dos direitos dos agricultores”.
Larissa Ambrosano Packer, advogada da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos, é mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Paraná.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que falta para que os direitos dos agricultores ao livre uso da biodiversidade se tornem realidade concreta no Brasil?
Larissa Ambrosano Packer – O direito dos agricultores ainda não foi regulamentado pelo Brasil. Na década de 1990, o país optou por regulamentar os mecanismos de proteção intelectual ou a privatização da biodiversidade. Temos aqui a primeira lei de biossegurança que autoriza a comercialização de transgênicos. Depois tem a lei de propriedade industrial, que autoriza a patente de transgênicos. Primeiramente, autoriza-se a circulação da semente transgênica como mercadoria e, depois, autoriza-se a privatização da propriedade intelectual desta semente. Qualquer um que queira plantar a semente transgênica tem que pagar uma quantia para aquele que melhorou essa semente. Depois disso veio a Lei de Proteção de Cultivares , que autoriza uma taxa tecnológica para a proteção das sementes. Isso tudo é decorrente da implementação dos mecanismos da Organização Mundial do Comércio – OMC, que passa a enxergar nos seres vivos também possibilidades de privatização. Os agricultores há 10 mil anos, desde a revolução agrícola, vêm melhorando sementes de forma coletiva, histórica, selecionando e reutilizando sementes para a safra seguinte. Mas a Monsanto, a Bayer e a Syngenta se apropriam desse material genético com algumas modificações feitas em laboratório e, a partir daí, os países optam por remunerar as inovações vindas dos laboratórios em detrimento das inovações feitas há 10 mil anos pelos agricultores. O que se tem de direito dos agricultores hoje em âmbito internacional? Dois tratados: a convenção da diversidade biológica, que reconhece as comunidades tradicionais como portadoras de conhecimentos ligados ao uso da biodiversidade; e o tratado internacional sobre os recursos fitogenéticos para a alimentação e agricultura. Esse tratado, embora o Brasil tenha ratificado a convenção, ainda não está regulamentado no país. Qual é a grande consequência disso: a aprovação dos transgênicos no Brasil e o controle da cadeia agroalimentar por cerca de seis empresas. O preço dos alimentos no Brasil passa a ficar à mercê da “comoditização” desse controle. E os direitos dos agricultores vêm sendo ofendidos ao longo desse período. Falta quase tudo para a implementação da Constituição Federal e para a implementação dos direitos dos agricultores.
IHU On-Line – Quais os principais danos causados pelos organismos transgênicos em diferentes esferas, do agricultor ao consumidor? Quais seriam as vias jurídicas para que esses danos sejam revertidos?
Larissa Ambrosano Packer – A avaliação de risco da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio não está dentro da legalidade. Há uma norma, a RN5, que regulamenta o Protocolo de Cartagena no Brasil e que propõe vários critérios para se fazer a avaliação de risco sobre os alimentos transgênicos. É preciso acompanhar por três gerações os efeitos daquele alimento ou daquele grão, e fazer testes no animal prenhe para ver se tem algum efeito sobre o feto. Enfim, são alguns testes que devem ser feitos em animais para saber se haverá implicações daquela modificação genética para a saúde dos seres humanos e dos animais. Da mesma forma, é preciso fazer estudos de impacto ambiental para ver se aquele gene causará alguma modificação genética nos polinizadores, nos insetos que têm contato com a planta que foi geneticamente modificada. E isso a CTNBio não está conseguindo realizar. Para que se consiga efetivamente viabilizar o princípio da precaução no Brasil de acordo com os impactos ao meio ambiente e à saúde, precisamos que a comissão da CTNBio cumpra com o exigido em lei. Ou o governo brasileiro toma uma decisão política de realmente fazer com que as normas sejam cumpridas ou o Brasil, infelizmente, irá optar por interesses econômicos das transnacionais em lugar dos interesses coletivos da população.
IHU On-Line – Quais os desafios que os agricultores, povos e comunidades tradicionais enfrentam para usufruírem da biodiversidade?
Larissa Ambrosano Packer – São diversos. Como já falamos, essa questão da privatização é difícil. Porque um agricultor que está há mais de 30 anos conservando uma variedade crioula, vê a sua variedade privatizada por alguma empresa e não pode mais usar o fruto do seu próprio trabalho, que é a semente. Para usá-la precisa pagar royalties. Há várias outras implicações, como o pagamento pelos serviços ambientais, que é um dos mecanismos para introduzir a chamada “economia verde”, que faz com que os agricultores não possam mais utilizar as suas áreas, porque são realizados contratos de prestação de serviços ambientais. Vários componentes da biodiversidade acabam virando mercadorias e podem ser transacionadas entre as comunidades prestadoras de serviços e as empresas. O que se costuma chamar de “economia verde” nós chamamos de capitalismo verde. São várias situações em que se está delegando para o mercado a possibilidade de conservar o meio ambiente.
IHU On-Line – Como o Brasil pode começar a identificar os alimentos que contêm transgênicos?
Larissa Ambrosano Packer – Vou dar um exemplo: se um agricultor orgânico mora ao lado de um agricultor que planta semente transgênica, haverá contaminação pelo ar e pelo vento, principalmente no caso da polinização cruzada. O primeiro agricultor, ao vender sua produção, colocará um selo de “orgânico” ou venderá para o mercado convencional e o consumidor, lá na ponta, estará consumindo um produto achando que é convencional, mas que está contaminado com transgênico. Então, é difícil rotular, porque a contaminação se deu lá no campo. Muitos dos consumidores do Brasil e do mundo estão consumindo alimentos sem rotulagem de transgênico, achando que é convencional. No Brasil temos apenas o óleo de soja e o amido de milho que são rotulados como transgênicos. Então, temos uma ofensa aos direitos dos consumidores porque não se consegue rotular, e uma ofensa aos direitos dos agricultores que, não conseguem optar pelo sistema produtivo: se é agroecológico, ou orgânico ou é convencional, por conta dessa contaminação generalizada.
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FONTE : (Ecodebate, 26/10/2011) Entrevista realizada por Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães e publicada pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação. [IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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