O presidente Michel Temer regulamentou na semana passada o Acordo de Paris, que estabelece metas de redução das emissões de gases causadores do efeito estufa. O gesto, que foi interpretado como uma tentativa de buscar apoio em meio à crise política que ameaça seu governo, veio poucos dias após o anúncio, pelo presidente Donald Trump, da retirada dos Estados Unidos do Acordo, firmado em 2015 durante a Cúpula do Clima de Paris, a COP 21.
O doutor em Ciências Atmosféricas e professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) Alexandre Costa, fala, nesta entrevista, sobre o significado geopolítico da saída dos Estados Unidos, segundo maior emissor mundial de gases de efeito estufa, do Acordo de Paris, e também sobre o que significa sua regulamentação pelo governo brasileiro. Segundo ele, ao que tudo indica o gesto deve ser apenas simbólico, uma vez que uma das principais bases de sustentação do governo Temer é a bancada ruralista, que vem se mobilizando para garantir a aprovação, no Congresso Nacional, de inúmeros projetos que flexibilizam a legislação ambiental brasileira.
De acordo com Alexandre, o avanço da agenda da bancada que representa os interesses do agronegócio no Congresso significa retrocessos para o combate ao desmatamento, a principal causa de emissão de gases de efeito estufa no Brasil. O professor da UECE fala também sobre as limitações do Acordo de Paris, que ele considera insuficiente, e sobre a resistência da indústria dos combustíveis fósseis ao avanço das medidas de combate ao aquecimento global.
André Antunes – EPSJV/Fiocruz
O que significa a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris?
Foi um tiro no pé. O [Donald] Trump conseguiu ficar completamente isolado. Dos países membros da Organização das Nações Unidas [ONU], três estão fora do Acordo de Paris. Um é a Síria, um país devastado pela guerra que não tem hoje condição de se colocar como signatária de nada. O outro é a Nicarágua, que considera o acordo fraco – avaliação com a qual eu concordo. E, agora, os Estados Unidos se tornaram o terceiro. Nesse sentido, a posição do Trump é completamente isolada. Do ponto de vista diplomático e do ponto de vista da geopolítica, é desastroso. No encontro do G-7, os demais membros, França, Canadá, Alemanha, etc., insistiram com o Trump para que ele permanecesse no Acordo. E o [Emmanuel] Macron [presidente da França] foi bem direto, e disse: “Desse jeito a China vai tomar a frente”. É desastroso para essa lógica do grande Ocidente que os Estados Unidos sabotem o Acordo. A China se tornou o país mais poluidor do mundo: detém, hoje, cerca de 25% das emissões de CO2 globais. Os Estados Unidos são o segundo, com cerca de 15%. A China, até por ter tornado o ar de muitas de suas cidades irrespirável, fez um giro muito violento no sentido de investir em energias renováveis e, obviamente, tem tanto tecnologia quanto capacidade de produção em escala para dominar esse mercado. Os europeus sabem que o Trump pode atrasar em quatro anos isso. Eu acho que os americanos não são tão loucos a ponto de reelegê-lo, mas, dentro do limite, ele pode atrasar o processo por oito anos, o que vai fazer muito estrago. Mas os europeus sabem que, do ponto de vista da corrida tecnológica e do mercado da energia, os combustíveis fósseis vão perder terreno e, portanto, as energias renováveis são o foco. Perdendo os Estados Unidos como parceiro nesse processo, a Europa se vê fragilizada na geopolítica. De fato, a China está chamando para si a tarefa, quem diria, de grande potência defensora do clima.
Por que o Acordo é insuficiente?
Quando a Nicarágua critica o Acordo, ela está certa. Mesmo países que fazem parte dele têm fortes críticas, caso da Costa Rica. A Nicarágua tem 90% de energias renováveis, assim como a Costa Rica, aqui na América Latina. A gente muitas vezes fala de energias renováveis e expressa como referência a Alemanha, a Dinamarca, mas poderíamos olhar para muito mais perto. Costa Rica e Nicarágua estão trabalhando numa perspectiva de matriz de desenvolvimento garantindo acesso à energia para as maiorias sociais a partir de fontes renováveis: solar, eólica, geotérmicas, hidrelétricas de menor porte. E isso é um salto possível e necessário em termos de desenvolvimento econômico que o Brasil poderia e deveria fazer. Outra coisa importante: a Costa Rica é modelo de unidade de conservação. Estão fazendo isso também protegendo as suas florestas. A Nicarágua está fora do Acordo de Paris por dizer: ‘olha, o acordo é insuficiente, não coloca regras claras pra fazer com que os ricos arquem com a conta, então vamos fazer a nossa parte fora desse negócio’.
Quais são seus principais problemas?
O primeiro ponto é que o Acordo de Paris não é um acordo vinculante; é voluntário, no sentido que cada país apresenta suas contribuições . Os próprios países estabelecem suas próprias metas. Então há metas que são vergonhosas, caso da Rússia, do próprio Japão Há também um conjunto de metas que não são exatamente pífias, mas insuficientes considerando o que esses países podem fazer. Nessa categoria estão os Estados Unidos, o Brasil e a própria China. E aí o que acontece? Quando a gente faz o somatório disso tudo e coloca na balança as metas muito ruins, as metas insuficientes e um punhado de países que têm metas mais ousadas, no final das contas, a gente não chega naquilo a que o Acordo se propõe a fazer. O Acordo – e esse talvez seja único aspecto realmente produtivo – sinaliza para o conhecimento cientifico que diz que nós não devemos deixar o aquecimento global passar de dois graus até 2100, assinalando ainda que o ideal seria não ultrapassar 1,5 grau. Esses dois limites estão explicitamente no texto do Acordo de Paris. Não fazer nada, o cenário de business as usual, nos colocaria numa rota de aquecimento de 4,5 a 6,1 graus até 2100. Enquanto que as contribuições voluntárias nos levam a um aquecimento de 2,7 a 3,5 graus. É como se estivéssemos no Titanic e, para evitar a colisão frontal com o iceberg, aceitássemos um choque lateral. Nesse sentido, o Acordo é de fato insuficiente, os seus mecanismos são insuficientes e o financiamento é muito pequeno.
Mesmo representantes da indústria do petróleo se pronunciaram publicamente contra decisão de Donald Trump. Por quê?
O Trump poderia muito bem permanecer debaixo do guarda-chuva do Acordo de Paris simplesmente não cumprindo as metas, que são voluntárias. Não há penalidade se ele não cumprir. Acho que isso é o que boa parte, mesmo dos setores de indústrias poluentes, reclamam. Foi politicamente uma jogada ruim. E uma política ruim é ruim para os negócios. Ele foi eleito com uma plataforma populista de direita. Muita gente, inclusive, considerava que havia várias bravatas ali. Mas ele está mostrando que não é bravata. Trump nomeou o Scott Pruitt como chefe da EPA[a agência federal de proteção ambiental], que tem um histórico terrível. Ele era procurador-geral do Estado de Oklahoma. Aliás, não sei o que tem aquele estado; o senador de Oklahoma, James Lankford, fez o papelão de jogar uma bola de neve no meio do Senado para provar que não existia aquecimento global. Mas Scott Pruitt era o procurador-geral de Oklahoma e, no exercício do cargo, processou a própria EPA várias vezes. A agência que hoje ele comanda foi processada por ele várias vezes. Oklahoma, para se ter uma ideia, é um estado em que houve uma ampla liberação do fracking a partir de 2008. O fracking é uma forma de exploração de gás xisto não convencional, baseada na quebra da rocha, quebra física e química da rocha pra liberar o gás e, eventualmente, o óleo também, que fica nos poros. É uma técnica com muitos impactos ambientais, inclusive terremotos. E o Scott Pruitt é um negacionista militante mesmo. Ele é realmente comprometido com interesses econômicos que negam a existência do aquecimento global. E [sua nomeação] mostrou-se algo tão grave quanto colocar o ex-executivo chefe da Exxon [multinacional do petróleo], Rex Tillerson, à frente do Departamento de Estado, que é a máquina de guerra dos Estados Unidos. O governo Trump está a serviço da indústria de combustíveis fósseis. E foi ao limite extremo, de anunciar a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris. É um aceno ao que há de mais atrasado, mas o Trump se colocou numa situação de isolamento. E é importante também dizer o seguinte: ele conseguiu dizer uma quantidade de mentiras por minuto naquele discurso dele que é impressionante. Primeiro falar que os Estados Unidos iam pagar uma fortuna. A expectativa é o Fundo Verde para Clima chegar a US$ 100 bilhões daqui a vários anos. Parece muito dinheiro, mas não é. A cota dos Estados Unidos seria de US$ 3 bilhões, só que o [Barack] Obama repassou US$ 1 bilhão. É algo pífio, comparado com outras coisas que o Trump aprovou. Só o aumento de 9% no orçamento militar dos Estados Unidos implica em US$ 50 bilhões.
E como avalia o gesto do presidente Michel Temer com a regulamentação do Acordo?
A posição do Brasil no Acordo de Paris foi negociada no governo Dilma. Basicamente, o Brasil deveria ter uma enorme gordura que é do desmatamento. Temos uma estrutura de emissão de gases de efeito estufa que é diferente da maioria dos países. No mundo, o desmatamento é responsável por cerca de 10% a 11% das emissões, um impacto menor do que as emissões de geração de energia elétrica, do que as emissões da indústria, do transporte. É menos até do que as emissões de metano produzidas pelo gado bovino. Veja que o desmatamento é um fator importante, mas preponderante na escala global. O Brasil, segundo o dado mais recente que temos, de 2015, emitiu 1,9 bilhões de toneladas de CO2 equivalentes. Isso já fazendo equivalência do metano, do óxido nitroso e dos halocarbonetos para CO2.
O que isso quer dizer?
Uma molécula de metano tem mais capacidade de absorção de calor que uma molécula de CO2, então é preciso fazer um cálculo, que é qual o impacto de molécula de metano na atmosfera por 100 anos em comparação com uma molécula de CO2. E uma molécula sozinha de metano equivale a 34 moléculas de CO2. Emitir uma tonelada de metano é como se você estivesse emitindo 34 toneladas de CO2, então é feita essa equivalência em CO2. O Brasil emitiu 1,9 bilhões de toneladas de CO2 equivalente. Veja só que coisa lamentável: 884 milhões vieram do desmatamento, o que inclusive representa um aumento em relação a 2014; 454 milhões vieram da energia, agregando transporte, queima de combustíveis, e 425 milhões da agropecuária. Então veja que ao contrário da maioria dos países do mundo, no Brasil, 46% das emissões ainda são do desmatamento. O Brasil colocou no Acordo de Paris, que foi aprovado na COP 21 [Conferência das Nações sobre as Mudanças Climáticas] em 2015, uma proposta de redução das emissões em 37% [até 2025] e 43% [até 2030]. Só que o Brasil pegou como referência o ano de 2005 – e em 2005 o desmatamento estava no auge: o Brasil emitiu ao todo 6,16 bilhões de toneladas de CO2, sendo 2,32 bilhões de desmatamento. Então veja que quando o Brasil pega 2005 como referência e traz para os dias de hoje, é como esse ele já tivesse cumprido boa parte da meta. Não precisa fazer esforço nenhum. Apesar desse truque, o Brasil precisaria reduzir o desmatamento. É assim que a Dilma trabalhou o processo dizendo: “nós vamos acabar com o desmatamento ilegal”. Em suma, o Brasil tinha condições – e ainda tem – de cumprir as metas colocadas porque são metas tímidas. Não mexe na energia. Toda essa panaceia em torno do pré-sal, do aumento das termoelétricas; na verdade, isso aí não era tocado em nada. O Brasil sequer precisaria reduzir o seu rebanho bovino colossal. Precisaria apenas manter a trajetória de redução do desmatamento, que já vinha acontecendo desde o final dos anos 2000, reflexo principalmente de acabar com financiamento de desmatador. O problema todo é o seguinte: essa redução deveria continuar, mas os indícios dos últimos três, quatro anos apontam no sentido contrário. E a tendência é piorar. Eu reconheço, por exemplo, na figura do Sarney Filho [ministro do Meio Ambiente] uma pessoa com entendimento da questão ambiental e climática e que faz algumas movimentações positivas, mas no contexto de um governo sustentado por ruralistas, o alcance disso é muito pequeno.
Por quê?
Quando saiu o anúncio do Trump, o Itamaraty saiu com uma nota lamentando, assumindo uma posição crítica, o que é positivo. Mas, ao mesmo tempo, as movimentações da principal base de sustentação do governo Temer no Congresso vão no sentido do desmonte da legislação ambiental. O que abre mais terras para o agronegócio, para a mineração. É algo que contradiz a posição do governo em relação ao Acordo de Paris. O modelo agroexportador brasileiro é completamente contrário ao Acordo de Paris. Temos basicamente uma cabeça de gado bovino para cada pessoa. É lamentável que isso seja um tema delicado, mas é a pior fonte de proteínas que a gente poderia ter, por vários aspectos, ambientais, inclusive, de consumo de água, etc. Mas o fato da área demandada ser muito grande é um aspecto. A expansão da fronteira agrícola termina rebatendo no desmatamento, e o gado bovino, por ser ruminante, emite metano da fermentação do rúmen. Já a mineração, além de demandar uma enorme quantidade de água, degrada o ambiente porque envolve desmatamento direto.Mais do que isso: você muda completamente o fluxo de sedimentos e aí você assoreia rios e termina matando o ecossistema ao redor. Você perde mata direta e indiretamente e, claro, no limite, você tem situações como a do Rio Doce. A indústria da mineração também entra nessa conta, é um outro setor desastroso para o ambiente e para o país. Tudo isso nos leva a repensar o todo. No Brasil o agronegócio é chave. Porque se você juntar os 880 milhões de CO2 equivalentes do desmatamento com os 420 milhões do metano e óxido nitroso do gado bovino, os fertilizantes químicos etc., a gente chega em 1,3 bilhões de toneladas de CO2 equivalente dos 1,9 bi que o Brasil emitiu em um ano. Quer dizer, quase 70% das emissões brasileiras estão relacionadas ao agronegócio. Não tem como você enfrentar a questão climática, ambiental e hídrica no Brasil hoje sem falar do campo. E não é só Temer e companhia, que promovem isso de forma muito mais agressiva, descarada e até cínica, A exportação de commodities também foi um modelo adotado nos governos do PT.
Qual é o grau de consenso que existe hoje na comunidade científica em torno das mudanças climáticas? E quais os impactos delas sobre o planeta hoje?
A última pesquisa mostrou que pelo menos 98,5% dos cientistas ativos na área de clima não têm dúvida: o aquecimento global existe, é antrópico [causado pelo ser-humano] e é perigoso. Isso é um consenso científico bem maior do que muitas das coisas que você vê por aí, e várias delas justificam a tomada de medidas. E as consequências já estão aparecendo: nós estamos hoje 1,2 graus acima do período pré- industrial. São cada vez mais comuns as zonas de calor mortíferas, como aquelas que vitimaram vários idosos na Europa em 2008; em 2015 3,9 mil pessoas na Índia e no Paquistão morreram de calor – e 70% dessas zonas de calor estão associadas ao aquecimento global antrópico. Ou seja, há uma probabilidade três vezes maior de acontecerem do que antes. Um estudo publicado na revista Science recentemente mostrou que temos hoje um aumento de 40% na tempestade severa, o que é totalmente casado com esse conhecimento que se tem da física de que uma atmosfera mais quente armazena mais vapor d’água, que é matéria-prima para você produzir nuvens e tempestades. É óbvio que ia ficar mais intenso. Teve o [tufão] Haiyan, teve o [furacão] Patricia. A perda da calota de gelo é uma coisa espantosa: o volume do gelo marinho do Ártico diminuiu 70% em apenas 37 anos.
É possível que sejam fenômenos naturais, como argumentam os grupos que negam a existência das mudanças climáticas antrópicas?
Não. Não tem evidência para argumentar isso, pelo contrário. É charlatanismo e um absurdo que isso continue sendo propagandeado, criando confusão na sociedade. Isso obstaculiza ações necessárias. E aqui eu queria falar um pouco da história desse fenômeno chamado negacionismo. Porque essa, talvez, seja a chave que a gente precisa girar. Recentemente – e aí é um papel combinado de ações judiciais e trabalho de hacker mesmo – vieram à tona dezenas de documentos internos de corporações da indústria fóssil, principalmente a Exxon, e de instituições ligadas a ela, como o Instituto Americano de Petróleo, que é o grande sindicato das petroleiras. A reação que você tem ao ler esses documentos é de surpresa, indignação e fúria.
Por quê?
Em 1968, o Instituto Americano de Petróleo encomendou um estudo para a Universidade de Stanford, já querendo saber se a exploração de combustíveis fósseis e a sua queima iria mesmo provocar algum problema no clima. Porque existem indícios teóricos que apontam para isso desde o século 19 e indícios experimentais, empíricos, desde a década de 1930. E o documento de Stanford reforçou tudo isso. Na década seguinte, no final dos anos 1970, a Exxon financiava com recursos bastante vultosos pesquisas para avaliação dos impactos ambientais da atividade dela. Não é que ela fosse boazinha, mas se você faz um estrago grande, dá prejuízo. Então a Exxon tinha, inclusive, um programa de pesquisa em clima. O cientista-chefe desse processo, chamado James Black, elaborou, em 1978, um memorando em que fez várias projeções climáticas. Todas estãose confirmando agora. Ele colocava nos seguintes termos: nós temos uma janela de tempo de cinco a 10 anos para iniciarmos mudanças importantes no nosso sistema energético. Ele recomendava à Exxon que a empresa deveria migrar maciçamente seus investimentos para formas de energia alternativas ao petróleo em no máximo em dez anos.
O que aconteceu?
Em 1982, colocaram isso dentro de uma gaveta, encerraram o programa de clima e, a partir da década de 1990, passaram a financiar o negacionismo de uma forma impressionante. Tem um documento que relata a estratégia para conseguir sabotar o Protocolo de Kyoto, que estava tramitando nos anos 1990. Incluía recrutar cientistas, recrutar pessoas dentro da mídia, convencer empresários de peso que tenham forte ligação com políticos para atuar na legislação. Está tudo lá, tem esses orçamentos para isso. É impressionante. É o mesmo modelo da indústria do tabaco. Na verdade, eles usaram a expertise que foi construída no período do tabaco e trouxeram isso tudo para uma escala maior, mais perversacriando um caldo de cultura que continua fermentando até hoje: o negacionismo sobrevive. Mesmo diante de evidências que vêm desde o século 19, mesmo depois de cinco relatórios de IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas], com dados gerados dentro das próprias empresas petroquímicas, mesmo depois que as consequências já aparecem… Como, diante de tudo isso, não se toma as decisões necessárias? A única coisa que eu posso citar é que essas corporações, como um todo, tinham que ir para um tribunal internacional nos moldes de Nuremberg porque não são nem um pouco melhores do que os nazistas.
Dentro do que a gente chama genericamente de ‘ambientalismo’ há movimentos que procuram desmistificar um pouco a ideia, que acredito que o Acordo de Paris também expresse de alguma forma, de que a poluição ambiental é ‘democrática’. Esses movimentos procuram jogar luz sobre a questão da responsabilização diferenciada sobre a geração da poluição e também sobre os impactos diferenciados dessa poluição. Essa chave de leitura pode ser utilizada quando a gente fala de mudanças climáticas, fenômenos que se expressam numa escala global ao longo de dezenas de anos?
A primeira coisa é a diferença do bônus do uso abusivo de combustíveis fósseis. Ele beneficiou alguns apenas. Se você for olhar em cada 40 moléculas de CO2 que tem na atmosfera hoje, uma foi colocada lá ou pela Exxon, Chevron, BP e a Shell. Você chega a uma situação em que um habitante médio de Luxemburgo emite 300 vezes mais que um habitante médio da Etiópia. Então existe um abismo colossal. A gente enxerga nessa sociedade a desigualdade entre os países, entre as classes. Essa desigualdade se revela nas emissões de carbono. Se desenvolveu e cresceu quem tirou o carbono do subsolo e jogou para a atmosfera, se dá assim desde a revolução industrial. Então esse é o primeiro ponto. Mesmo que os impactos fossem, de fato, democráticos, por uma questão histórica as responsabilidades deveriam ser de quem fez o negócio. Mas o pior é que os impactos também são desiguais. Quem é que está em vias de desaparecer [por causa do derretimento das calotas polares]? Parte da Flórida? É verdade, mas é uma fração pequena do território dos Estados Unidos, enquanto tem países inteiros na fila: Kiribati, Tuvalu, as próprias Bahamas. Se fala até de Bangladesh. Um estudo paleoclimático recente mostra o seguinte: nós temos subestimado a questão da elevação do nível do mar, e isso por uma questão de limitação dos modelos utilizados. Se a gente olhar para a última vez em que a temperatura da Terra esteve entre 1,5 e 2 graus acima dos dias de hoje – os números que o Acordo de Paris quer evitar – foi há 400 mil anos, e os mares estavam entre seis e 13 metros acima dos dias atuais. Olha, 100 milhões de pessoas só em Bangladesh moram a 10 metros do nível do mar. É um país do tamanho do Ceará com 154 milhões de habitantes e, desses, 100 milhões moram na zona costeira de baixa altitude. Como é que faz? A Holanda ainda vai ter como se defender da elevação do nível do mar com aquele grande sistema de diques e bombas. Mas o que você vai falar para os habitantes de países-ilha, o pessoal lá das Filipinas que não tem recursos para isso, não tem nem como fazer isso na escala necessária? De fato, são profundamente desiguais, e esse talvez seja o aspecto mais perverso das mudanças climáticas. Quem se beneficiou com as emissões históricas de carbono foram uns e quem mais está exposto aos impactos são outros. De novo dá para comparar com o Titanic: está todo mundo dentro, a primeira classe, a segunda e a terceira. Mas como não há botes salva-vidas para todos, se tranca a terceira classe no porão.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 19/06/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário