A fábrica de ilusões que leva ao colapso civilizacional. Entrevista especial com Alexandre Costa
IHU
Desmatamento na Amazônia dispara neste ano e chega a quase 8 mil km². A ideia desenvolvimentista, movida pela fome de consumo e necessidade de produção, aliada ao incipiente investimento em energias renováveis, tem nos levado a tempos sombrios. “O Brasil tem sido um fiasco no investimento em energias renováveis”, dispara Alexandre Costa, físico e professor da Universidade Estadual do Ceará. Com parcos investimentos na energia solar, o país insiste nas fontes fósseis. “Não entendo o fetiche da esquerda brasileira com o petróleo. A mudança da regra de exploração do pré-sal é um desastre, mas não apenas nem principalmente por aumentar a presença das petroquímicas no setor. É por acelerar a extração de um estoque de carbono que, no contexto da crise climática, teria de permanecer exatamente onde está”, pontua.
Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Costa destaca que esse modelo dificulta até mesmo a conscientização das populações mais pobres. São elas as mais atingidas pelos efeitos das mudanças climáticas, mas seguem anestesiadas porque “se beneficiam a curto prazo e guardam ilusões com esse modo de vida insustentável”. “A lógica de expansão ilimitada da produção e consumo, uma ilusão que os economistas e políticos adoram vender, já ultrapassou os limites de equilíbrio do Sistema Terra”, alerta. Sem confrontar essa situação, o “colapso dessa civilização é inevitável”.
Alexandre Araújo Costa é professor da Universidade Estadual do Ceará. Formado em Física, Ph.D. em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Estado do Colorado, com pós-doutorado na Universidade de Yale. Foi um dos autores principais do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Militante ecossocialista e ativista climático, edita o blog O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei e é um dos coordenadores do fórum de articulação Ceará no Clima.
De março a junho, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o ciclo de conferências Os biomas brasileiros e a teia da vida. Veja a programação completa aqui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como compreender o papel dos biomas brasileiros na complexa equação do clima? Cientistas já comprovaram que as mudanças climáticas estão associadas, também, à destruição da Floresta Amazônica e que o desmatamento nessa região pode influenciar, por exemplo, o ciclo de chuvas no sudeste brasileiro. Como compreender essas relações? Quais os desafios para se converter essa compreensão em mudança de hábitos?
Alexandre Araújo Costa – Trata-se de uma interação de mão dupla, já que atmosfera e biosfera [1] interagem por uma variedade de processos. De um lado, as condições climáticas mais gerais, de temperatura e precipitação, não apenas a quantidade, mas sua distribuição anual, é determinante para a existência desse ou daquele bioma: da Caatinga, no semiárido, às florestas úmidas. Mas a biosfera também interage de volta. Localmente, eles também são muito relevantes na manutenção da hidrografia, incluindo a vegetação junto às nascentes e as matas ciliares, sendo inegáveis os efeitos que a devastação da Mata Atlântica, do Cerrado e da Caatinga tiveram nesse sentido.
Além disso, sabe-se, embora os mecanismos ainda não sejam inteiramente conhecidos, que a Amazônia tem um papel relevante na distribuição de chuvas na América do Sul, ao bombear parte da umidade que é transportada pelo chamado jato de baixos níveis para a Região Sudeste. Na floresta, compostos orgânicos voláteis são também uma importante fonte de núcleos de condensação, influenciando o ciclo de vida das nuvens.
Os biomas brasileiros, especialmente a Amazônia, representam um enorme estoque de carbono e cumprem importantes papéis na mitigação das mudanças climáticas
Por fim, devo lembrar que os biomas brasileiros, especialmente a Amazônia, representam um enorme estoque de carbono e cumprem importantes papéis na mitigação das mudanças climáticas. Entender a ciclagem de água e carbono e as influências do desmatamento, queimadas e mudança do clima global nesses biomas requer pesquisa, com o devido financiamento (como se viu no Large-Scale Biosphere-Atmosphere Experiment – LBA in Amazonia). Mas preservá-los vai além da mudança de hábitos (por exemplo, reduzir o consumo de carne, principalmente se a procedência desta for a Amazônia ou o Cerrado). É preciso ter políticas públicas no sentido contrário daquelas que vêm sendo aplicadas há vários anos e que levou à expansão da soja, da pecuária, da mineração, da exploração de combustíveis fósseis e da construção de grandes barragens, como Belo Monte.
IHU On-Line – Em que medida já se pode perceber os efeitos das mudanças climáticas nos biomas do Brasil?
Alexandre Araújo Costa – Uma das características da dinâmica de uma atmosfera aquecida é que os extremos de seca e de chuva se exacerbam (trata-se de um mecanismo físico bastante simples, que é o aumento da pressão de vapor de saturação associada ao aumento de temperatura). Isto já tem provocado mudanças importantes na frequência de secas na Amazônia.
Um artigo publicado há dois anos na Nature [2] mostra o grave problema que pode representar uma sequência de grandes secas na região. Os autores examinaram os efeitos das secas de 2005 e 2010 e os resultados mostraram um decréscimo na captura de CO2 pela floresta: a Amazônia deixou de capturar nada menos que 380 milhões de toneladas de carbono, o que equivale aproximadamente ao funcionamento de 200 usinas termelétricas de grande porte.
Os autores também avançaram numa discussão sobre aquilo que, para mim, parece uma verdadeira armadilha do sistema fisiológico vegetal. Como este é orientado para um determinado comportamento competitivo, num bioma em que se dá melhor quem cresce verticalmente e expande a copa, a fisiologia leva a um menor investimento em manutenção de tecidos e em defesa em condições de fotossíntese suprimida em consequência da seca. E aí vem o desastre subsequente: o aumento da mortalidade das árvores, o que leva a emitir mais CO2, aquecer ainda mais o clima, produzir secas ainda mais severas etc., ou seja, estabelecendo aquilo que chamamos de “feedback positivo” ou retroalimentação.
No Nordeste, também há indícios de que podemos estar mudando a “norma”, isto é, que a seca que atravessamos possa ser uma amostra do futuro da região com a mudança climática global em curso.
IHU On-Line – O Nordeste brasileiro entra no sexto ano do que pode ser a pior seca de sua história. Uma mudança no modelo de desenvolvimento, tomando como prioridade as energias renováveis, mudaria esse cenário? Como?
Alexandre Araújo Costa – Há expectativa de que pelo menos em parte da região o longo período de seca seja interrompido. Pelo menos é o que o prognóstico da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos aponta, para a porção mais ao norte do Nordeste. Mas de qualquer modo, o que se viu de 2012 a 2016 é obviamente atípico. A maior parte do Nordeste entrou em seca extraordinária e no Ceará tivemos a menor média de cinco anos já observada na história, sendo que o estado mantém registros de precipitação desde pelo menos o início do século XX.
É preciso que se diga que eventos extraordinários como esse dificilmente podem ser associados a uma única causa. As mudanças climáticas certamente já estão tendo influência, mas é preciso mais estudos para identificarmos como e quanto. Mesmo sem o aquecimento global, o Nordeste setentrional é sensível à variabilidade climática natural, com as chuvas tendendo a diminuir ou aumentar de acordo com os padrões de temperatura oceânica no Pacífico e Atlântico e, no momento, os modos de variabilidade de longo prazo em ambos os oceanos estão em fase desfavorável para as chuvas na região. A degradação ambiental na escala local, com o desmatamento comprometendo matas ciliares e nascentes e assoreando rios e reservatórios, também precisa ser colocada nessa contabilidade. Uma inadequada e insuficiente política de resíduos e saneamento contribui também para o comprometimento da qualidade da água na região.
A vulnerabilidade da região é amplificada por conta das escolhas dos modelos de desenvolvimento
E a vulnerabilidade da região é amplificada por conta das escolhas dos modelos de desenvolvimento. A multiplicação das obras hídricas não levou em conta em geral as necessidades da maioria da população e visou essencialmente ao favorecimento de determinadas atividades econômicas, como o agronegócio e setores industriais hidrointensivos. Em particular, a instalação de termelétricas na região se mostrou uma atitude irresponsável e desprovida de qualquer mínimo bom senso.
Emergência de outras fontes de energia
É urgente inverter a lógica da geração energética da região, com ênfase nas energias renováveis, mas sobretudo na microgeração solar, residencial, pois até mesmo os parques eólicos, instalados numa lógica mercantilista, têm sido prejudiciais para várias comunidades, principalmente na zona costeira. O aproveitamento da energia solar poderia ser uma solução de várias questões simultaneamente: segurança energética, redução do uso de água e de emissões de CO2 associados às termelétricas, distribuição de renda mediante barateamento da conta de luz e, claro, geração de empregos.
IHU On-Line – Como compreender o fato de que o desmatamento na Amazônia e em toda área de Mata Atlântica cresce a cada ano?
Alexandre Araújo Costa – Infelizmente, as razões são bastante nítidas, com destaque para a expansão da fronteira agrícola por pressão do agronegócio. Na configuração mundial do capitalismo, o Brasil entrou como exportador de commodities, incluindo minério de ferro, soja etc. Esse modelo de desenvolvimento mostrou-se mais perverso justamente quando o preço dessas commodities cai no mercado internacional. Não é de se espantar que o avanço da mineração, especialmente em que ela tenta compensar lucros menores aumentando a quantidade da produção, produza crimes terríveis como o da Samarco [3].
Os ruralistas, de olho inclusive nas terras indígenas e quilombolas, são o outro setor econômico que se fortaleceu recentemente, pressionando contra a demarcação de Terras Indígenas – TIs e Terras Quilombolas – TQs e especialmente neste governo tem dado mostras de que está disposto a não parar no desmonte do Código Florestal. Todas as articulações desse setor concorrem para reduzir a proteção aos biomas e no ano passado as emissões brasileiras de CO2 cresceram justamente por conta do aumento do desmatamento.
IHU On-Line – Quais os avanços e limites do Brasil nas políticas de combate às mudanças climáticas e preservação de seus biomas? Quais os maiores desafios para conscientizar as populações das metrópoles de que seus hábitos podem impactar no aquecimento global e que essas mudanças climáticas afetam diretamente os mais pobres que vivem nas periferias?
Cerca de 40% do CO2 emitido vem ainda do desmatamento e sem medidas sérias para zerá-lo
Alexandre Araújo Costa – É por conta dos fatores que coloquei antes, e de outros, que minha preocupação cresce em relação à capacidade do Brasil de cumprir com seus compromissos internacionais para o clima, em particular a INDC (a contribuição nacional para redução das emissões). Cerca de 40% do CO2 emitido vem ainda do desmatamento, e sem medidas sérias para zerá-lo, ou no mínimo para reduzi-lo drasticamente nos próximos anos, será impossível atingir as metas. Importante frisar: essas são, em tese, as emissões “fáceis” de cortar.
Os outros dois grandes contribuintes para as emissões brasileiras são o setor de energia. Incluindo transportes e agropecuária, sendo que neste último caso estão as emissões de gases de efeito estufa várias vezes mais potentes que o CO2, no caso o metano e o óxido nitroso. Ora, não há nenhuma política pública no horizonte de redução do rebanho bovino, principal fonte de emissão de metano, por fermentação entérica.
Do ponto de vista da energia, o Brasil tem sido um fiasco no investimento em energias renováveis, sendo especialmente pífio no aproveitamento da energia solar. O predomínio do modal rodoviário, os incentivos ao uso de derivados de petróleo, incluindo o pré-sal, e ao transporte individual, políticas que foram vendidas como caminho para o “desenvolvimento nacional” se mostram um beco sem saída nesse terreno. Os incentivos à exploração de combustíveis fósseis, especialmente petróleo e gás, podem inclusive levar ao aumento das chamadas emissões fugitivas.
Fetiche petroleiro
Como tenho dito, aliás, não entendo o fetiche da esquerda brasileira com o petróleo. Sim, a mudança da regra de exploração do pré-sal é um desastre, mas não apenas nem principalmente por aumentar a presença das petroquímicas no setor. É por acelerar a extração de um estoque de carbono que, no contexto da crise climática, teria de permanecer exatamente onde está. Costumo dizer: “o petróleo é nosso para ficar no chão”.
Desafios para sensibilização
Nesse sentido, não é realmente trivial trabalhar o convencimento junto principalmente aos setores da população urbana que se beneficiam a curto prazo e guardam ilusões com esse modo de vida insustentável. E não é apenas em relação ao uso de combustíveis fósseis, mas a toda a insustentabilidade do uso de água, da cultura do consumismo e descarte… A lógica de expansão ilimitada da produção e consumo, uma ilusão que os economistas e políticos adoram vender, já ultrapassou os limites de equilíbrio do Sistema Terra.
IHU On-Line – E verdade que os cientistas falam que entramos em outra época geológica em virtude da ação humana?
Alexandre Araújo Costa – Sim, é verdade. Já ficou evidenciado um forte acordo, num grupo de trabalho de especialistas, que este tempo em que vivemos deve ser já caracterizado como uma nova época geológica, o Antropoceno [4], embora ainda não tenha sido delimitado que referência deve ser adotada, nem do ponto de vista temporal nem do ponto de vista físico-biogeoquímico. De qualquer modo, a adoção do termo é cada vez mais consensual. Mais recentemente, Gaffney [5] e Steffen [6] (2017) fizeram uma atualização das atuais condições do Antropoceno e os números são cada vez mais assombrosos, especialmente quando comparamos as tendências exponenciais e disruptivas do Antropoceno com a marcante estabilidade do Holoceno [7].
Por conta da queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás), a concentração de CO2 sofreu uma mudança 1000 vezes mais rápida do que a verificada entre 11 mil e 7 mil anos atrás, chegando a 400 partes por milhão (ppm), valor sem paralelo nos últimos 3 milhões de anos. Em virtude de um maior efeito estufa, entre 1970 e 2015, a temperatura média global cresceu a uma taxa média 170 vezes maior do que as mudanças de temperatura verificadas durante o Holoceno. A quantidade de nitrogênio fixada hoje pelas atividades humanas excede todos os processos naturais somados e é possível que os fluxos de fósforo tenham sido simplesmente triplicados, produzindo desequilíbrios nos ecossistemas aquáticos e comprometendo a qualidade da água em rios e reservatórios.
Efeitos nos mares
Os oceanos estão mais quentes, mais ácidos e com menos oxigênio: em 2016, acompanhando o recorde global de temperaturas, a superfície dos oceanos ficou cerca de 1°C acima das temperaturas médias observadas no início do século XX. A acidez já é 26% maior do que no período pré-industrial e o teor de oxigênio dissolvido nos oceanos caiu 2,1% em 50 anos. O fluxo de sedimentos decorrente da atividade mineradora atingiu impressionantes 57 bilhões de toneladas ou cerca do triplo da soma daquilo que é carregado pelos rios de todo o planeta.
6ª grande extinção
Devido à combinação de vários fatores, como destruição de habitats, caça e pesca indiscriminadas, introdução de espécies invasoras e mudanças climáticas, a perda de espécies é 100 vezes maior do que o que seria considerado normal, situação já comparável às grandes extinções da história da Terra. Em outras palavras, estamos entrando na 6ª grande extinção. A contaminação química é um fenômeno generalizado, com substâncias artificiais (e tóxicas) tendo sido encontradas até em seres vivos que habitam a Fossa das Marianas [8]. Em suma, se alguma civilização visitar a Terra, ou nela evoluir, e seus arqueólogos resolverem perfurar a crosta para fazer pesquisa, vão ficar horrorizados com o que irão encontrar.
IHU On-Line – Qual a relação entre o paradigma econômico hegemônico e o Antropoceno? Quais os desafios para se pensar noutro paradigma econômico?
Alexandre Araújo Costa – O sistema produtivo capitalista experimentou nas últimas décadas enormes transformações, que colocaram o planeta sob intensa pressão no que diz respeito às fontes de matérias-primas e de energia. Interconectado globalmente, o sistema capitalista proporcionou um fluxo extremamente intensivo não apenas de capital especulativo, mas desses materiais e dos produtos a partir deles fabricados. As redes longas desse sistema econômico ligaram, via extração, produção e consumo, praticamente todos os indivíduos em praticamente todos os cantos do planeta. Por terra, pelo ar e pelos mares, milhões de toneladas de material de bauxita a celulares viajam todo ano, numa espiral crescente.
O resultado dessa expansão não apenas em volume do que é produzido e consumido, mas no aumento da velocidade do transporte e do descarte, estabeleceu um conflito que faz a luta de classes parecer um diálogo amigável: a contradição insolúvel entre um sistema intrinsecamente expansionista e um mundo limitado. Os chamados limites planetários estão sendo um a um ultrapassados. As curvas de diversos parâmetros assumiram a forma exponencial, configurando o que se convencionou chamar de “a grande aceleração”, particularmente nítida a partir da segunda metade do século passado e início deste. É isso que produziu o Antropoceno.
Mas, na Natureza, tudo que cresce exponencialmente produz instabilidade, seguida de colapso. É simples assim. Na Física, quando resolvemos as equações de um problema e uma das soluções é de crescimento exponencial, nós a descartamos, por ser implausível. Violar a conservação da massa, a conservação da energia e a 2ª Lei da Termodinâmica parece ser o sonho da economia capitalista, mas só pode conduzir ao pesadelo de uma sociedade insustentável.
Colapso civilizacional
As escolhas que mais salvaguardam o futuro são precisamente aquelas mais contrárias à lógica do mercado e da acumulação de capital
Por isso, costumo dizer, já que o colapso dessa civilização é inevitável, precisamos de um “colapso do bem”. As escolhas que mais salvaguardam o futuro (inclusive a velhice das gerações atuais) são precisamente aquelas mais contrárias à lógica do mercado e da acumulação de capital (e são absolutamente urgentes). São as que batem de frente com incentivo ao consumismo, obsolescência programada, propaganda, uso extensivo de embalagens, criação de falsas necessidades em torno de itens fúteis e supérfluos, transporte individual, expansão das fronteiras extrativista e agrícola, uso perdulário de matéria-prima e energia, matriz energética concentrada e baseada principalmente em combustíveis fósseis, excesso de produção, uso massivo de fertilizantes e outros agroquímicos, jornadas de trabalho muito mais prolongadas do que o necessário, etc.
As escolhas que salvaguardam o futuro são as no sentido de uma sociedade igualitária, democrática e que utiliza racional e contidamente a matéria e a energia que o restante da natureza lhe fornece. Precisamos urgentemente de uma inflexão na velocidade dos processos e (tentativa de) reversão das alterações ambientais deletérias associadas ao Antropoceno.
Problema aí é que mexe nas estruturas econômicas e políticas. Mexe com a indústria mais poderosa de todas (6 das 10 maiores companhias do mundo são petroquímicas). Mexe com os bancos que têm investimentos gigantescos nelas, nas mineradoras etc. Mexe com o sistema político profundamente corrompido pelo poderio do capital.
IHU On-Line – Recentemente veio a público o vídeo Climate of Concern [9], produzido pela Shell ainda em 1991. O que os documentos da Exxon (do final da década de 1970 e dos anos de 1980) e esse vídeo da Shell de 1991, que reconhecem e alertam para os riscos do aquecimento global, revelam? E significa que agora há possibilidade de mudança de posturas?
Alexandre Araújo Costa – O que esse vídeo mostra, o que esses documentos mostram pode ser resumido em duas palavrinhas: eles sabiam! Antes disso tudo, há quase meio século, em 1968, por encomenda do American Petroleum Institute – API [10], um relatório preparado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Stanford alertava que “a humanidade está realizando um vasto experimento geofísico” e que “mudanças significativas de temperatura quase certamente devem ocorrer em torno do ano 2000, trazendo consigo mudanças climáticas”.
Os relatórios internos da Exxon, quando vieram a público, revelavam o conhecimento que a companhia tinha sobre os riscos da continuidade da queima de combustíveis fósseis e a necessidade de mudança de rota. Por exemplo, em 1978, o cientista James Black, que trabalhava para a companhia, mostrou projeções de aquecimento global incrivelmente parecidas com aquelas produzidas pela comunidade de clima muitos anos depois nos piores cenários. E por fim, a Shell.
Fundamental dizer que esse material veio à tona em larga medida por intervenções de organizações como a Union of Concerned Scientists – UCS, a 350.org, o Greenpeace etc., e que há batalhas judiciais em torno deles. Nada tem a ver com uma mudança de postura. Pelo contrário, revela que tais corporações tinham o conhecimento do perigo do aquecimento global, tinham os recursos para investimento, tinham a possibilidade de influenciar governos e outros setores da indústria e fizeram tudo para manter sua fonte de lucro. Esconderam tudo. Financiaram negacionistas, como a Exxon. Expandiram seus negócios e emitiram CO2 como nunca. São corporações criminosas.
IHU On-Line – Sobre o conteúdo de Climate of Concern, em que medida o que é dito ali se confirma no nosso tempo? Qual seria o teor desse vídeo se fosse produzido hoje?
Alexandre Araújo Costa – O vídeo impressiona. Ele explica didaticamente o efeito estufa. Lembra, além do CO2, do metano, do óxido nitroso e dos halocarbonetos. É cientificamente simples e preciso, mostra total respeito pelo conhecimento científico vigente, tanto no que diz respeito às observações quanto às projeções de modelos, apesar das incertezas, bem maiores na época do que agora. O vídeo também mostra que a Shell já tinha consciência dos impactos. Fala de elevação do nível do mar como ameaça aos países insulares, fala de Bangladesh, fala que a Holanda (onde fica a sede da companhia) pode estar segura agora graças ao seu elaborado sistema de barreiras e de bombeamento, mas que no futuro isso é incerto. Fala, ainda, do perigo de quebras de safras que mudanças sutis nas zonas climáticas podem acarretar e de refugiados climáticos.
Uma frase, dita em tom solene pelo narrador, é particularmente impressionante: “O aquecimento global ainda não é certo, mas muitos argumentam que esperar por uma ‘prova final’ seria irresponsável. Ações agora parecem ser o único caminho seguro”. Sendo produzido hoje esse vídeo, haveria muito mais evidências a se apresentar. Teria de apresentar muito mais urgência do que há 25 anos e a expressão “não é certo” teria de ser trocada. Hoje, não cabem meias palavras. Estamos mais do que certos de que o planeta está aquecendo por conta das ações humanas e que a continuidade dessa rota é um desastre.
IHU On-Line – O que a ascensão de figuras como Donald Trump significa para as discussões acerca das mudanças climáticas de nosso tempo?
Alexandre Araújo Costa – Sem dúvida, a administração de Trump é tudo o que de pior se poderia ter neste momento. Ele está promovendo a indústria de carvão, tem como secretário de Estado o Sr. Rex Tillerson [11], que até poucos dias atrás era CEO da Exxon, nomeou um negacionista climático (Scott Pruitt [12]) para a Agência de Proteção Ambiental com o claro intuito de desmontar a agência a partir de dentro, anunciou cortes nos programas de pesquisa da Agência Nacional de Administração Atmosférica e Oceânica – NOAA etc.
O próprio Trump afirmava, de maneira bizarra, que o aquecimento global seria “uma farsa inventada pelos chineses” para enfraquecer a indústria dos EUA e, coerentemente, deu sinal verde para os oleodutos de Dakota e Keystone XL. Tempos difíceis, assim como no Brasil, com o usurpador Temer. A solução está na rua, na luta, na resistência indígena e quilombola, na luta das mulheres e na possibilidade de as maiorias sociais promoverem mudanças reais.
Notas:
[1] Biosfera: também conhecido como ecosfera, é o conjunto de todos os ecossistemas da Terra, sendo o maior nível de organização ecológica. (Nota da IHU On-Line)
[2] Doughty ey al. (2015): Drought impact on forest carbon dynamics and fluxes in Amazonia, Nature, 519,78–82, doi:10.1038/nature14213. (Nota do entrevistado)
[3] O entrevistado se refere ao desastre ocorrido em Mariana, Minas Gerais. O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, através de seu sítio, vem publicando uma série de materiais sobre o episódio. Leia mais em ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU On-Line)
[4] Antropoceno: termo usado por alguns cientistas para descrever o período mais recente na história do Planeta Terra. O sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU tem tratado dessa perspectiva em diversas publicações. Entre elas “Antropoceno: ou mudamos nosso estilo de vida, ou vamos sucumbir”. Entrevista especial com Wagner Costa Ribeiro, publicada nas Notícias do Dia, de 29-02-2016. (Nota da IHU On-Line)
[5] Owen Gaffney: diretor de mídia e estratégia internacional no Stockholm Resilience Centre, engenheiro de astronáutica e aeronáutica, é também jornalista, cineasta e escritor. Seu trabalho concentra-se na compreensão, comunicação e visualização do impacto da humanidade no planeta através de conceitos como o Antropocendo e fronteiras planetárias e processos de transformação. (Nota da IHU On-Line)
[6] Will Steffen (1947): químico americano, professor e pesquisador da Australian National University, foi diretor executivo do Instituto de Mudanças Climáticas da Universidade Nacional Australiana e membro da Comissão Australiana de Clima. De 1998 a 2004, foi diretor executivo da International Geosphere-Biosphere, organismo de coordenação de organizações nacionais de mudança ambiental com sede em Estocolmo. (Nota da IHU On-Line)
[7] Holoceno: divisão da escala de tempo geológico, é a última e atual época geológica do Quaternário. O começo do Holoceno é definido na mudança climática correspondente à do final do episódio frio conhecido como o Dryas recente, após a última glaciação, e abrange os últimos 11.784 anos, tendo 2000 como referência de tempo base. Ele é um período interglacial em que a temperatura foi mais suave e calotas desapareceram ou diminuíram de volume, o que causou uma elevação do nível do mar. (Nota da IHU On-Line)
[8] Fossa das Marianas: é o local mais profundo dos oceanos, atingindo uma profundidade de 11.034 metros. Localiza-se no oceano Pacífico, a leste das ilhas Marianas, na fronteira convergente entre as placas tectônicas do Pacífico e das Filipinas. (Nota da IHU On-Line)
[9] Climate of Concern: vídeo de divulgação da empresa Shell de 1941, mas divulgado recentemente, que alerta para os perigos da mudança climática. Leia mais e assista ao vídeo em O vídeo dos anos 90 em que a Shell admite a existência da mudança climática, publicado nas Notícias do Dia de 1-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU On-Line)
[10] American Petroleum Institute (API): é a maior associação comercial dos EUA para a indústria de petróleo e gás natural. Ela afirma representar cerca de 650 empresas envolvidas na produção, refinamento, distribuição e muitos outros aspectos da indústria do petróleo. (Nota da IHU On-Line)
[11] Rex Wayne Tillerson (1952): empresário, engenheiro e diplomata estadunidense, atual Secretário de Estado dos Estados Unidos. Como engenheiro, Tillerson juntou-se à Exxon Mobil Corporation em 1975 e foi presidente e CEO da empresa de 2006 a 2016. (Nota da IHU On-Line)
[12] Edward Scott Pruitt (1968): advogado norte-americano e político republicano do estado de Oklahoma, atualmente é o 14º Administrador da Agência de Proteção Ambiental. (Nota da IHU On-Line)
(EcoDebate, 13/03/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
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