Por Tarcísio de Paula Pinto*, CartaCapital –
As próximas semanas serão, certamente, dolorosas com as periferias de nossas cidades, costumeiramente vista como a senzala
Os fatos dos últimos dias foram absolutamente preocupantes, mas também surpreendentes. Simultaneamente ruem impérios e todos os conceitos brandidos nos últimos tempos de forma tão impositiva: a eficiência do Mercado, as benesses da privatização, o Estado Mínimo, a demonização dos serviços públicos. Mitos estão sendo demolidos e um mês atrás já pertence ao passado longínquo. As próximas semanas serão, certamente, dolorosas com as periferias de nossas cidades, costumeiramente vista como a senzala, depósito dos excluídos e marginalizados, dos negros e “paraíbas” pagando o preço amargo das políticas destrutivas dos poucos avanços civilizatórios que logramos ter após 1988. Encarando as ações emergenciais do presente, é preciso desvendar o mais rápido possível para aonde iremos. É necessário enxergar além e plantar o que for necessário em ações no presente com foco em algumas questões para pensar o “pós-crise”:
1. A força avassaladora da crise sanitária e da crise econômica que vêm num crescente, dificulta saber aonde chegaremos, o que sobreviverá, e em que momento estará localizado este “pós–crise”;
2. Terá que ser analisado com mais atenção e método o que já é claro: a natureza cobra o preço da presença agressiva do humano-vírus no ambiente natural com limites continuamente desrespeitados, o preço das cidades desestruturadas, das profundas desigualdades sociais, da economia predatória, da ganância acumuladora dos financistas.
3. É certo que a humanidade está recebendo, com a crise, uma chance de reescrever parte de sua história e às gerações atuais, dos jovens plenos de energia aos velhos lúcidos, caberá tecer os primeiros esforços para superação das profundas iniquidades do último período;
4. É absolutamente previsível que a crise econômica será profunda e duradoura, forçando o redesenho das relações econômicas; muitos fluxos econômicos serão rompidos, negócios tradicionais deixarão de existir, como os trabalhadores informais e autônomos, as pequenas e médias empresas (provedoras do maior número de empregos no país), descapitalizados, serão fortemente prejudicados, enquanto os financistas continuam a reter os recursos acumulados;
5. Será inevitável o profundo reflexo da quebra dos fluxos econômicos na capacidade arrecadatória dos entes de governo, que se sustentam nos tributos e impostos gerados pelas atividades econômicas;
6. O futuro breve será de intensa disputa pelo que restará do minguado orçamento público – como o presente já vem demonstrando – com a injeção de 1,2 trilhão de reais nos negócios das poucas famílias financistas, e alguns poucos bilhões relutantemente cedidos ao “pessoal da senzala”;
7. A reconstrução dos fluxos econômicos não terá melhor caminho que o foco na reconstrução das relações econômicas locais – nos distritos, setores urbanos, pequenas e médias cidades;
8. A intensidade da crise sanitária e humanitária possibilitará – e exigirá de forma muito explícita – a defesa da reconstrução destas novas relações em bases solidárias, para superação progressiva das desigualdades; se não optarmos pelo exercício ativo da solidariedade no presente e no futuro próximo, talvez não evitemos o nosso ingresso em um período de selvageria na disputa pela sobrevivência física.
Após o alinhamento destas questões, avanço considerações e algumas propostas de ação sobre um tema específico: a gestão dos resíduos da vida urbana, na qual a crise recém iniciada também estará demolindo conceitos, “verdades estabelecidas” e forçando a superação de “dificuldades intransponíveis”.
Propostas e considerações para a gestão dos resíduos da vida humana
Trabalhos desenvolvidos nos últimos anos em algumas regiões brasileiras (e no Estado do Ceará, como um todo, mais recentemente) já vinham apontando a necessidade de superação de alguns “mitos” arraigados neste tema, que tem impedido avanços mais consistentes dos municípios.
Entre 2005 e 2010, o Brasil alinhou suas políticas públicas às de países mais avançados, estruturando a legislação para Consórcios Públicos, que fortalecesse a capacidade gestora dos municípios, adequando-a às escalas regionais, à legislação para o Saneamento Básico, superando as deficiências de política pública formulada autoritariamente nos anos 70; e à legislação para os Resíduos Sólidos, em resposta às dificuldades de gestão em cidades que hospedam mais de 85% da população brasileira.
São avanços civilizatórios que, nos anos recentes, vêm sendo frontalmente atacados pelas articulações neoliberais e privatistas, mas que também, no caso da política para resíduos sólidos, pouco avançaram por estratégias inadequadas adotadas no setor. Há vários indicadores que permitem observar a limitação dos resultados após 10 anos da edição da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Ao lado do crescimento pífio dos índices de reciclagem – a recuperação dos recursos naturais finitos constituintes dos resíduos (ampliação de menos de 1% para 2% na última década) – os dados de associação empresarial do setor permitem observar o tímido progresso e até mesmo retrocesso nos 3 últimos anos, do número de municípios que encerraram seus lixões (Gráfico 1).
O estigma da presença dos lixões nos municípios vem sendo combatido por iniciativas da União e dos Governos Estaduais, desde a edição da lei, em 2010, impondo aos municípios a disposição de resíduos em aterros sanitários, muitas vezes situados a longas distâncias. Esta diretriz está gravada no Artigo 54 da Lei 12.305, que impôs prazo até 2014 para os municípios migrarem de uma “solução” local, inadequada, mas de baixo custo, para outra que acarreta elevados custos de investimento e de transporte. A incapacidade de resposta dos municípios a esta exigência explica o fracasso desta imposição.
Os municípios vêm sendo impelidos, inclusive por ações do Ministério Público, a abandonar os inadequados lixões para aderirem a outra solução mais inadequada ainda. Às características de elevado custo de transporte e disposição de resíduos, se agrega uma elevação escandalosa nas emissões de GEE (gases de efeito estufa) pelos veículos transportadores dos resíduos e pelos aterros sanitários, hoje reconhecidos como verdadeiras bombas emissoras de Metano (CH4, 21 vezes mais poluente que o CO2, Gás Carbônico). O IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), em uma avaliação “otimista”, categoriza os aterros sanitários como 2,5 vezes mais emissores de GEE que os condenáveis lixões.
São Paulo, visto como unidade da federação com o melhor resultado nas políticas para resíduos, tinha, em 2017, 98% dos resíduos urbanos gerados dispostos em aterros sanitários, 54% em instalações privadas, com este mesmo percentual dos resíduos sendo conduzidos a outras cidades, com deslocamento médio de 45 km, mas podendo chegar a 300 km, com soluções em que é mais custoso o transporte que a disposição final (mas com o “direito” a emitir GEE por todo o percurso!).
Isto não é lógico, mas é o rumo para o qual a União, e muitos dos Estados, conduzem os municípios. Além de ilógico, será economicamente insustentável na situação que vai se configurar para os municípios no “pós-crise”. Não haverá folga no orçamento público para isso, teremos retrocessos.
A efetiva qualificação da gestão de resíduos urbanos nas cidades brasileiras vai se dar não pela incorporação de processos economicamente insustentáveis, pelos elevados custos de investimento e de operacionalização, e ambientalmente insustentáveis pelas elevadas emissões de GEE que provocam. A efetiva qualificação se dará pelo respeito integral a um princípio que é central na Política Nacional de Resíduos Sólidos – o reconhecimento do resíduo como um “bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania”.
Quer fazendo a disposição final em aterros sanitários, quer ainda se servindo de lixões, os avanços dos municípios só poderão decorrer de uma radical adesão à máxima reciclagem e valorização de resíduos e dos materiais neles contidos – é o caminho lógico, do menor custo, do menor impacto, ativador de cadeias produtivas locais, fazendo a economia circular, propiciando práticas de inclusão social, solidariedade e cidadania. Isto já está posto, mas será ainda mais decisivo no período de profunda crise econômica que está se instaurando.
Alguns aspectos técnicos podem ser ressaltados:
a) A retenção dos resíduos nas proximidades das atividades geradoras, com a autossuficiência dos gestores no seu manejo e tratamento é princípio basilar de países europeus com sucesso na gestão e é plenamente alcançável pelos municípios brasileiros no nosso estágio de conhecimento.
b) Resíduos retidos e valorizados podem gerar dezenas de vezes mais oportunidades de trabalho e renda que resíduos sepultados em aterros e favorecer estabelecimentos locais (no Ceará podendo atingir, em média, 320 estabelecimentos por município, que respondem por 1.200 vínculos empregatícios), e ainda, ampliam a arrecadação pública em tributos, impostos, encargos quando inseridos na economia formal.
c) Se no “pós-crise” os fluxos econômicos serão muito mais facilmente reorganizados a partir do âmbito local, a retenção dos resíduos poderá colaborar fortemente com esta estratégia, ao lado da redução dos custos municipais.
d) A retenção e recuperação dos materiais constituintes dos resíduos propiciam a redução de emissões de GEE, em nível três a cinco vezes maior que a própria emissão do setor. Com isso, os resíduos funcionam como “sumidouro de carbono”, mitigando as emissões de outros setores produtivos.
e) Os gestores públicos deverão estar atentos àqueles cinco grupos de resíduos definidos como de responsabilidade pública: os resíduos secos (embalagens) de origem domiciliar ou assemelhada; os resíduos orgânicos, com mesma origem; os resíduos verdes da manutenção urbana incluso capina e roçada; os resíduos da construção civil oriundos da limpeza corretiva de deposições irregulares e os resíduos volumosos, móveis e utensílios inservíveis.
f) A abordagem dos resíduos orgânicos deve ser privilegiada pela sua predominância na composição dos resíduos gerados e pelo seu alto potencial gerador de gases de efeito estufa; as análises regionais têm mostrado que a produção de composto orgânico com estes resíduos dificilmente demanda o uso de mais do que 5% da área agricultável local, adotando-o como fertilizante.
g) A adoção desta estratégia pelos gestores permitirá, de curto a médio prazo, a redução para 30 % ou até 20 % dos volumes deslocados para disposição em aterros sanitários, já na forma de rejeitos, como exige a lei.
h) Para a efetividade da adoção destes novos processos, os gestores terão que alterar rápida e progressivamente os procedimentos de coleta domiciliar, adotando a coleta em três frações (secos, orgânicos e rejeitos), e os procedimentos de limpeza urbana, com recolhimento seletivo dos resíduos manejados; as coletas, tal como ocorrem hoje na maioria dos municípios, só são adequadas para o despejo indiscriminado dos resíduos em lixões ou para sua perda como bem econômico, gerando impactos ambientais nos aterros.
i) Por fim, como aspecto essencial – a partir do reconhecimento de que grande parte dos problemas urbanos advém da incapacidade de gestão, é essencial a construção de uma capacidade gestora, que só pode ocorrer se atingida uma escala operacional adequada; para isso, se impõe a discussão da gestão associada dos serviços públicos com outros municípios da região, constituindo Consórcios Públicos operadores de ações regionais para garantia da estabilidade e perpetuação da gestão técnica de novos processos, e qualificação da gestão pública.
Soluções para um problema urgente
Trabalhos desenvolvidos nos últimos anos, notadamente no Estado do Ceará, têm proposto aos municípios o direcionamento relatado. A adesão dos técnicos e gestores tem sido maciça, e todo o território do Estado organizou-se para estes avanços, constituindo 16 novos Consórcios Públicos voltados para a Gestão dos Resíduos Urbanos.
Os consórcios são resultantes da adesão dos municípios a uma proposta do Estado, que já está repassando recursos vinculados do ICMS Socioambiental (2% do ICMS total) para implementação da pauta descrita anteriormente. Em dois anos, 120 municípios, quase 70% dos municípios cearenses, aprovaram no legislativo local a adesão aos consórcios regionais, que em média aglutinam 8 municípios para constituição de escala adequada.
Os custos desta estratégia comparativamente aos custos de implantação e de operação estimados para aterros sanitários são significativamente inferiores (Gráfico 2).
E esta estratégia incorpora uma expressiva vantagem ao permitir, em contraste com aterros sanitários que necessitam entre seis a oito anos para iniciar operações, implantação gradativa e imediata, possibilitando que em menos de um ano o município e sua sociedade possam sair da situação de paralisia. O exame detalhado dos custos, no Ceará, tem mostrado que se situam em torno de 1,3% do total das “Receitas Realizadas” pelo município, para um processo de implantação em três anos.
Como já exposto, a resultante da estratégia em redução das emissões antrópicas de GEE é extremamente significativa e este tema não pode mais ser secundarizado pelos gestores públicos na amplitude da crise que está colocada.
Simulações desenvolvidas para as 16 regiões aderentes do Estado do Ceará, por meio de ferramenta de cálculo desenvolvida pelo IPCC, demonstram a adequação da estratégia aos desafios que vêm sendo colocados à sociedade.
As soluções apresentadas são, portanto, bastante atraentes para a situação atual dos municípios brasileiros e, ainda mais, para as situações de penúria que já se apresentam no horizonte durante e após a crise já anunciada.
Emergencialmente, três ações imediatas podem ser formuladas para a superação das dificuldades previsíveis:
I. Formalização da prestação de serviço público por associações ou cooperativas de catadores de materiais recicláveis, exprimindo em contrato remunerado o reconhecimento dos catadores como agentes da limpeza urbana, como forma de ampliação da capacidade de sobrevivência deste setor social (possibilidade de efetivação em 60 dias).
II. Organização de processos de compostagem coletiva de pequeno/médio porte, vinculada ao uso agrícola de terrenos urbanos desocupados, propiciando o auto abastecimento e segurança alimentar de grupos sociais fragilizados pela crise, com possibilidade de geração de renda (possibilidade de efetivação em 90 dias).
III. Formalização, pelos Estados, de programa de apoio aos municípios que se organizem em Consórcios Públicos (aos moldes do Estado do Ceará) e assumam estratégia de valorização de resíduos, garantindo o acesso aos recursos do ICMS, para ampliar a sustentabilidade ambiental das ações municipais e possibilitar adequação dos custos aos orçamentos municipais comprimidos que estão por ocorrer (possibilidade de efetivação em 120 dias).
*Tarcísio de Paula Pinto é urbanista, consultor, mestre e doutor em gestão de Resíduos pela USP e colaborador da Rede BrCidades
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