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domingo, 26 de abril de 2020

A peste agarra uma vítima genial: Renan Antunes de Oliveira

por Ulisses Capozzoli –
Ulisses Capozzoli presta uma homenagem ao jornalista Renan Antunes de Oliveira, que morreu esta semana aos 71 anos, através de uma belíssima história de bastidor do melhor que o jornalismo pode produzir. Boa leitura, Dal Marcondes.
Mais uma vez pelo Face, agora numa postagem de Roberto Lameirinhas, fiquei sabendo da morte de Renan Antunes de Oliveira, um grande repórter, com quem tive contatos esporádicos mas que, ainda assim, me empurrou para uma viagem nas nascentes do Orinoco, o rio em que, em sua terceira viagem, em 1498, Cristóvão Colombo pediu ao papa licença para explorar, acreditando ter chegado ao Paraíso. Renan poderia ter sido o cara em quem Raul Seixas se inspirou para escrever Maluco Beleza: “Enquanto você/Se esforça pra ser/Um sujeito normal/E fazer tudo igual/Eu do meu lado/Aprendendo a ser louco/Um maluco total/Na loucura real…” Eu estava no Estadão, em 1996, e Renan era correspondente frilancer do jornal em Nova York. Ele havia feito uma viagem à Venezuela, com um grupo de jornalistas, quando uma índia ianomâmi se aproximou e perguntou pelos filhos, deixados nos Estados Unidos. Surpreendente, mas apenas o começo de uma história.
Renan Antunes de Oliveira
A ianomâmi, Yarima, pouco mais que uma garota, havia se casado com um antropólogo americano orientando do controvertido Napoléon Chagnon, expulso da Venezuela em um contexto que envolveu, entre um conjunto de outras acusações, orgias regadas a yopa, poderoso alucinógeno que os ianomâmis ingerem em festas especiais. O fato é que ele foi expulso do país em 1993. Eu tinha fotos de Yarima comendo o bolo de casamento com as mãos, como se estivesse em sua aldeia, próxima à nascente do Orinoco, nas profundezas da Amazônia venezuelana. O jornal me mandou atrás dela. Troquei algumas ideias com Renan e pegamos estrada, eu, o fotógrafo Itamar Miranda e o nosso tradutor, o pajé ianomâmi, Davi Kopenawa. Foi uma odisseia, com momentos que pareceram pura irrealidade. E tudo havia começado com um relato de Renan.
Yarima havia retornado à Venezuela para gravar um documentário para a National Geographic, mas tão logo pisou na floresta, desapareceu. Foi dada como morta, por uma razão bem consistente. Uma mulher que se arrisque a deslocar, sozinha, entre uma e outra aldeia ianomâmi, pode ser violentada por adolescentes sem qualquer consequência. Ao perguntar pelos filhos, ela foi imediatamente reconhecida como Yarima, do rumoroso caso do orientando de Chagnon. E estava viva.
Preferi chegar à missão Salesiana, em Puerto Ayacucho, capital da Amazônia venezuelana passando por Caracas e, num movimento em arco, após ter tido a autorização da ordem religiosa, mergulhar num vôo que tive receio mais que justificado de fazer em linha reta. Uma sequência de cenas e ocorrências surreais, até que pudemos voar, numa manhã chuvosa, para a unidade da missão mais próxima da nascente do Orinoco, a Platanal. Não conseguimos. Num buraco providencial nas nuvens, pousamos num campo enlameado junto à boca do rio Ocamo, onde fomos recebidos por freiras que comemoram o pouso de nossa pequena aeronave. No dia seguinte, subimos num barco comercial até o destino inicial, quando um ianomâmi que falava espanhol me relatou que, por ali, viviam duas brasileiras. Por um ato inexplicável, perguntei o nome delas e ele me disse que uma se chamava Helena. Lembrei-me de uma brasileira, Helena Valero, que havia sido sequestrada, em 1932, por ianomâmis às margens do Cassiquiare, braço de rio que une o Orinoco ao Rio Negro, famoso por ter sido explorado por Alexander von Humboldt no início de 1800. Itamar gracejou comigo, dizendo que eu deveria ter usado yopa ou ter enlouquecido. Mas era isso mesmo: Helena Valero estava ali, a poucos metros da boca do Ocamo com o Orinoco. Levantei os dados de Yarima e mudamos a pauta. O assunto era dona Helena Valero, explorada à exaustão por antropólogos de todas as nacionalidades, que arrancaram dela um rico filão de ouro. Quando entrei na casa de palha em que ela vivia, usando a porta, foi por uma questão de delicadeza, porque, ao lado da porta havia um rombo, um buraco muito maior. Dona Helena estava febril e eu mesmo a mediquei com o pouco que tinha: antitérmico e umas caixas de vitamina, além de duas latas de leite condensado (alimentação de emergência na selva e uns pouquíssimos luxos, como um creme para a pele). Dona Helena é a fonte de tudo que se sabe sobre ianomâmis e o encontro com ela, às vezes, me retorna sob a forma de sonho. Ela me descreveu, com detalhes, numa mistura de português, espanhol e ianomâmi, como foi o ataque em que acabou sequestrada da família (o pai, a mãe e um irmão) que viajavam em uma canoa. Mostrou a perfuração, na barriga, onde havia sido atingida por uma flecha guarnecida de curare, o poderoso veneno, retirado dela por pajés ianomâmis. Ele só pode voltar ao Brasil em 1954, num barco madeireiro, mas foi repelida pelos pais e irmãos por ter se casado (à força) com um índio. Então, voltou para a floresta, onde viu a imagem do pai e esta é a frase dela que me retorna em sonho: “eu vi a imagem de meu pai, clarito, clarito e soube que ele havia morrido. O que eu vi, foi o espírito dele”, disse ela de olhos fechados.
Escrevi uma série de reportagens que saíram ao longo de uma semana e consegui com que Chagnon não fosse aceito para um período na Universidade Federal de Roraima que estava programado. E tudo isso havia começado por uma descoberta de Renan. Renan que havia namorado a jornalista e agora cineasta Consuelo Luz (ela me perdoe por essa pequena indiscrição) que, quando conheci, pensei tratar-se da belíssima atriz espanhola Amparo Muñoz (1954-2011), a estrela de “Mamãe faz 100 anos.” Renan leu o material que eu produzi a partir de uma pista dada por ele e comemorou comigo as descobertas que fizemos. Claro que ele gostaria de ter estado em meu lugar. Mas não esteve e me cumprimentou, coisa de que só um grande, mas um grande repórter mesmo, é capaz. Reconhecer que uma grande história havia caído nas mãos de outro e, ainda assim, ser capaz de comemorar com o coração generoso de poucos.
Renan, que sempre teve minha enorme estima e consideração morreu vítima da Covid-19 combinado com uso incorreto de cloroquina. Aos 70 anos, havia sido diagnosticado com a doença no Imperial Hospital de Caridade, em Florianópolis, com sintomas considerados moderados e previsão de que teria alta na quinta-feira, para evitar riscos de contaminação hospitalar. Havia feito um transplante de rim em fevereiro e, no começo do mês, chegado ao hospital em que foi diagnosticado com infecção pulmonar que não seria o coronavírus. Deveria ficar em isolamento por 14 dias. Ao final, se soube que era mais uma vítima da Covid-19.
O jornalismo brasileiro, já combalido, perde um repórter como poucos. O grande Renan Antunes de Oliveira é mais um que faz sua travessia para a margem oposta do rio. Enquanto eu permaneço aqui, observando amigos partirem. Sem um aceno. Um até breve. Ou um nunca mais.
Imagem: Remédios Varo, pintora espanhola (1908-1963)

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