Com o reconhecimento da pandemia da Covid-19 no Brasil, as principais orientações adotadas mundialmente consistem na higienização das mãos com água e sabão, além de permanecer em casa e assim reduzir o risco de aglomerações e contato com pessoas possivelmente infectadas. Isso porque o vírus se propaga pelo contato entre pessoas, e entre pessoas e objetos contaminados. Estas recomendações chamam a atenção com relação à sua escala de ação, o acesso à água e às condições de vida, ou seja, trata-se de uma questão de segurança hídrica.
A principal prevenção ao contágio é individual e relacionada aos nossos corpos. Essa prevenção depende do acesso à água limpa em quantidade adequada nos domicílios e das condições habitacionais que devem permitir distanciamento e não aglomeração de pessoas. Ou seja, as orientações das autoridades assumem que toda a população tem o mesmo acesso à água e à moradia. Porém, essas condições de acesso não são iguais para todas as classes sociais e os problemas se agravam exatamente para os mais vulneráveis.
Pesquisas recentes explicitaram que as populações mais afetadas pela falta ou insuficiência de acesso à água são as de baixa renda – principalmente as com baixa escolaridade e a população negra –, além dos moradores em situação de rua. Nas grandes cidades, esse problema se concentra nas favelas, ocupações, assentamentos populares e aldeias indígenas. Ao mesmo tempo, a Covid-19 escancara que as ações para promover a segurança hídrica não serão efetivas se não alcançarem a escala do indivíduo e dos corpos. Ou seja, não é suficiente garantir água em quantidade e qualidade adequada na escala regional enquanto utilizarmos um sistema de abastecimento desigual e injusto.
Uma crise como essa mostra que o nosso modelo de abastecimento apresenta fragilidades na sua capacidade de garantir água a todos os indivíduos – com domicílio ou sem domicílio –, para quem pode e não pode pagar pelo serviço. E ainda que exista uma alta cobertura da rede de abastecimento de água, como no município de São Paulo que possui cerca de 99,3% (SNIS/2018), mas, com a distribuição irregular, isto torna-se insuficiente para garantir a saúde da população, uma vez que uma doença causada por um vírus se propaga, em maior intensidade, na falta de acesso à água. Aqueles que não têm acesso à água não têm condições de fazer a sua parte e, para eles, lavar as mãos não é uma opção ou um gesto simples.
A Covid-19 nos mostra que o problema de segurança hídrica no país, mais claramente nas regiões altamente urbanizadas e onde há maior concentração populacional, é consequência da expansão desigual da infraestrutura urbana decorrente de estruturas sociais historicamente díspares. Nossos problemas de segurança hídrica não são causados apenas pelos eventos extremos (fortes chuvas e longos períodos de estiagem), mas são principalmente consequência de uma sociedade injusta e desigual, que se omite frente ao fato de que parte dessa sociedade não tem acesso à água de qualidade e em quantidade adequada.
É uma sociedade que naturaliza a desigualdade, que aceita como normal a existência de favelas, ocupações e pessoas vivendo nas ruas, pois “sempre foi assim”. Igualmente, tornou-se normal para alguns ter caixa d’água em casa para garantir o armazenamento da água que chega de forma intermitente nos domicílios, passando despercebidas as variações no abastecimento, enquanto para muitos outros, torna-se cotidiano tomar banho de canequinha. É preciso aproveitar o momento de crise, quando essas injustiças aparecem com mais força, para desnaturalizar e buscar superar tais desigualdades.
A Covid-19 também evidencia os desafios e a magnitude das segregações ambientais urbanas, onde o controle da doença depende da ação coletiva e a desigualdade de acesso à água – seja na casa ou em espaços públicos – impede que tal ação e práticas se concretizem. Também mostra que o acesso universal à água deve ser uma das premissas da segurança hídrica e que, sem a universalização, vive-se sob uma permanente insegurança hídrica, comprometendo um direito humano básico.
Hoje temos a oportunidade de identificar e reconhecer tais problemas nesta “experiência” mundial que é a pandemia da Covid-19. Cabe a nós, como sociedade, aprendermos com esta experiência e não aceitarmos a não-universalização do acesso à água como fato corriqueiro e natural. Esta é uma questão de vida ou morte e, independente da ocorrência ou não de eventos extremos, a universalização do acesso à água é uma necessidade, um direito e uma obrigação do Estado.
*Vanessa Empinotti é engenheira agrônoma, doutora em Geografia, professora da UFABC no bacharelado em Planejamento Territorial e no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território. Rayssa Saidel Cortez é arquiteta e urbanista, doutoranda em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC. Luciana Nicolau Ferrara é arquiteta e urbanista, professora da UFABC no bacharelado em Planejamento Territorial e no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território e coordenadora do Lepur (Laboratório de Estudos e Projetos Urbanos e Regionais). As autoras são colaboradoras do Ondas (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento) e pesquisadoras no grupo de pesquisa eco.t (Ecologia Política, Planejamento e Território) do Labjuta (Laboratório Justiça Territorial/UFABC), escrevem em parceria com o BrCidades.
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