Letícia Tura, diretora da FASE, participou da COP21. Em entrevista, ela analisa os desdobramentos do evento e o acordo climático assinado em Paris. Para a FASE, o documento não é satisfatório
Houve muita comemoração após o anúncio da
conclusão do novo acordo que saiu da Conferência das Nações Unidas sobre
Mudanças Climáticas (COP21),
em Paris, assinado por 195 países. Mas o que isso significa?¹ A FASE
acompanha a COP desde 2008 e, em 2015, Letícia Tura, diretora executiva
da organização, participou do evento. “Para nós não adianta acordar um
aquecimento do planeta [que fique] entre 2°C e 1.5°C se não tivermos a
garantia dos direitos sociais e das populações, se não houver uma
mudança no modelo de desenvolvimento. Não será uma grande vantagem
conseguir esfriar o planeta garantindo as mesmas desigualdades e
injustiças. Acreditamos na justiça ambiental e queremos um meio ambiente saudável para todos”, propõe. Vale lembrar que o único acordo sobre o clima, ainda em vigor, é o Protocolo de Kyoto, que terminaria em 2012, mas foi prorrogado. O acordo de Paris entra em vigência em 2020.
A COP 21, uma das maiores realizadas até
hoje – em número de participantes, espaço físico e atividades oficiais e
não oficiais –, fechou um ciclo, aberto desde a COP 15. Letícia explica
que na COP 20, em Lima,
já havia sido feito um rascunho do acordo e que, ao chegar a Paris,
todos percebiam que não haveria dificuldade de aprovação. No caso, o
documento apontaria como meta o aquecimento do planeta entre 2°C e
1,5°C. “Atualmente, a temperatura aumentou em 0,85°C. Só que há uma
previsão de que se continuarmos emitindo gases de efeito estufa do jeito
que estamos fazendo, vamos aumentar a temperatura do planeta em 3.7°C .
Isso seria catastrófico. Chegar ao final do século tendo aumentado
1.5°C significa que os países vão fazer compromissos de quanto de gás
carbônico eles irão emitir na atmosfera por ano”.
Letícia ressalta que a “COP do Clima é uma
grande COP sobre o desenvolvimento”, mas que desenvolvimento que se quer
para o planeta? Que desenvolvimento a Terra pode suportar? “O
desenvolvimento está ligado à economia. Que país está disposto a
desacelerar a sua economia? Temos uma grande discussão sobre as
responsabilidades, esse é o grande debate entre países do norte e do
sul. Se discute que os países do norte [global] fundamentalmente são os
principais responsáveis, porque emitiram mais gases de efeito estufa na
atmosfera desde a revolução industrial e tem países que emitiram muito
pouco e sofrem grandes consequências. Existem ainda os países que
começaram a emitir agora. Então, você tem uma grande discussão nesses
blocos de países, que é uma discussão norte versus sul
[global], mas tem, ainda, diferenças tanto dentro do norte quanto no
sul. E, em última instância, são disputas geopolíticas, disputas de
poder, quem é que vai querer ceder?”, questiona Letícia.
COP como uma feira de negócios
Segundo a diretora da FASE, não é possível
tratar a questão ambiental apenas do ponto de vista das emissões dos
gases. Letícia chama atenção para duas questões: o uso do solo
e o ser humano. “Você não pode tirar do meio ambiente o ser humano. Um
dos problemas do acordo do clima é que ele é muito centrado na questão
da emissão de gases e é focado neste elemento porque pode gerar
recursos, dinheiro. Então, na verdade, a COP do clima, além de ser uma
COP sobre desenvolvimento, é uma grande feira de negócios”, critica. Ela
chama atenção para o que vai estar em disputa no próximo período e como
essa redução dos gases de efeito estufa será feita. “Quais serão os
sujeitos e atores dessa redução? Qual será o modelo de desenvolvimento?
Quem são os beneficiados e os promotores dessa redução? São muitas
perguntas ainda sem resposta. O que se tem de discussão sobre acordo é
como conseguir chegar a uma temperatura entre 2°C e 1.5°C mantendo o
atual sistema de produção e de consumo. [Assim], se mantêm as mesmas
relações de poder, as mesmas divisões de classe”, pondera.
Ao ler o detalhamento do acordo, Letícia alerta para as falsas soluções.
“Tudo continua baseado em grandes conglomerados econômicos e
desigualdades. Precisamos de soluções reais, em que se discuta a mudança
do atual padrão de produção e de consumo com outros atores à frente
desse processo. É preciso uma mudança de hegemonia e que sejam
estabelecidas relações econômicas e sociais menos assimétricas, mais horizontais”, sugere.
Todas as atividades paralelas à COP 21,
além de criticar todo o processo, demonstraram as “verdadeiras soluções”
para o aquecimento global, o que joga luz no trabalho que vem sendo
feito nos territórios por populações indígenas, famílias agricultoras,
pescadores, movimentos e organizações da sociedade civil. “Na INDC
[Contribuições Intencionais Nacionalmente Determinadas] apresentada
pelo Brasil constava a questão da agricultura, das usinas hidrelétricas,
dos biocombustíveis, da agricultura de baixo carbono, a questão do REDD+, e mesmo assim nós vimos várias lacunas. Não se falou nada sobre o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) ou sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Nós questionamos e ouvimos como justificativa que ‘quem de fato desmata
são os grandes produtores, então é para eles que o documento deve estar
voltado’. Mas por que não fortalecer esses que já fazem a diferente, que é a maioria da população rural e que está sendo expulsa do campo?”, pergunta Letícia.
Natureza como moeda
Questões como o mercado de carbono e a financierização da natureza
têm aumentado. “A cada ano se amplia o comércio do clima dentro da COP
ou a partir de acordos e discussões que são gerados no evento. Cada vez
mais temos a presença do setor privado. Por outro lado, e isso foi muito
forte em Paris, crescem as críticas às denúncias das ‘falsas soluções’ e
a de que a compensação ambiental não é uma solução”, ressalta.
Outros assuntos ainda são pouco divulgados e
encaminhados nas COPs para além do quanto será aquecido o planeta e
quanto cada país irá emitir gás carbônico. Mas o que ainda deve ser
discutido é o financiamento, quem terá a obrigação de pagar por essa
redução de emissão de gases? A COP 21 definiu que os primeiros a colocar
dinheiro no fundo do clima serão os países ditos “desenvolvidos”. Em
seguida, os países considerados “em desenvolvimento”. Ainda há a
discussão do fortalecimento da participação do setor privado via financiamento. “Temas sobre o mercado de carbono, a transparência na forma do cálculo e a transferência de tecnologia
foram muito batidos durante o evento, inclusive pelo governo
brasileiro. As novas tecnologias são as novas formas de dependência e os
países do norte [global] detém muita dessas tecnologias. A Alemanha,
por exemplo, tem um grande poder na área de tecnologia de energias
renováveis”.
Os direitos trabalhistas, sociais,
territoriais, humanos, relativos à alimentação saudável, à água e à
especulação [de terras] indígena aparecem de “forma muito sutil” no
acordo. Toda questão humana fica em segundo plano, segundo Letícia. O
argumento é que “esse tema não se refere ao acordo do clima, e sim a
outros tratados da ONU. Os refugiados climáticos ficam em terceiro
plano”, diz.
Grupo Carta de Belém
Letícia destaca o crescimento e a participação do Grupo Carta de Belém (GCB) nas
COPs. Essa é a aposta da FASE como sujeito político. O GCB surgiu em
2009, na COP 15, num momento em que se iniciava o debate sobre o acordo
climático, somente agora definido. “Nós fizemos um movimento forte de
denúncia e contraposição ao discurso da mercantilização e da
financeirização da natureza. Queríamos mostrar uma voz dissonante do
Brasil sobre isso”, explica Letícia.
A FASE não participa das COPs desassociada
do GCB. “A nossa metodologia é fortalecer sujeitos coletivos. Avaliamos
que a participação na COP 21 foi um muito boa para o Grupo, produzimos vários informes,
investimos de fato para que fossem levadas a Paris diferentes visões.
Fortalecemos os movimentos sociais para que eles também invistam nisso”,
concluiu.
[1] Entrevista com balanço da COP 21 concedida à Rosilene Miliotti e editada por Gilka Resende (jornalistas da FASE).
Fonte: FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e EducacionalColaboração de Gilka Resende, in EcoDebate, 02/02/2016
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