O TCU tenta salvar o que ainda resta do IBAMA, artigo de Roberta Graf
[EcoDebate] 1) Após 08 anos de trabalho dentro do IBAMA (como servidora efetiva concursada) e 19 anos de trabalho na área ambiental, é bizarro o que eu assisto, hoje. O TCU, por meio do Acórdão n. 605 de 16 / 03 / 2011, é o grande responsável por, nestes dias, às pressas, estar sendo elaborado o primeiro Planejamento do IBAMA nestes anos todos, bem como seu Regimento Interno (desatualizado desde 2002, e que precisaria ter sido reformulado, há quase 04 anos atrás, segundo ordena o Dec. n. 6.099 de 26 / 04 / 2007, que dividiu o IBAMA ao meio com a criação do ICMBio).
Bizarro, incrível, alarmante, inaceitável. Uma instituição do porte e responsabilidade do IBAMA, que simplesmente é o principal executor de toda a Política Ambiental Brasileira na esfera federal, precise de um “puxão de orelha” do TCU, ou seja, do Poder Judiciário, para fazer suas competências básicas. Para quem tiver tempo de dar uma olhada no referido Acórdão, ele é muito bom, e explicita a enormidade das deficiências do IBAMA, a começar, é claro, pela própria ausência qualquer de Planejamento, diretrizes, objetivos, avaliação. O Acórdão bate muito nesta tecla, criticando a instituição, pois não há como ter boa gestão sem um planejamento, e explicita o fato de que, aliás,os(as) servidores(as) não têm tido nenhum acesso à participação nas decisões da presidência e diretorias. Verdade !! As decisões dentro do IBAMA são altamente centralizadas, não são transparentes nem participativas. Quanto ao Planejamento, aqui internamente no Acre, fizemos alguns, por iniciativa dos próprios servidores. Eles eram anualmente, sumariamente, solenemente – engavetados !! Já estivemos também bastante debruçados sobre a reformulação de Regimento Interno / Estrutura Organizacional do IBAMA, tanto geral quanto em âmbito estadual, e, da mesma forma, não deu em nada. Horas de trabalho jogadas fora.
Este Acórdão, para nós servidores do IBAMA, cai como uma luva, pois ele descreve quase ipsis literis o conjunto das nossas reivindicações, através principalmente das Asibamas (associações de servidores do IBAMA e ICMBio), há anos. Reivindicações estas nunca atendidas. Por exemplo, ele aponta a enorme carência de servidores.
2) A falta de pessoal aqui é o gargalo, é um absurdo. Tivemos os concursos, mas o ICMBio levou cerca de um terço dos nossos servidores, diga-se de passagem: os mais qualificados. Boa parte saiu mesmo do IBAMA (pediu exoneração), pois nosso salário é extremamente baixo quando comparado à responsabilidade, aos cargos semelhantes e ao conjunto de cargos do Executivo Federal. E outra boa parte está se aposentando em breve. Também nunca houve concurso para cargos administrativos, e, por exemplo, nós aqui “carregamos um piano” razoável fazendo licitações e dispensas, compras, pesquisas de preço, etc, na verdade, quase toda a execução financeira – ou é assim, ou o trabalho não acontece. Que aliás possui um tanto de entraves burocráticos intransponíveis, por exemplo, as empresas do Acre, sequer da capital Rio Branco (que dirá dos interiores, onde nós realmente precisamos atuar), não se enquadram em todas as exigências do Governo Federal. E não podemos pagar associações sem fins lucrativos. Também foi-nos proibido (curiosamente, por este mesmo TCU !!) a utilização da rubrica “fornecimento de alimentação”, oras, como pude alimentar os 495 agentes ambientais voluntários que formamos em 14 cursos de uma semana cada, promovidos e executados pelo IBAMA / Acre ?? Ficamos sempre em terríveis “sinucas de bico”. Os burocratas precisam aprender que nós trabalhamos também com pessoas, por exemplo financiando cursos e assembleias, e em condições de carência socioeconômica e informalidade generalizada. Dificultar os desvios de recursos (corrupção) é uma coisa (a qual, aliás, consegue driblar qualquer entrave burocrático), mas dificultar o trabalho necessário mesmo, é bem diferente.
Ainda quanto à política de recursos humanos no IBAMA, é preciso dizer que há muita pendência e enormes problemas. Dos concursados que entraram no Acre, por exemplo, uns 75% foram embora do estado !! Sim, pois o IBAMA / Acre, como em outros locais, funciona como mero trampolim de concurso menos concorrido, em que os paulistas e cariocas entram e conseguem rápido sua transferência, burlando todas as regras. Precisamos de mais concursos, clareza e retidão nas regras de transferência, e os merecidos e indispensáveis adicionais de insalubridade, periculosidade (para os fiscais que se arriscam mesmo no meio da mata, à noite, sob chuva, em canoas que quebram ou afundam, enfrentando pistoleiros, etc), qualificação (eu, doutora, recebo o mesmíssimo salário dos graduados) e interiorização, a exemplo de tantas carreiras do Executivo Federal. E aumento de salário – sim senhor, Guido Mantega !! Faz anos que fazemos greves e várias reivindicações a respeito, sem êxito; o Ministro do Planejamento sequer nos recebe para o diálogo. Aqui a bagunça no setor de recursos humanos é tamanha que nunca conseguimos, sequer, o pagamento de horas-extras trabalhadas, e são muitas, pois nosso trabalho é de campo, em fiscalização ou educação ambiental comunitária rural / florestal, e para isso precisamos trabalhar sim, e muito, em fins-de-semana, feriados e noites.
Seguindo na leitura do Acórdão, encontramos quatro outros fatores básicos de crise no IBAMA, além dos dois já citados:
3) O IBAMA foi criado em 1989 a partir da junção de 04 instituições federais preexistentes: SEMA, IBDF, SUDHEVEA e SUDEPE. Sendo apenas as duas primeiras (ao contrário da interpretação do TCU, que disse ser apenas a SEMA) voltadas à defesa do meio ambiente. As outras duas eram de cunho econômico, produtivo. Pois bem, até hoje, por isso, o IBAMA sofre de “falta de identidade institucional” (conforme o Acórdão) e contradições intrínsecas nos rumos das diretorias.
4) Mas bem, apesar dos problemas estruturais desde a fundação, o IBAMA foi se desenvolvendo no meio de “um mundo” de atribuições, sendo inclusive 04 anos mais antigo do que o MMA, que manda no IBAMA: o filho pariu a mãe !! E se desenvolveu muito bem, com servidores, setores, centros de pesquisa, altamente qualificados nas áreas socioambientais e ecológicas. Tanto que sentimos, até hoje, uma certa “inveja” do MMA, que se intromete nas nossas ações, repetindo esforços, se sobrepondo sem conhecimento de causa (segundo o TCU: “há conflitos entre o MMA e o IBAMA, com uma inversão de papéis, duplicidade de esforços e choque de atribuições”, citando alguns exemplos).
Embora o MMA seja para elaborar as políticas, “mandar”, e o IBAMA executar, “obedecer”, não é isso que acontece, pois o MMA também executa. Eu mesma testemunhei por diversas vezes os servidores do MMA, que trabalham na “ilha da fantasia” Brasília, “caírem de paraquedas” aqui no Acre, de última hora, executando políticas das quais nós nem sabíamos. Vão embora, e depois somos nós que ficamos ouvindo as críticas da sociedade. E, segundo o TCU, o MMA não conversa com o IBAMA, não inclui o IBAMA (nem sequer suas chefias) na elaboração de políticas, programas, instruções normativas. Elas são baixadas ditatorialmente, e quem as executa, “engolindo sapo”, somos nós.
5) Foi por causa também de uma certa “raiva” histórica que Marina Silva tinha do IBAMA (seus colegas acreanos de juventude nos contam isto) que ela, enquanto ministra, promoveu e permitiuo maior sucateamento do IBAMA jamais visto: sua divisão ao meio, criando o ICMBio, que retirou de nós atribuições, servidores (nossa grande perda), imóveis, equipamentos e recursos financeiros. Quando anunciada, foi de surpresa e totalmente de cima pra baixo, na ditadura. De pronto, o conjunto dos servidores e diversas ONGs ambientalistas foram radicalmente contra: a questão ambiental é holística, e quanto mais fragmentar, pior. Fizemos uma greve de mais de 03 meses por isto, mas fomos atropelados. (Aliás, nossas greves são sempre lutando para favorecer a instituição IBAMA / condições de trabalho, pois os presidentes biônicos não se importam com o IBAMA, mas o servidores da Casa, sim.)
Nesta divisão do IBAMA ao meio, atabalhoada até hoje, houve intenso enfraquecimento do IBAMA, como o TCU também aponta. E o ICMBio… já nasceu fraco, num Governo Federal que pouco se importa, na prática, com a Política Ambiental. Aqui no Acre, repleto de unidades de conservação, áreas de rica biodiversidade e populações tradicionais, não há sequer uma sede do ICMBio; a mais próxima fica a 500 km, em Porto Velho, RO. Uma das coisas bizarras que aconteceu com a criação do ICMBio foi a extinção forçada, sem nenhuma explicação, da Educação Ambiental dentro do IBAMA, a qual aliás também não foi incluída no organograma do ICMBio. Dentro da esquizofrenia da divisão, nossas atividades foram muito afetadas, porque até então nossa prioridade máxima em todos os programas eram as unidades de conservação federais, e, de repente, não podíamos mais atuar nelas !! Os importantes centros de pesquisa, que subsidiam todas as nossas ações, também foram passados pro ICMBio.
6) O IBAMA, até o período analisado pelo TCU, tinha tido 17 presidentes (hoje são mais, 18 ou 19). Eles não ficam muito tempo. Primeiro, porque geralmente são biônicos, ou seja, nomeados políticos com comprometimento político-partidário e pouco ou nenhum comprometimento / conhecimento da área ambiental. Segundo, porque não aguentam a enorme pressão do próprio Governo Federal e dos mega empreendedores em acelerar e simplificar o licenciamento ambiental (por exemplo das UHEs do Rio Madeira e de Belo Monte, da transposição do Rio São Francisco, das grandes BRs, etc).
Neste cenário desmontado, os servidores do TCU vão tecendo comentários no referido Acórdão, acerca da ineficiência do IBAMA em temas como o Cadastro Técnico Federal, o controle dos agrotóxicos, de substâncias perigosas, de OGMs, a gestão florestal, a proteção de espécies da flora e da fauna ameaçadas de extinção, o Relatório Anual de Qualidade Ambiental (que não vem sendo elaborado), etc.
Neste assunto de gestão florestal, bem como no licenciamento, há enorme ou total terceirização de atribuições aos OEMAs. Boa parte por cumprimento mesmo da legislação e dos princípios do Pacto Federativo, de descentralização de ações e articulação de órgãos das três esferas nas competências comuns, como a defesa do meio ambiente. Em que pese as indefinições legais concretas, por exemplo com a não-regulamentação, até o momento, do Art. 23 da Constituição, há, sim, muita ineficiência e desvios político-partidários na atuação dos OEMAs, apontados também pelo TCU. A maior parte destes órgãos não possui sequer servidores concursados, tampouco capacidade técnica para assumir o que lhe foi repassado. O TCU critica o IBAMA por repassar atribuições aos OEMAs e não fiscalizar e acompanhar sua atuação, o que é um dos nossos deveres – e não só esperar que o Ministério Público se manifeste a respeito. Há anos nós servidores dizemos isto, em vão.
Além da terceirização pros OEMAs e da nossa fragmentação com a criação do ICMBio, há também numerosas sobreposições e absorções de atribuições nossas pelo Ministério da Pesca e Aqüicultura (MPA), pela ANA, e pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB) (também criação polêmica de Marina Silva). Rumores nos corredores de Brasília já apontam, inclusive, para mais problemas com a passagem da gestão florestal por completo ao SFB, bem como da gestão completa de florestas nacionais, reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável ao SFB – o que será um verdadeiro desastre socioambiental, transformando as reservas em áreas de produção madeireira e ex-seringueiros / extrativistas em peões de madeireira, com destino futuro às periferias das cidades, e destino das áreas, é claro, à pecuária e à soja, como sempre vem acontecendo. Ou seja, corremos grave risco de desvirtuação completa das unidades de conservação de uso sustentável.
Na questão pesqueira o assunto é grave, pois o MPA é voltado basicamente à produção, e não à gestão ambiental, e esta vem sendo esvaziada sumariamente do IBAMA pelo próprio MPA, ou seja, a tendência é que a gestão ambiental dos recursos pesqueiros não vai ficar em nenhum órgão federal… O Acórdão do TCU concorda a este respeito, e inclusive cita um caso em que o MPF / RS precisou intervir, já que o MPA havia revogado uma importante IN de controle da pesca da tainha. Aqui no Acre, quando tentamos coibir a intensa predação que ocorre nas cidades, em que se pesca quase 100% das piracemas que precisam subir os rios (inclusive se estragando toneladas de peixe), o MPA também revogou nossa Portaria, ou seja, facilitou o crime ambiental.
Como se não bastasse todo este desmonte do IBAMA, a Presidente Dilma Roussef promoveu o golpe de misericórdia através do Dec. n. 7.446 de 01 / 03 / 2011, que reduz quase pela metade o orçamento de instituições de trabalhos de campo, como o IBAMA, FUNAI, INCRA, Polícia Federal (sim !!), etc. Estamos aqui praticamente de “chuteiras penduradas” por causa disso. Qualquer “atividadezinha-feijão-com-arroz” que precisemos fazer, agora, está sujeita à aprovação do Presidente do IBAMA (!!). Nosso Presidente, recém-empossado, diante dos recursos financeiros super escassos, ameaçou fechar todos (ou quase todos – o assunto ainda está em aberto) os nossos escritórios no interior (!!). São nada menos do que 129 escritórios hoje, que atendem a importantes serviços e denúncias diretas das populações isoladas.
Neste cenário, o IBAMA cada vez mais está terceirizando suas atribuições às esferas estaduais (OEMAs), ficando restrito ao licenciamento (só o de âmbito federal, lembremos) e fiscalização – só de certas prioridades como flora amazônica, pois outros itens importantíssimos, como fiscalização da caça, do tráfico de animais silvestres, da pesca predatória, da biopirataria, das atividades poluidoras e das condicionantes dos licenciamentos ficam quase que completamente esquecidos, como também aponta o TCU. Cada vez mais estamos agindo menos e com menos qualidade: por falta de dinheiro e por falta de pessoal.
Finalizando, eu gostaria de associar estes problemas de desmonte do IBAMA aos demais na área ambiental brasileira, em que o Governo Federal está se mostrando extremamente ruim, ao querer fazer aprovar, a todo o custo, as UHEs (de trabalho escravo) do Rio Madeira, a UHE de Belo Monte, a BR-319 que liga Manaus a Porto Velho, as usinas nucleares, entre outras mega-obras, a flexibilização e desmonte da legislação do licenciamento ambiental. Ainda, corremos um risco real e gravíssimo de desmonte do Código Florestal, a principal lei ambiental do nosso país, um país que vê seus rios realmente secando por falta de mata ciliar, e mudanças climáticas que culminam nos desastres sucessivos e nas secas na Amazônia – lócus da maior bacia hidrográfica do mundo !! Os grandes pecuaristas, produtores do agronegócio + fábricas de agrotóxicos, adubos e sementes, que exportam nossa madeira, soja, milho, algodão e carne bovina a preço de banana, e nos deixam envenenados, cercados de OGMs, e com terra degradada, seca e contaminada, água envenenada, têm enorme poder e benesses creditícias e tributárias do Governo, e possuem a maior bancada de deputados e senadores. Nós, nossa Política Ambiental e nossa saúde, estamos na mão deles. Aliás, como vem sendo bastante noticiado, a questão dos agrotóxicos está uma verdadeira calamidade no Brasil, o maior consumidor mundial dos mesmos.
Salve-se quem puder nestes tristes trópicos. Agradeço pessoalmente ao TCU, e ao Ministério Público, os únicos órgãos públicos que conseguem fazer valer, em parte, as leis ambientais, que vêm tentando salvar o que ainda resta da nossa biodiversidade, da nossa qualidade e resiliência ambiental frente às mudanças climáticas. E eu sigo trabalhando no firme propósito de fortalecer nossa Política Ambiental, e em particular, fortalecer o nosso querido, essencial e mal-tratado IBAMA.
Lista de Siglas
ANA: Agência Nacional de Águas
EMBRAPA: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FUNAI: Fundação Nacional do Índio
IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBDF: Instituto Brasileiro de Defesa Florestal
ICMBio: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
IN: instrução normativa
INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MMA: Ministério do Meio Ambiente
MPA: Ministério da Pesca e Aqüicultura
MPF: Ministério Público Federal
OEMA: órgão estadual de meio ambiente
OGM: organismo geneticamente modificado
ONG: organização não-governamental
RO: Rondônia
RS: Rio Grande do Sul
SEMA: Secretaria Especial do Meio Ambiente (Federal, ligada, na época, ao Ministério do Interior)
SFB: Serviço Florestal Brasileiro
SUDEPE: Superintendência do Desenvolvimento da Pesca
SUDHEVEA: Superintendência da Borracha
TCU: Tribunal de Contas da União
UHE: usina hidro-elétrica
Roberta Graf é doutora em Gestão e Política Ambiental pela Unicamp e servidora do IBAMA / Acre, coordenadora estadual do Programa de Agentes Ambientais Voluntários e técnica do licenciamento ambiental, roberta.graf{at}gmail.com .
EcoDebate, 18/04/2011
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