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segunda-feira, 30 de julho de 2012

Energia: descentralizar, democratizar e empoderar o cidadão. Entrevista com Brent Millikan


energia eólica

A resistência a projetos de energia impactantes, como as grandes hidrelétricas, tem crescido e tomado dimensões internacionais. Durante a Cúpula dos Povos, evento realizado paralelamente à Rio+20, no mês de junho, a energia foi um dos temas mais debatidos. Nesta entrevista realizada durante o evento, o diretor do programa Amazônia da Organização International Rivers (Rios Internacionais), Brent Millikan, fala sobre os pontos comuns entre os projetos energéticos dos países, que, na maioria das vezes, tem desrespeitado os direitos humanos. Brent fala também sobre as soluções nessa área, que, ao contrário do que os governantes costumam dizer, são reais e podem ser implementadas.
* Vimos aqui na Cúpula dos Povos que a construção de mega usinas hidrelétricas não é uma realidade apenas do Brasil. Foram relatados casos no nosso vizinho Peru e também nos Estados Unidos e em vários rios da Mesopotâmia, no Oriente Médio. Que coincidências esses projetos apresentam?
O processo de licenciamento dos projetos está muito parecido, principalmente os atropelos que acontecem porque não há discussão pública. Além disso, os rios não estão sendo tratados como bens públicos, da sociedade como um todo ou até bens do planeta, que fazem parte de um ecossistema ou biosfera que não conhece as divisas de países. O problema principal é a confusão entre o que é interesse público e privado. O que percebemos é que os governos se alinham a grandes empresas construtoras de barragens e deixam de atuar sob uma ótica de interesse público. As próprias estatais como a Eletrobrás, no caso brasileiro, fazem parcerias com empresas como a Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, OAS, que constroem as barragens. Esse conflito de interesses é algo que compromete o papel de estado, de cuidar do interesse público. Por exemplo, os empreendedores fazem os estudos de impacto ambiental e o seu interesse é minimizar, subdimensionar e mesmo ocultar os impactos sociais e ambientais, com a ideia de que quanto mais se consegue fazer nesses estudos para ocultar os impactos, menos terá que pagar em termos de mitigação e compensação.
* Belo Monte é um caso emblemático disso?
No caso de Belo Monte, se levassem a sério os custos sociais, ambientais e econômicos reais, se chegaria à conclusão de que é uma energia caríssima para o bolso do contribuinte brasileiro e que de nenhuma forma se pode considerar que é uma energia limpa, seja pela devastação de territórios, seja pelas desapropriações e deslocamento das populações que dependem dessas áreas para suas vidas, suas culturas estão enraizadas lá, seus mortos estão enterrados lá, esses danos nunca serão reparados. Existe uma série de impactos ambientais e sociais subdimensionados que atingem populações diversas, como indígenas, ribeirinhos, agricultores, populações urbanas, que vão viver ao lado de um lago morto, com todos os problemas, por exemplo, de saúde pública, como acontece com Tucuruí e outros impactos. O Felício Pontes [procurador federal do MPF do Pará] falou aqui da questão da biodiversidade, da destruição do potencial de diversidade biológica, inclusive para a biotecnologia. Hoje em dia nós conhecemos uma pequena fração, talvez 5% desse potencial, estamos destruindo espécies que vivem só nesses ambientes aquáticos de rios, que a gente nunca vai saber o que está perdendo. Estamos destruindo um patrimônio que as gerações futuras nunca vão poder usufruir, inclusive dos benefícios econômicos.
* Os vícios do processo de licenciamento começam então na fase dos estudos de impacto. E depois?
Depois desses estudos mal feitos há uma pressão enorme para aprová-los e construir as barragens. Tipicamente acontece de os tecnicos do Ibama e da Funai apontarem falhas dizendo que os estudos não estudaram direito, não equacionaram os problemas, mas sempre há uma pressão porque tem que aprovar rápido, porque tem um cronograma e terá que leiloar para construir a barragem. Há uma quase-ditadura do setor elétrico que está se impondo sobre o restante do governo, e esse setor elétrico está aliado a mega empresas que não estão operando dentro do interesse público e são as grandes financiadoras de campanhas políticas. Há um apadrinhamento político entre os grupos, por exemplo, o grupo Sarney, que controla o Ministério de Minas de Energia e apadrinha empresas do setor elétrico. Somado a esse problema há aparelhos estatais que tem gente com uma cabeça formada no século passado e não muda, continua achando que só construindo barragens é que se faz uma política para o setor elétrico. Ontem [18/06] lançamos uma publicação sobre políticas públicas para o setor elétrico e discutimos uma série de alternativas de eficiência energética. Falamos sobre a necessidade de repensar a energia para quê e para quem, de discutir sobre fontes de geração como a solar e a eólica. Ao contrário do que a presidente Dilma disse. que aproveitar fontes de energia como essas é um sonho, se colocou tecnicamente as enormes oportunidades que o país tem, inclusive de geração de emprego, de renda, de desenvolvimento nessa área. O país não está aproveitando essas oportunidades, porque a política pública, que deixou de ser pública, está refém do interesse de uma meia dúzia de empresas, que está junto com o interesse de grupos políticos. A política do setor elétrico é uma caixa preta e a sociedade precisa abrir essa caixa preta, tem que ser política pública à serviço da sociedade e não de uma minoria.
* Vocês disseram que a energia proveniente dessas grandes hidrelétricas não pode ser considerada limpa. Mas quais são então as energias limpas e que critérios devem ser tomados em conta numa política energética?
A primeira coisa que precisamos pensar é em eficiência. Para ser limpa mesmo a energia não pode ser desperdiçada, e hoje se desperdiça muita energia no nível da produção, das grandes linhas de transmissão, e também do consumo, seja industrial, residencial ou comercial. Só o Brasil tem uma perda em torno de 20% da energia apenas nas linhas de transmissão, e essas mega hidrelétricas contribuem para isso. Por exemplo, você vai construir as hidrelétricas no Rio Madeira há 2,5 mil quilômetros de Araraquara, em São Paulo, para onde vai a energia, o desperdício é enorme. Então, a geração de energia precisa ser descentralizada, mais próxima da demanda para não ter essas perdas. Outro aspecto é o empoderamento das pessoas, inclusive para serem geradoras de energia, em nível comunitário, de conjunto habitacional. Em muitos países já existem sistemas assim, inteligentes em termos de diminuir desperdício, e das próprias pessoas poderem contribuir, gerar energia e, inclusive, venderem energia. Então, as ideias são descentralizar, democratizar, empoderar o cidadão e assim pensar em soluções mais adequadas para cada realidade.
Ontem o Secretário de Planejamento Energético, Altino Ventura, afirmou que a energia eólica custava R$ 200 por megawatt/hora, mas que já baixou para R$ 120 megawats/hora; então, está competindo com as hidrelétricas. A solar custa em torno de R$ 300 por megawatt/hora, mas se observarmos todos os custos, a solar não tem o custo de transmissão, por exemplo, então já é mais barata. Se considerarmos também a evolução tecnológica, como aconteceu com a eólica, sem muito incentivo do governo, foi mais uma dinâmica internacional do mercado global, veremos que está baixando o preço da energia solar também. O problema é que não há incentivo, não há políticas públicas de investimento em tecnologia, para empreendedores brasileiros gerarem empregos, renda e inovação tecnológica aqui. A tendência é importar equipamentos lá de fora, placas solares da China por exemplo, equipamentos eólicos construídos principalmente por multinacionais. Na Alemanha, na Califórnia, em outros lugares, a produção já ganhou escala e os preços já baixaram. Durante muito tempo se falou que não era possível e está-se mostrando que é possível; o problema é que o governo não quer incentivar porque isso significa perda para aqueles grupos que estão sendo beneficiados pela indústria de barragens que hoje dominam a política energética. Mas como já disse, se considerarmos todos os custos sociais e ambientais das barragens, como a interrupção dos peixes migratórios, a mudança da qualidade de água, os impactos nas populações rurais e urbanas, a conta de R$ 80 por megawatt/hora seria muitas vezes maior e essas outras fontes que têm menos impacto seriam muito mais competitivas, ainda mais se tiver uma política pública que as incentive. Não existe nenhuma bala de prata, nenhuma tecnologia que seja automaticamente livre de problemas, mesmo as energia solar e eólica podem contribuir para problemas de conflitos sobre o uso do território e outros impactos socioambientais; por isso, a política energética é algo que tem ser planejada com as comunidades locais, respeitando os seus territórios e seus modos de vida para trazer benefícios e não danos.
* As populações atingidas pelos grandes empreendimentos energéticos, sobretudo as hidrelétricas, tem se organizado e realizado inúmeras ações de protesto e resistência contra esse modelo. Essas populações têm sido ouvidas pelo governo federal?
O governo não quer ouvir, as populações tem feito tudo para serem ouvidas e tem sido sistematicamente desconsideradas. O próprio Cacique Raoni [liderança indígena], que esteve aqui hoje, tentou falar com Dilma várias vezes e ela se recusa a falar com ele. Eu estive em uma comitiva que ele liderou em fevereiro de 2010, logo depois que ela tomou posse e ela se recusou a recebê-lo. Isso já aconteceu várias vezes e é só um símbolo de muitos exemplos de tentativas de diálogo. Quando tem reunião, é para informar o que será feito, não é para dialogar, ouvir e levar as preocupações e propostas das comunidades indígenas e outras populações locais ameaçadas. Por isso que hoje muitas pessoas comentam que no aspecto da indústria de barragens que predomina no setor elétrico vivemos uma situação autoritária, que chega a parecer uma ditadura.
Felizmente, há muitos aliados dos movimentos locais, grupos e indivíduos da sociedade civil que têm se manifestado contra Belo Monte, que é um caso emblemático no Brasil; mas há muitos outros casos alaramentes, como nos rios Tapajós, Teles Pires e Madeira. Está faltando informar mais a população, porque o governo investe pesadíssimo em publicidade; basta ver os monitores dos aeroportos com mensagens enganosas. Dizem que Belo Monte não alagará terra indígena, mas não dizem que vão desviar o rio Xingu e as populações indígenas vão ficar sem rio, não dizem que 80% do fluxo do rio será desviado. Então, a população é bombardeada o tempo todo com a propaganda que diz: “é energia limpa e barata que não terá impacto, é essencial para o desenvolvimento do país, e se não fizermos essas barragens teremos apagão”; ou seja, uma série de informações distorcidas, para não dizer mentirosas. E o que é difícil é quando a imprensa não colabora e não cumpre com o seu papel. Há muitos veículos da grande imprensa que simplesmente repassam as informações distorcidas que o governo quer transmitir para a população, para que ela não entenda os reais impactos dessas obras. Assim, a população não percebe que o seu dinheiro poderia ser empregado de uma forma completamente diferente, que não traria toda essa violação de direitos humanos e não implicaria em obras faraônicas e devastadoras, com grande perda de dinheiro público. A mídia tem tido um papel ambíguo, mas em geral tem realizado matérias tendenciosas e superficiais. O que ajuda são as mídias alternativas e as redes sociais, o próprio movimento Xingu Vivo tem um site [www.xinguvivo.org.br], twitter, facebook, iniciativas como o movimento Gota D’Agua são importantes [projeto alavancado por artistas e ativistas que se dedicam a disseminação de informações sobre os mega projetos de geração de energia na Amazônia, especialmente Belo Monte]. Justamente por ter essa repercussão na sociedade é que os artistas do Gota D’Agua foram bombardeados pelo grupo Veja [a revista publicou uma reportagem de capa taxando os artistas envolvidos no movimento de ‘ecochatos'].

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FONTE : Entrevista concedida à Raquel Júnia, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), publicada pelo EcoDebate, 30/07/2012

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