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segunda-feira, 3 de outubro de 2022
A desqualificação da ‘diversidade’ na força de trabalho (Amyra El Khalili entrevista Toni Grangeiro)
A compensação da escassez de emprego pela fartura de trabalho, principalmente, não remunerado, contribuiu para a manutenção do desemprego estrutural e ampliação da precarização do trabalhador
Durante a pandemia acompanhamos o processo de seleção em dois tipos de empresas: as que utilizam como estratégia de marketing junto ao público e ao mercado a simulação de oferecer oportunidades de vagas pelos critérios de diversidade, mas cujas “minorias” de fato continuam sendo preteridas durante e após o período de “experiência”; e as que têm de se enquadrar nos “Termos de Ajuste de Conduta – TAC” por efeito de ações judiciais, à contratação de vagas pelos critérios de “diversidade”. Em ambos os casos, presenciamos e também recebemos denúncias de atos de assédio moral, bullying, discriminação etária, étnica, racial, sexual e religiosa.
Em pleno século XXI, muitas empresas ainda praticam esse modus operandi, contratando gerentes e supervisores que se prestam ao papel de “Capitães do Mato”, massacrando colegas de trabalho para se manterem nos seus empregos com cargos e salários sem consciência e respeito à dignidade da pessoa humana.
As práticas de assédio moral e discriminação ocorrem principalmente durante o período de experiência, o mais sensível para o/a trabalhador/a concorrendo a uma vaga, o que a transforma na “experiência” pela qual nenhum ser humano deveria passar!
Toni Grangeiro, psicólogo psicodramatista e membro do Centro de Estudos em Filosofia Americana – CEFA, nesta longa entrevista exclusiva para Pravda.Ru, nos fala de como essas práticas abusivas se fortaleceram e ainda persistem com o tratamento de seres humanos como mão de obra escrava com a financeirização da diversidade na força de trabalho.
Eis a entrevista:
Gostaríamos de saber mais sobre você e sua carreira como psicólogo especializado em projetos de saúde mental do trabalhador.
Depois da graduação em Administração de Empresas, parti para aquilo que era a minha vocação. Aos 21 anos, ingressei no curso de psicologia, me formando em 1994. Isso coincidiu com a abrupta abertura econômica que o Brasil sofreu, a partir de 1990.
Trabalho com psicologia desde 1995, um pouco antes até, se eu considerar os estágios e projetos que me envolvi. Atuei com grupos de detentos no presídio de minha cidade natal, colaborei com José Ângelo Gaiarsa, psiquiatra que, em seu tempo, foi um dos grandes introdutores da Psicologia Corporal de Wilhem Reich no Brasil e conheci o, então, secretário da Educação Paulo Freire, na gestão da prefeita Luiza Erundina (PT), na cidade de São Paulo. Essas experiências iniciais, para mim, foram cruciais e me introduziram no campo da psicologia social.
Depois de passar pela Fundação do Bem-Estar do Menor, atendendo como psicólogo famílias e crianças carentes (abandonadas e institucionalizadas), ainda no antigo regime de “carteira de trabalho assinada” (CLT), eu iniciei como instrutor e facilitador de treinamentos na indústria (1997), prestando serviços para o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Eu quero salientar que, como psicólogo, fui desde cedo alvo das transformações do mundo da produção e do trabalho em meu país, mudanças estas, que já ocorriam fora de nossas fronteiras. Como disse, na década de 90, o Brasil abriu seu mercado para a concorrência mundial. Esse fato mudou radicalmente o regime de trabalho em meu país. No meu caso, 1997 marcou meu último registro com carteira assinada, depois disso, nunca mais atuei como “trabalhador formal”, tendo garantias trabalhistas. E isso já tem 25 anos!
Engrossei o fenômeno da “pejotização” (contratação de mão de obra como “pessoa jurídica”), reinserindo-me no mercado de trabalho como uma “empresa de um homem só”. Iniciei minha carreira como consultor independente “quarteirizado” (contração de mão de obra por vários intermediários) ou seja, o Senai me colocava dentro das empresas que o contratava. Lá dentro dessas companhias eu comecei a atuar nos diversos processos de reestruturação organizacional, as famosas e temidas reengenharias (ou downsizing).
Lembro de um episódio bem representativo desta ocasião. Como prestador de serviços do Senai, fui chamado para atender uma multinacional alemã do segmento de metal mecânica de alta precisão. A empresa tinha muitos ferramenteiros antigos em seu quadro, profissionais de muita experiência. No entanto, apresentava altos índices de retrabalho e problemas de qualidade. Meu diagnóstico e de minha equipe, apurou que não se tratava de baixa performance ou problemas de capacidade técnica, ou seja, os ferramenteiros não tinham desaprendido a trabalhar. Eles estavam com medo! Medo do que ia acontecer com eles, já que a empresa estava demitindo muita gente por conta de sua reestruturação.
Nossa solução foi simples: depois de obter o compromisso da diretoria de que a reestruturação havia sido concluída, abrimos a escuta e tivemos uma conversa franca com o corpo de funcionários, explicando, justamente isso: a turbulência havia passado. Orientamos a empresa que o caminho era a transparência, objetividade e sensibilidade na gestão. A qualidade voltou!
Enfim, o Senai foi a porta de entrada para minha atuação como psicólogo voltado ao mundo do trabalho. Hoje desenvolvo projetos de intervenção, muitos dos quais são ligados a mudança cultural em organizações, a segurança e saúde do trabalhador, avaliações psicossociais e orientação em relação a segurança psicológica, clima e engajamento do trabalhador. Com a experiência acumulada e estudos em saúde mental no trabalho, isso me permite diagnosticar ambientes e dinâmicas laborais e modelos de gestão, com vistas na orientação de “boas” práticas.
Mas não se iluda, não é um trabalho fácil, à medida que isso significa, muitas vezes, “colocar o dedo na ferida” e alterar relações de poder. Neste sentido, é um trabalho restritivo, com pouca margem de manobra. Exige um longo período de semeadura, por vezes, com diminuto alcance prático. Dizendo de outro modo, as pressões e tensões são tamanhas, que qualquer mínimo ganho, parece excepcional.
Há uma demanda reprimida, extremamente necessária de ser atendida, ainda que seja contraditória, mal compreendida e aceita no Brasil. Este é um trabalho que faz muita diferença hoje.
Fiz duas pós-graduações em Psicodrama e Sociodrama, com ênfase em Psicopatologias, mas dentro do modelo compreensivo e outras formações de extensão, incluindo justiça restaurativa e política e cidadania.
Minha experiência também permitiu chegar à condição de perito judiciário e do trabalho. Sem dúvida, a formação em Psicodrama e Psicopatologia e, mais tarde, a participação como membro do Centro de Estudos em Filosofia Americana – CEFA (desde 2019), além do ativismo em direitos humanos, foram fundamentos na construção de minha carreira.
Conte-nos como foi a transformação da força de trabalho do século passado para o século XXI?
Vou tentar resumir em duas grandes teses. A primeira é de que tal transformação se inicia por aquilo que define o capitalismo: “valor em movimento”. Os donos dos meios de produção são quem detém o capital e ganham com ele. Portanto, o que move o capitalista não é a avareza, mas a sobrevivência, pelo aumento de valor. A competição é o mecanismo onde o capital opera. Você não diz que o jogador de futebol é burro porque não joga com as mãos. Você é mais complacente e diz que ele segue as regras do jogo. Se o clube seguir as regras do jogo e fizer gols, é competente. Se não, é rebaixado, sai do mercado. A competição empresarial é feroz porque, se o dono do capital não for competitivo, a empresa fecha ou é comprada. Não defendo, nem ataco empresário, constato que o problema maior está nas regras do jogo.
Pelas regras desse jogo, os donos dos meios de produção têm interesses divergentes das aspirações e necessidades dos trabalhadores. Já ouviu falar em conflito de classes? Pois é!
Na década de 60/70, o empresariado do primeiro mundo começou a constatar que o modelo de produção fordista estava com seus ganhos estagnados. Isso só se tornou evidente no Brasil, a partir de 1990. E, pelo que já expus, a estagnação não combina com o capitalismo. Logo vieram incentivos para a evolução tecnológica – que, inclusive, coincidiu com a corrida espacial – e logo pudemos assistir à proliferação de invenções e de artifícios técnicos.
Não demorou muito para que essas inovações batessem na automação industrial.
A necessidade autómata de geração de valor do capital foi a matriz que transformou, mais uma vez, o mundo do trabalho do capitalismo moderno. A necessidade de acúmulo do capital já havia dado ensejo para a criação da máquina à vapor, que suscitou a revolução industrial e, em seguida o fordismo. A segunda onda veio da mesma necessidade e levou a automação industrial, ao just in time e a revolução pós fordista e pós-industrial.
O trabalhador teve sim, que se adaptar, como o cardume de meros em meio a tubarões.
Ora, é pela dinâmica do capital, ou seja, da necessidade do capital em gerar valor, que compreendemos melhor a raiz das transformações do trabalho, e com elas, da própria “força de trabalho”. Repare que a expressão “força de trabalho” nos remete ao esforço físico, material, braçal, próprio da velha indústria. Não é mais o caso, nosso trabalho hoje é imaterial, intelectual, comunicacional, por excelência.
O segundo polo de transformação do trabalho foi dado pela assimilação do neoliberalismo como expressão política e cultural. A “doutrina” neoliberal se “encaixa” perfeitamente na estrutura e dinâmica do capitalista atual. O neoliberalismo vende a utopia e a ideologia da gestão de um país, quiçá, do mundo, através da síntese do “Estado Mínimo” com o “Livre Mercado”. Este é um ponto que nos endereça ao tema da “mais valia social”, mas fica aqui apenas o registro.
Você pode me questionar: “Mas o capitalismo não está em crise?”. Ora, o capitalismo é crise!
Há no modelo neoliberal, em meu modo de ver, a hipérbole do paradigma da liberdade e da livre concorrência e competitividade. Lembra do cardume de meros? Em um mundo automatizado, onde o pleno emprego é artigo de luxo e o desemprego estrutural é a praxe, do ponto de vista do trabalhador, onde está a competitividade, se a liberdade pressupõe poder de escolha? Neste cenário de “carnificina”, a insegurança e o medo são sentimentos muito prováveis no cotidiano do trabalho e do trabalhador.
As máquinas tiveram importância crucial para concretização deste mote. A promessa de trazer mais horas de lazer, não foi cumprida. Ao invés disso, no Brasil, as exigências e a sobrecarga para quem ficou no mercado formal ou informal só aumentaram.
Com a maquinária, veio também o just in time, como modelo de produção enxuta e sob demanda hiper personalizada. Perceba que o foco é sempre o ganho de produtividade. O just in time também buscou corrigir o efeito colateral que a automação causou, já que desemprego e baixos salários pressionaram pela queda de demanda.
Só com a operação de todas essas mudanças, é que a política pôde entrar em cena, legislando e promovendo sua ideologia, inclusive quanto a “flexibilização” de direitos trabalhistas. Não é difícil deduzir a brutal tensão nas costas, corações e mentes, dos trabalhadores. Claro que a insegurança cresceu e as doenças mentais no trabalho, e na sociedade, aumentaram exponencialmente. No início da pandemia da Covid-19 (2020), o registro de auxílios-doença por depressão, ansiedade, estresse e diversos transtornos mentais e comportamentais cresceram na ordem de 30%1. Teve o efeito “covid”? Com certeza, mas a pressão sobre o trabalhador é um passivo que vem desde o fim do “welfare state” (estado de bem-estar social).
Chegamos assim ao século XXI, com a exacerbação do individualismo, tanto no trabalho, como na sociedade. Veja que exemplo pitoresco, referente a tentativa de uma empresa de gerir o home office entre profissionais de áreas administrativas. A empresa, preocupada com a ameaça da baixa do engajamento profissional de seu quadro administrativo, ultrapassada a fase crítica da pandemia, vem estimulando seus empregados a retornem ao trabalho presencial. Porém, muitos relutam: “Voltar pra quê? Pra pegar trânsito e ficar numa baia sozinho, diante de um monitor de computador? Isso eu faço melhor em casa!”.
A fusão do trabalho com a vida é inconteste.
Como fica a produção e o trabalho com as novas tecnologias e seus “códigos” de comunicação?
Creio que já dei alguns elementos que ajudam a responder a essa pergunta.
O cenário de perda massiva de postos de trabalho nas fábricas pelo mundo, levou-nos a uma mudança cultural profunda e ao inevitável êxodo profissional para a área de serviços, e para a informalidade. Mas a tecnologia “de rede”, catalisou todo esse processo.
O fenômeno do exército de reserva, combinado com a internet e a tecnologia disruptiva e de rede, desembocou facilmente na uberização do trabalho.
Nesta esteira vieram as manobras político jurídicas para flexibilização das leis trabalhistas, tornando legal o que antes era ilegal.
Tivemos também a ampliação de um outro fenômeno: o trabalho não remunerado. Com a capilarizarão da internet e seus subprodutos, essa modalidade de trabalho tornou-se uma realidade onipresente e extremamente dinâmica pelos quatro cantos do mundo.
Num primeiro momento, a eliminação de postos de trabalho na indústria fez gerar o desemprego estrutural [ou seja, crônico]. O êxodo abasteceu o setor de serviços, que costuma exigir menor qualificação e remunera menos. Os avanços tecnológicos, porém, não pararam. Da indústria 4.0, automatizada e enxuta, chegamos ao trabalho virtual e ao home office, a telemedicina, ao teleatendimento, às videoaulas, ao EAD. Tudo online, em streaming. Por causa da tecnologia disruptiva, alcançamos o trabalho regido pelo algoritmo. São exemplos o e-commerce, Uber, Ifood e Zenklub.
Como disse, o trabalho tornou-se um fenômeno online e a mais valia foi extraída da própria vida. O fato de você usar um Google, game, código de barras, Youtube ou qualquer plataforma social ou APP (aplicativo), mesmo que “de graça”, não significa que apenas consome, você produz também. Gera valor, mas não é remunerado. Eu, por exemplo, abasteço o LinkedIn com muito conteúdo, mas nunca recebi um real ou dólar de retorno. Meus filhos, idem, jogam games em celulares que são aperfeiçoados enquanto jogam. Tudo isso, sem contar que alimentamos bigdatas capazes de processar nosso perfil como consumidores, direcionando nossas vidas e negócios em todo o mundo. Somos todos “prosumidores”.
A compensação da escassez de emprego pela fartura de trabalho, principalmente, não remunerado, contribuiu para a manutenção do desemprego estrutural e ampliação da precarização do trabalhador, com todos os efeitos derivados disso. E não há como voltar! Precisamos abrir portas ainda fechadas, criar direitos para abarcar a nova realidade.
A “pejotização” e a “gameficação” são fenômenos que mascaram tudo isso. No caso da gameficação, tenta-se imprimir a ideia de que você não está trabalhando, está se divertindo. Assim, a fronteira entre bio e labor ficam dissimuladas. Não nos enganemos, a despeito de toda parafernália de entretenimento, nunca padecemos de tanto cansaço como agora.
Sofremos a fusão de espaços e tempos. Todo o espaço e todo o tempo, tornaram-se “campo e dimensão” de trabalho na contemporaneidade, sendo boa parte não remunerado. Ao mesmo tempo, sofremos uma brutal redução de direitos trabalhistas. Pondo isso tudo na “ponta do lápis”, começamos a entender melhor porque o rico fica mais rico e o pobre trabalhador fica mais pobre. Também fica mais justificável e compreensível os projetos em voga pelo mundo sobre renda básica universal.
No Brasil, essa proposta ganhou contornos de lei (Lei 10.835), desde 2004, mas ainda não foi implantada.
O trabalho em rede joga para o escanteio o trabalho comunitário. Na rede binária, a linguagem simbólica é a que prevalece. Ela é curta e rasa, como nos explica Paulo Ghiraldelli em seu livro “Semiocapitalismo”. Ghiraldelli afirma que a comunicação virtual funciona por semiótica, por comandos, “flatus vocis”, simples símbolos com poder de persuasão. Agrupam e potencializam interesses e isso tem valor de mercado. Por isso figuram entre as maiores do mundo uma Apple, um Google ou uma Amazon.
Acompanhamos vários casos de assédio moral, bullying, discriminação racial, etária, sexual, religiosa, entre outras, em empresas privadas e governamentais. Essas práticas são crimes, porém há uma enorme dificuldade em ajuizar ações, já que as testemunhas temem perder seus empregos ou serem perseguidas no trabalho. Como tratar esses casos, do ponto de vista psicológico, entendendo que essas práticas causem danos à saúde mental dos trabalhadores?
Bem, dei muitos elementos que justificam o sentimento de medo provindo de quem está empregado. Mas poderia destacar: o excedente de desempregados disponíveis no mercado, a flexibilização das leis trabalhistas e redução de direitos, o mandonismo ,como traço cultural importante no Brasil e, claro, a desconstrução sindical.
Para o psicólogo, o diagnóstico é fundamental na orientação do prognóstico. O eventual “tratamento” do empregado que sofre abusos, é um ponto a se refletir. Porque, à rigor, a doença é confundida com o sintoma. Os casos elencados na pergunta, em tese, não têm causas psíquicas, ou seja, internas ao trabalhador. Assédio, bullying, discriminações são variáveis circunstanciais: ambientais, gerenciais, institucionais ou culturais.
Cessando essas variáveis os sintomas tendem a desaparecer. Por isso disse anteriormente, o difícil em se trabalhar com saúde do trabalhador é porque teríamos que colocar o “dedo na ferida”, e nos casos levantados pela questão, a “ferida” é, no mínimo, institucional.
Imagine o seguinte: se estivéssemos em pleno emprego e você fosse assediado(a) moralmente, se não se sentisse confortável em denunciar, poderia, simplesmente, pedir demissão.
Médicos e psicólogos são induzidos a ineficácia ou iatrogenia porque vão querer tratar o empregado, mesmo quando a causa não é psicológica, mas sociológica, institucional, cultural ou política.
À rigor, não podemos falar em “tratamento psicológico” ou “psicoterapia” se o caso é de assédio moral ou discriminação. Melhor seria adotar como conduta o apoio psicológico. A primeiro momento, essa conduta é de apoio, escuta, orientação. Em certos casos, encaminha-se a tratamento psicológico e medicação. Ademais não deveríamos particularizar um problema de saúde que tem contornos sociais, portanto, seria inteligente ancorar essa conduta a um projeto de revisão organizacional ou rede de proteção maior, sob a pena de encobrir o problema, alcançar pequena e curta eficácia ou, simplesmente, procrastinar soluções sistêmicas necessárias. Note que, um bom sindicato poderia ser mais efetivo que um bom psicólogo.
Mas não quero menosprezar ou diminuir a contribuição da psicologia e dos profissionais de saúde nestes casos. Um bom amparo de nossa parte seria no campo institucional, como por exemplo, workshops de sensibilização com a liderança, a inserção de rodas de conversas com funcionários e líderes e ações de profilaxia (campanhas, seminários, ombudsman etc). O trabalho institucional tem sempre duas vias: operacional e gerencial.
Casos mais graves e pontuais precisariam receber encaminhamentos clínicos. Também o trabalho de reabilitação psicológica é de grande valia.
Os sindicatos também, ou perderam força ou ficaram do lado do empresariado por “cooptação do sistema”. Como agir diante desse quadro de impotência, quando as organizações representativas falharem na defesa dos interesses dos trabalhadores?
Esse é um gargalo!
O desmonte sindical é algo a se lamentar muito. O movimento sindical surgiu em meio a alteridade. Foi a exacerbação da luta de classes, o claro reconhecimento de pertencer a esta categoria e não aquela, que justificava a organização sindical. Não resta dúvida que o sindicalismo deu importantíssima contribuição histórica.
O que posso dizer é que o movimento operário clássico foi para sempre alterado. O sindicato tradicional acabou, mas o trabalhador não deixou de ter necessidades.
Estamos tentando reagir. Exemplo de reação, apesar da abdução da organização sindical dos últimos anos foi o surgimento dos movimentos ‘Occupy’, inclusive no Brasil. Não se tratou da reedição do movimento sindical da década de 80 no país. Longe disso. Foi algo diferente, ao mesmo tempo sintoma e busca de superação do buraco solidário que se formou com a perda da pujança dos sindicatos.
O que quero dizer é que, esgotou-se o modelo sindical clássico. O que virá, será criado. Talvez estejamos num interregno.
Não nos esqueçamos que, em 2022, foi criado o primeiro sindicato de funcionários da Amazon, nos EUA, empresa símbolo do capital imaterial. É preciso acompanhar isso de perto. Pode ser o embrião de uma nova forma de organização sindical.
Outro movimento que teve seu início embrionário foram os motoqueiros do Ifood e motoristas de Uber.
Considerando o fato de que o surgimento da versão sindical da revolução industrial foi incubado na realidade do trabalhador de sua época, talvez devêssemos olhar para as demandas da nova categoria de trabalhadores imateriais, da era pós fordista, para que possamos inaugurar novas forças sindicais.
Qual o real poder de influência da financeirização (e das corporações) em relação a formação da identidade do trabalhador?
As fichas agora estão na financeirização. E ela decorreu da evolução do capitalismo. O capital saiu de sua condição material para a produção imaterial. Nada mais imaterial que o dinheiro sem lastro. O dinheiro em cédula praticamente desapareceu. Tudo é no cartão. O cartão de crédito também foi incorporado ao computador e ao celular. Já conceberam a cripto moeda e o PIX.
O ponto crucial para o trabalhador em relação a financeirização, que posso destacar, é que o sistema financeiro drena investimento do setor produtivo. Se os juros são mais atrativos que a produção, o empresário deixa a empresa de lado e aplica.
Preste atenção a semântica: “aplicar não é investir!”.
O ciclo especulativo que se formou nesses anos todos é contra o trabalho: menos produção, menos investimento. Menos investimento, menos produção. Menos produção e investimento igual a mais aplicação. E tudo isso se desdobra em menos emprego ,formal e assalariado, e mais trabalho, subemprego ou não remunerado.
Viramos um mercado especulativo e o problema é que nosso aparelho digestivo não processa dinheiro.
Em retrospectiva, vemos que o trabalhador tradicional foi “convidado” a ser empreendedor, trocando carteira assinada por PJ (pessoa jurídica).
Com a derrocada do sonho do “seja seu próprio chefe”, a cenoura do empreendedorismo na frente do cavalo, foi trocada pela cenoura do “seja um milionário da bolsa de valores”. É fácil vermos por aí jovens que se enxergam como empreendedores ou investidores (aplicadores). E muito adulto que tem APP (aplicativos) de “investimentos”. É mesmo um mercado que cresceu muito. Mal sabem os atuais “aplicadores”, erroneamente denominados “investidores”, que eles também estão nas mãos dos algoritmos financeiros.
Quanto ao poderio do sistema financeiro, basta dizer o seguinte: no Brasil, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp, na prática, foi encampada pela Federação Brasileira de Bancos – Febraban.
Quem se interessar em aprofundar esse assunto, sugiro a produção do professor Ladislau Dowbor.
Dá-se uma metamorfose do “trabalhador”, que passa a ser chamado de “colaborador”. Colocá-lo como se fosse “sócio” da empresa onde trabalha, sem que sua opinião tenha peso equivalente as dos “donos”, foi assimilada pelo trabalhador?
Como qualquer processo ideológico, você martela uma mensagem e captura os incautos. O imperativo de otimização de processos produtivos exigiu trabalho mais colaborativo.
O advento da automação industrial e a redução da massa de trabalhadores, tornaram os processos produtivos enxutos, o que deveria ser compensado por interações mais colaborativas dentro das organizações. Menos gente, tendo mais responsabilidades, precisariam se comunicar melhor.
Linhas de montagem foram sendo substituídas por células de produção. Uma forma de massificar a ideia do trabalho colaborativo e menos hierarquizado, foi mudando a nomenclatura de “proletário – trabalhador”, que tem um certo contorno identitário, para o de “colaborador”, que sugere outro contorno de identidade. Lembremos que o “proletário” era o membro de uma mesma categoria profissional, o qual o patrão, era excluído.
Os Círculos de Controle de Qualidade (CCQs), as técnicas comunicacionais de solução de problemas em grupo, como o brainstorming etc, só podiam ser executados com muita interação social.
Creio que a introdução da nomenclatura “colaborador” acabou sendo assimilada, seja porque é cativante para o ser humano o sentimento de pertencimento, seja por esvaziamento semântico. Houve também a renovação geracional, ou seja, muito profissional entrou no mercado de trabalho dentro da “cultura colaborativa”.
Só ressalto, retomando a importância semântica para a composição de nossos papéis sociais, que o trabalhador, por definição, não é o dono do meio de produção, é “força de trabalho”. O papel do acionista não é o mesmo que a do trabalhador e vice-versa. Essa é a regra numa sociedade de classes.
Nunca vi, por exemplo, um trabalhador despedir o acionista de uma empresa!
Muitos treinamentos profissionais se dão apenas para atender a legislação. Há críticas quanto a qualidade desses treinamentos e até em relação aos profissionais que os conduzem. Treinamentos são utilizados para isentar a empresa de suas responsabilidades em processos judiciais, pela alegação de que o trabalhador foi treinado, mas não se adaptou a qualificação ofertada ou descumpriu regras. Também temos notícia de processos seletivos com exigências absurdas e testes inadequados as competências requeridas para o cargo, além do nepotismo. A que se atribui essas práticas abusivas e enganosas?
Primeiro, é um ganho termos uma legislação que ampare direitos. O contrário, é muito pior! Mas precisamos entender que a iniciativa privada é orientada para resultados. No topo, está o resultado financeiro (o lucro) e muita coisa é vista como gasto, não investimento. Empresas sem cultura de treinamento costumam vê-lo como gasto. A lei trabalhista tenta contrapor esta lógica e parte do princípio da garantia de diretos. Já fui chamado para realizar testes psicossociais, em atendimento a Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Previdência e nem sempre meu cliente entende ou quer entender do que trata essa demanda.
Portanto, é comum a empresa se esforçar para cumprir o estritamente necessário. Além disso, há uma grande parcela que paga mal e paga por qualquer laudo ou treinamento, desde que conste ali a assinatura do técnico. Quando vivemos em um mercado promíscuo, é mais comum que um profissional gabaritado seja preterido pelo “marreteiro”.
Você pode concluir: “Então é um cenário ruim”. Eu te digo: sem legislação trabalhista ele seria inabitável!
Cumprir a legislação é um dever num estado democrático de direito. Empresas que zelam pela sua imagem/marca, investem mais em auditorias, governança e compliance. Quer dizer que, o controle do Estado, a sociedade organizada, os trabalhadores organizados e um mercado competitivo e civilizado, podem ajudar a colocar as coisas nos eixos. Mas isso, às vezes, parece utopia.
Fato é que, as empresas, a maioria multinacionais de grande porte, quando cobradas, seja pelo mercado, Estado ou sociedade, costumam cobrar também por mais qualidade. Ainda assim, são regidas pela lei do “mais por menos”. Do ponto de vista organizacional, a governança ajuda, o código de ética ajuda, bons gestores ajudam, mas existem limites, existe a burocracia e existe o desnível de poder entre a grande empresa que contrata por meio de departamentos pressionados por metas cada vez mais arrojadas e a pequena empresa, as vezes o autônomo “PJ” (pessoa jurídica), que precisa sobreviver neste mercado ultracompetitivo. Eu, como “PJ”, lidando com empresas deste naipe, falo por conhecimento de causa.
Sem um Estado regulador e uma sociedade organizada, é muito difícil que o mercado se autorregule. A denominação “livre” mercado, já o coloca na condição de dependência de limites externos a ele.
O mesmo ocorre com os processos seletivos. Veja o exemplo: há escolas particulares de meu conhecimento, que pedem como parte do processo de seleção, que candidatos professores atuem em sala de aula, por um ou mais dias da semana, com a desculpa de avaliar a sua prática e didática. Além desse teste (trabalho) não ser remunerado pela instituição de ensino, ele não é computado para fins trabalhistas, o que torna a operação ilegal.
Sendo ou não sendo contratado, desconheço o professor que tenha denunciado oficialmente tal prática.
A exploração é um fenômeno intrínseco na busca da “mais valia”. O livre mercado não equaciona a exploração que ele mesmo cria. O livre comércio, que tanto enaltece o valor da “Liberdade”, esquece-se que, nas relações sociais, ela também remete ao conflito.
A liberdade só é exercida singularmente quando está restrita ao âmbito individual, o que, na prática, quase inexiste. Vivemos em sociedade. No âmbito das relações sociais, devemos empregar o fenômeno das “liberdades” (no plural).
Quando essas liberdades são praticadas entre iguais, os conflitos se dão no plano da negociação ou da guerra. Mas quando são praticadas dentro de uma escala hierárquica, vale a máxima: “manda quem pode…”.
Nota: 1. Acesso em 16/09/2022: https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_783190/lang–pt/index.htm
Entrevista enviada por Amyra El Khalili e originalmente publicada no Pravda.RU, parceiro editorial do EcoDebate.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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