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sexta-feira, 26 de agosto de 2022
Arara Azul: quando a natureza tem assistentes
Envolverde História, por Dal Marcondes – Reportagem produzida em 2005 para o Projeto Terramérica, um suplemento de jornalismo ambiental apoiado pelo Programa da Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e produzido para os países de língua espanhola pela agência Inter Press Sevice (IPS) e, em português, editado pela Agência Envolverde.
O Pantanal sofre graves ameaças, com desmatamento sem controle realizado por empreendimentos agropecuários e a extinção de espécies que são endêmicas. O Projeto Arara Azul, coordenado pela bióloga Neiva Guedes é exemplo de garra e determinação na luta pela preservação de espécies magníficas que são alvo fácil de caçadores e traficantes de animais.
Em 1989, quando a bióloga Neiva Guedes encontrou pela primeira vez um bando de araras azuis pousado em uma árvore no Pantanal teve início um caso de amor à primeira vista. “Foi uma visão de muita beleza”, conta emocionada esta batalhadora, que depois de 16 anos dedicados ao trabalho de preservação desta espécie contabiliza uma vitória numérica. Eram cerca de 1500 indivíduos em 1990 e hoje a contagem chega a 5.000 graças principalmente a Neiva e a seu time de colaboradores que diariamente vasculha as entranhas do Pantanal no Mato Grosso do Sul em busca de ninhos e vestígios da presença da arara azul. “Atualmente estamos monitorando permanentemente mais de 500 ninhos e mantendo um relacionamento muito próximo com os fazendeiros e com os peões que trabalham nas fazendas”, conta Neiva. Para ela os pantaneiros, pessoas que vivem e trabalham no Pantanal são os melhores aliados para a preservação da arara azul, que está entre as espécies animais mais ameaçadas do planeta.
Foto de Marie Stafford
No Brasil existem populações de araras azuis no Pantanal, na Amazônia, no Piauí, Tocantins e Bahia. Apenas no Pantanal no o trabalho de preservação conta com a ajuda estruturada de uma equipe, o Projeto Arara Azul, com apoio da UNIDERP (Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal), que contratou Neiva Guedes como pesquisadora e seu principal auxiliar, o ex-militar Cezar Corrêa. Nos outros locais onde ocorrem a arara azul a situação é muito grave, segundo Neiva. Na Amazônia a ave é uma das principais presas de caçadores, traficantes de animais e índios em busca de penas para seu artesanato. Neiva conta que uma vez que esteve no Pará encontrou exemplares da Arara Azul presos em gaiolas apenas para ter suas penas arrancadas a cada vez que cresciam, uma maneira de se ter um abastecimento constante de penas para artesanato. A arara azul (Anodorhynchus hyacinthinus) se destaca não só pela beleza, mas por ser a maior do mundo: aproximadamente um metro da ponta do bico à cauda e cerca de 1,3 quilo de peso.
tráfico de animais é um dos principais inimigos desta ave majestosa. Um exemplar com saúde pode chegar a valer 10 mil euros na Europa, cerca de R$ 33 mil. No entanto, para que apenas um indivíduo chegue com vida a este mercado, dezenas morrem pelo caminho, porque a captura é feita nos ninhos, com os filhotes muito pequenos ou ainda em ovos. “A arara azul reproduz apenas a cada dois anos e o filhote precisa ficar sob os cuidados dos pais até 18 meses”, conta Neiva. Para ela a ação dos órgãos de fiscalização contra o tráfico de animais ainda é muito precária e não consegue impedir a ação dos bandidos. “Uma vez em cativeiro a arara azul se comporta como um gatinho”, explica a bióloga, e este é um dos principais motivos pelo qual elas são tão valiosas no mercado negro. Existem estimativas que apontam para a captura de mais de 10 mil exemplares de araras azuis nos anos 80. Hoje o tráfico diminuiu um pouco no Pantanal, mas ainda há a ameaça de indígenas que capturam o animal para usar suas penas em adornos e artesanato que são vendidos aos turistas.
Em um pequeno posto de venda de artesanato na cidade de Miranda, ao ver penas de araras em peças de artesanato, a bióloga franze a testa. Sabe que não são penas coletadas no solo, que naqueles artefatos podem estar penduradas penas de algumas de suas araras. Ali podem ser perdidos anos de trabalho, apenas porque não se respeita a lei que proíbe o uso de penas de aves ameaçadas de extinção para a fabricação de qualquer tipo de produto, seja por artesãos indígenas como ou por industriais paulistas.
Foto Dal Marcondes
Porém, mesmo com as ameaças ainda presentes, quem anda pelo Pantanal pode hoje avistar destas aves, sempre voando aos pares. É que elas são monogâmicas e depois que escolhem um companheiro ou companheira não mais se separam. Estarão sempre juntas buscando alimento, as palmeiras de acuri e bocaiúva, cujas castanhas são seus únicos alimentos desde que nascem até a morte. E não é apenas na alimentação que estas aves são tão especializadas. Seu habitat no Pantanal também é muito específico, fazem ninhos principalmente em árvores de manduvi que têm uma madeira macia que permite às araras ampliarem pequenos buracos que encontram em seus caules. Cezar Correa, que diariamente percorre cerca de 10 ninhos de araras no Pantanal explica que esta especialização de habitat também é um problema para a preservação da espécie. O manduvi para estar pronto para receber um ninho de arara já deve ter quase 100 anos. Antes disto a madeira ainda é muito dura e as aves não conseguem fazer o buraco para se aninhar”, conta. Isto quer dizer que as árvores que estão sendo usadas como ninho hoje foram plantadas no final do século XIX e início do século XX. E qualquer projeto para ampliar a oferta de ninhos para a araras azuis deve ser feito pensando um século à frente.
Desmatamento
A limpeza rasa do solo, realizada por tratores arrastando correntes, é uma das ameaças mais graves aos habitats não apenas das araras azuis, mas de centenas de outras espécies pantaneiras. E este tipo de ocupação predatória está tornando-se cada vez mais comum na região, um dos ecossistemas mais frágeis do Brasil. “Os investidores de fora compram a terra e acreditam que podem produzir gado nas mesmas condições de pastagens que implantaram em ecossistemas de cerrado e Mata Atlântica”, diz Neiva. “Mas não dá certo, tem de respeitar o Pantanal, seu ciclo de águas, sua fauna e flora”, explica. Contudo, este procedimento predatório arranca pela raiz centenas de pés de manduvi e, com eles, os ninhos, que não servem apenas às araras azuis, mas também às araras vermelhas, aos gaviões, às corujas e aos patos. Para tentar diminuir este déficit o Projeto Arara Azul trabalha na criação de ninhos artificiais para suprir uma demanda cada vez maior por parte das aves que dependem deste ninho para a reprodução. “Tentamos vários formatos, mas apenas recentemente tivemos sucesso com um tipo de ninho artificial”, explica Neiva Guedes. Este ninho é uma caixa de madeira que deve ser colocada no tronco principal do manduvi, como se fosse um buraco de arara natural.
Das conversas com os pantaneiros vêm as histórias de transformação que a região vem sofrendo ns últimos anos. Os velhos proprietários de terra estão deixando suas heranças para os filhos, que seguem dois caminhos. O primeiro é buscar ampliar a produtividade de um pedaço menor de terra, uma vez que a fazenda original foi dividida. Para isto ampliam o desmatamento e buscam aumentar suas áreas de criação e pastagem. Contudo, este não é o maior predador. Normalmente é gente que conhece a terra e faz um desmatamento seletivo, preservando as árvores importantes e as matas ciliares. O pior acontece quando os herdeiros não têm interesse em seguir com as tradições dos pais e vendem as terras para grupos de fora, principalmente empresas de agropecuária que chegam buscando o lucro rápido e não têm nenhum compromisso com a terra. “Estes são os piores, chegam de avião, reclamam do calor, dos mosquitos e querem ir embora o mais rápido possível”, diz Neiva.
Bióloga em trabalho de inspeção de ninhos e cuidados com os fillhotes
Os olhares da mídia estão muito focados nos desmatamentos na Amazônia, mas um passeio rápido pelo Pantanal mostra cenários de desolação. Não apenas em novos desmatamentos, mas nos exemplos de fracasso de antigas intervenções equivocadas. São milhares de hectares de terras que tornam-se alagados na cheia e que estão com sua flora devastada e sem a capacidade de suprir a fauna local com frutos e abrigo. O peão Carlos Camilo, nascido e criado no Pantanal, que há 15 anos é capataz de uma fazenda na região, conta que antes havia mais onças, cervos e animais grandes. “Hoje tá rareando”, diz. Para ele o desmatamento é a principal causa do sumiço das espécies. Orgulhoso, ele se aproxima da equipe do Projeto Arara Azul que chega para monitorar um ninho perto de sua casa. Na conversa com os técnicos passa informações preciosas sobre o comportamento das aves e diz que além do ninho, aquele manduvi abriga mais de 30 indivíduos que vêm no final da tarde para passar a noite em seus galhos.
O trabalho
Quando uma equipe do Projeto Arara Azul chega próximo a um ninho, o casal de araras azuis faz muito barulho, mas geralmente se afasta pra permitir que a cavidade seja inspecionada. Escalar as árvores é um trabalho arriscado, feito com equipamento de rapel e usando uma técnica desenvolvida pela própria Neiva. Uma vez no ninho o técnico faz uma inspeção de seu estado, se não tem nenhum tipo de infestação e, se houver um filhote, este é baixado para ser identificado pelas biólogas. A própria Neiva ou as estagiárias que atuam no projeto. A pequena ave é anilhada, identificada com um chip subcutâneo, tem uma amostra de seu sangue retirada para exames e devolvida ao ninho. A partir daí ela será monitorada pelo projeto durante toda a sua vida. Sempre que for encontrada, um equipamento tem com ler a poucos metros os dados de seu chip e dizer aos pesquisadores as principais informações sobre o animal.
Neiva Guedes, criadora e diretora do Projeto Arara Azul
Neiva alerta que mesmo que tenhamos dados sobre todas as araras azuis, isto não quer dizer que saibamos como elas vão se comportar. Segundo ela são animais com personalidade própria e cada indivíduo ou casal tem uma forma de viver e se relacionar com os humanos. A maioria é muito dócil, se mantém a uma pequena distância enquanto seu ninho é monitorado e retorna assim que os humanos se retirarem para voltar a cuidar e alimentar seu filhote. As pequenas ararinhas ficam no ninho por pouco mais de cem dias, quando então dão seus primeiros vôos e passam a acompanhar os pais até completarem dezoito meses. Até os seis meses serão alimentadas pelos pais, que as ensinam a voar, a buscar alimentos e a defenderem-se de predadores.
Os dezoito meses representam para as araras azuis o mesmo que s dezoito anos significam para os humanos. É com esta idade que elas deixam a companhia dos pais e juntam-se a um bando de “solteiros”. “Os teens do Pantanal”, brinca Neiva. Neste bando elas continuam seu aprendizado de vida e é lá também que vão encontrar o companheiro ou companheira para toda a vida. Na natureza uma arara azul pode chegar a 35 anos e vai viver na companhia de seu parceiro até morte. As pesquisas do Projeto Arara Azul Mostram que a monogamia é absoluta entre estes animais.
O início do Projeto
Neiva conta que o início do Projeto Arara Azul não foi fácil, tinha um pequeno recurso do WWF para a compra de alguns equipamentos e passava dias viajando pelo Pantanal de carona com os fazendeiros da região. Sem um veículo e trabalhando sozinha, Neiva logo chamou a atenção sobre a dignidade e relevância de seu trabalho. Um importante apoio veio quando um engenheiro da montadora Toyota ficou sabendo do projeto e conseguiu que a empresa cedesse um jipe Bandeirante no início dos anos 90. “Foi a independência e um grande salto para o projeto”, lembra Neiva, que foi sozinha até a fábrica no ABC Paulista buscar o veículo. “Nossa, nunca suei tanto na minha vida, além de ter de dirigir no trânsito de São Paulo. Tinha de aprender como funcionava o Bandeirante”, conta.
Premiada e reconhecida internacionalmente pela importância e relevância de seu trabalho, Neiva mantém um distanciamento crítico em relação a projetos de preservação mantidos por governos e instituições públicas. Para ela é importante que os cientistas e pesquisadores recebam apoio, mas mantenham sua autonomia para a realização dos trabalhos. Qualquer ingerência política atrapalha. Hoje, além da Toyota, quem em 2002 trocou o Bandeirante por duas caminhonetes Hilux e no ano passado renovou estes veículos, trocando-os por modelos mais recentes, o projeto hoje conta com o apoio do WWF, que paga o salário de estagiárias, das pousadas Caiman e Ararauna, que servem como suporte logístico para a atuação das equipes que visitam os ninhos de araras e acolhem os visitantes que desejam conhecer o trabalho desta equipe de ajudantes da natureza. Desde sua criação, o Projeto recebeu biólogos de vários países e alunos das mais conceituadas universidades brasileiras.
Hoje Neiva sabe que sem o suporte decisivo de empresas comprometidas com a sustentabilidade o trabalho de monitoramento e preservação de aves no Pantanal, ou em qualquer região do Brasil não é possível. “No caso das araras azuis, os ninhos chegam a estar a 50 quilômetros de distância entre si, precisamos de veículos todo terreno para passar por lugares onde nunca nem se sonhou em construir estradas”, explica Neiva com a concordância de Cezar. As duas caminhonetes do Projeto Arara Azul mais parecem bois bravos de rodeios saltando pelas trilhas do Pantanal, carregando sua preciosa carga de dignidade e esperança.
A construção do futuro
O Projeto Arara Azul conta atualmente com uma equipe formada pela bióloga Neiva Guedes, por seu assistente Cezar Corrêa, a bióloga Andréa Macieira Carvalho, a estagiária Renata Boss, a educadora ambiental Neliane Guedes Corrêa, irmã de Neiva, e a bióloga Grace Ferreira da Silva. Este time de valentes tem feito a diferença na preservação da arara azul em uma pequena parte do Pantanal. No entanto há ainda muito a ser feito em outras partes do mesmo Pantanal, principalmente ao Norte, nas regiões de incidência da arara azul no Piauí, Tocantins e Bahia, e na Amazônia. Para isto Neiva estima a necessidade de dez equipes trabalhando e não apenas uma. “Hoje já detemos muito conhecimento sobre esta espécie, não estamos mais partindo do zero, é preciso treinar equipes, equipá-las e montar estratégias de trabalho em todas as regiões”, explica Neiva.
Equipe de campo do Projeto Arara Azul
Uma equipe para sair sozinha a campo precisa de pelo menos um ano de trabalho junto com o pessoal que já está atuando. Para manter uma estrutura como esta será necessário muito mais recursos, um investimento importante e que certamente dá muito resultados para seus apoiadores e financiadores. Este projeto já recebeu, entre outros prêmios, o Prêmio Von Marthius, na categoria Natureza, e Neiva Guedes foi a primeira mulher brasileira a receber do príncipe Bernhard, da República dos Países Baixos, o título de dama integrante da Ordem da Arca Dourada (Golden Ark Knighthood), em reconhecimento ao trabalho de conservação da arara-azul ( Anodorhynchus hyacinthinus). A Ordem dos Cavaleiros da Arca Dourada foi criada em 1971, por sua alteza real Príncipe Bernhard, para reconhecer os esforços de ambientalistas e cientistas na conservação dos recursos naturais em todo o mundo.
os próximos anos o Projeto Arara Azul certamente continuara a servir como referência para os esforços de preservação de espécies ameaçadas em todo o planeta. Sua estrutura e capacidade operacional é modelo e deve ser replicado com a criação de novas equipes dedicadas à arara azul e a qualquer outra espécie. Atualmente os conhecimentos detidos por esta equipe já são socializados com pesquisadores que estudam morcegos, gaviões, onças e muitos outros animais e plantas.
Links importantes:
www.projetoararaazul.org.br
https://www2.uniderp.br/projetos/arara.html
https://www.caiman.com.br/caiman/new-portugues/conservacao/ararazul.asp
https://www.mma.gov.br/ascom/ultimas/index.cfm?id=355
https://www.escolavesper.com.br/arara%20azul.htm
https://www.caiman.de/01_05/art_1/index_pt.shtml
*O jornalista Dal Marcondes, da Agência Envolverde, viajou ao Pantanal a convite da Toyota e do Projeto Arara Azul.
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