Por Raquel Rosenberg*
Desde que Sávio de Tarso, meu pai, foi morto (em janeiro) eu não consegui escrever uma linha de nada que não fosse pra ele. Não consegui fazer um post em redes sociais. Talvez porque seja impossível não ficar sem palavras diante do absurdo de injustiça que aconteceu. Talvez porque ele me inspirou e ensinou a escrever. Talvez porque a reação de algumas pessoas é colocar pra fora; a minha aparentemente é me recolher e agradecer o carinho de quem tá por perto. Mas essa história está mesmo entalada.
Quando aceitei o convite feito pela Ashoka pra estar na mesma mesa do CEO da Nestlé, Mark Schneider, em um evento fechado antes do Fórum Mundial da Água, a primeira coisa que pensei foi em fazer uma ação ativista que o constrangesse e escancarasse pro mundo pelo menos alguma das muitas contradições dessa multinacional. Mas a partir de conversas com os meus parceiros de luta no Engaja e fora, entendendo que não é sempre que podemos tentar mostrar pra gente desse escalão a forma como enxergamos as profundas transformações que devem acontecer no mundo e, é claro, inspirada pelo meu pai, que sempre insistiu no diálogo com as empresas pra chegar lá, decidi agir diferente.
Me esforcei pra sair da minha zona de conforto e escrever um discurso que abrisse as mentes e tocasse os corações dos 150 privilegiados em sua alienação que estariam naquele evento. Quando um grande amigo do meu pai chegou animado com um lambe-lambe que os dois haviam criado juntos na época da faculdade, me emocionei ao ler a poesia que estava nele, sobre água. Pronto, já sabia como abrir meu discurso e trazer o conforto que precisaria diante do desconforto do espaço em que estaria. Me inspirei em Vandana Shiva pra falar sobre mudança de paradigma e relacionar desigualdade social à falta de acesso a recursos básicos, incluindo os hídricos.
Quando a representante da Ashoka Suíça me pediu que enviasse o discurso previamente a ela para “alinharmos o que seria falado na mesa”, já que ela também seria palestrante, não hesitei, confiante da parceria de anos que tenho com a Ashoka Brasil, agora formalmente reconhecida como fellow. Apesar da demonstração do desconforto e de ainda ter me proposto a modificar algumas versões do texto final, foi na manhã do evento que a mesma me informou que eu não poderia falar, que o público não era o adequado para o meu “tipo de discurso” e a Nestlé precisava blindar o CEO, porque ele era novo e ninguém sabia muito bem como ele reagiria. Não podia acreditar que aquilo estava acontecendo apenas dois dias depois do assassinato da Marielle.
Assisti ao evento da plateia incrédula com a superficialidade do conteúdo, na certeza de que a minha fala ia destoar ali. A única pessoa que se levantou durante todo o evento para repudiar a falta de jovens numa discussão sobre jovens foi Izabella Teixeira, ex-ministra do meio ambiente, a mesma para quem entreguei um “troféu cara de pau” durante ação ativista na COP21, em Paris. Participei do jantar VIP-só-para-palestrantes mesmo assim, e foi lá que descobri, em uma conversa despretensiosa, que o moderador da mesa, Rob Cameron, Chief Executive da consultoria SustainAbility – e machista daqueles que se sente o cheiro de longe – tinha lido o meu discurso. Quem mais será que leu? Quem disse que meu discurso não estava alinhado? Até hoje não sei ao certo. Na esbarrada que dei com o temido CEO só deu tempo de falar que eu era aquela que deveria estar no painel com ele e, em resposta ao questionamento dele sobre a razão de eu não estar, sorri e disse “well, aparentemente eu ia falar coisas que você não está acostumado a ouvir!”
Enquanto isso, uma das responsáveis da Nestlé Brasil deixou clara sua preocupação desde o momento em que me questionou sobre o conteúdo do discurso até a reunião que fizemos na semana seguinte, quando ela confirmou que também não soube anteriormente de onde ou por que a censura teria acontecido. A equipe da Ashoka Brasil, que em sua maioria não estava presente em Brasília, se envergonhou e pediu desculpas imediatamente, se retratando de todas as formas possíveis comigo e refletindo sobre como situações assim mexem com as estruturas de grandes organizações, fazendo-as repensar sobre diversos paradigmas. A representante da Ashoka Suíça também se desculpou e afirmou não ter tido coragem de enfrentar qualquer que fosse a estrutura pesada que estava por trás desse veto.
E aí me dei conta de uma grande lição: a coragem. As instituições, o governo, as empresas – são todos formados por pessoas. Nada é uma caixa escura fechada. E da mesma forma que nas organizações tem pessoas que erram, representantes (ou ex) do governo que antes estavam do outro lado assumem o seu quando o assunto é comum. Nas empresas não é diferente e precisamos sim, como eu escuto a voz do meu pai dizendo, apontar o caminho pra que elas também enxerguem as soluções que enxergamos e tenham a coragem de levar para dentro.
Por outro lado, a revelação do tamanho do absurdo em que vivemos – em um sistema profundamente interligado – veio quando a Ana Carol Amaral não conseguiu publicar a matéria em nenhuma mídia tradicional. Não querem escancarar que estão calando mulheres jovens nos poucos espaços que são abertos para nós dentro desse sistema. É a censura da censura; a frustração e impotência sufocam. Mais do que nunca, a vida me mostrou que a mudança precisa olhar para o todo. A faixa que abrimos na plenária final cheia de autoridades, uma semana depois, no Fórum Mundial da Água, dizia “Somos as vozes não ouvidas”. O sistema pode tentar nos calar, mas, de um jeito ou de outro, terão que escutar. Obrigada por não deixarem morrer também esta história. Obrigada ao meu pai por estar vivo em minhas palavras e atitudes.
Raquel Rosenberg é coordenadora da organização Engajamundo e ambientalista
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