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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Emergências no Brasil, artigo de Roberto DaMatta

No Brasil a palavra emergência é um desses vocábulos com muitos sentidos, quase todos reveladores da dimensão mais profunda da atmosfera local. Dou um exemplo: se um inglês grita “help!”, ele é imediatamente socorrido. Se uma companhia aérea americana, pequena ou grande, recebe um pedido de passagem numa “emergency” – isso já ocorreu comigo – o lugar vai ser obtido. Palavras como socorro, perigo, ajuda, emergência e expressões como vida ou morte têm o poder de suspender as rotinas diárias e deflagram atitudes condizentes. O atendimento e a atenção têm que ser imediatos.
No Brasil, elas dizem o mesmo, mas dependem de quem está do lado de cá (como vítima ou doente) ou do lado de lá da porta do hospital ou do balcão de atendimento. Entre nós existem mediações e tudo depende do “caso” – e o “caso”, conforme sabemos, mas não discutimos, tem a ver com conceitos tipicamente brasileiros como “a pinta”, “a cara”, “o jeito” – a tal aparência. O modo pelo qual a vítima ou o doente é socialmente classificado.
Em todos os encontros impessoais no Brasil, o modo de falar, o tom de voz, o porte, a roupa, a cor da pele, a gesticulação, o cabelo e o penteado, os adereços, o andar e até mesmo o grau e limpeza, o cheiro, o relógio ou o anel – com maior ou menor peso, mas com a cor da pele, sejamos sinceros, sendo muito importante – são peças básicas no acolhimento ou na rejeição de uma emergência. Acostumados a ver as pessoas situando-as apenas como inferiores ou superiores e jamais como iguais, as emergências e os socorros (esses momentos que nos igualam como seres mortais e capazes de ser ofendidos, feridos e socorridos) passam numa primeira instância a “saber quem é a vítima” para, em seguida, dar-lhe atenção ou desamparo.
Donde, o antipático mas preventivo “você sabe com quem está falando?”. Diante de balcões de repartições públicas, hospitais e postos de saúde. Nas emergências, tendemos a seguir a mesma lógica das tramoias políticas. Diante da suspeita de crime, ou, como diz a presidente, do “malfeito”, procuramos primeiro saber quem é para depois demitir, indiciar ou blindar! Embora, como estamos fartos de saber, o bom-senso quase sempre demande providências imediatas.
Fala-se muito em cidadania, mas o fato é que esse papel continua sendo dependente de quem o desempenha. Se for nosso, recebe a blindagem que o torna superior às leis e fica dispensado dos socorros; se for pessoa comum, entra nas emergências. Esses atendimentos que, com ou sem plano de saúde, podem levar ao cemitério independentemente de quaisquer circunstâncias.
Pois “socorro” e “emergência” são palavras que em todo lugar, exceto no Brasil, têm a força de suspender as circunstâncias.
Em maio do ano passado tive um mal-estar e descobri, depois de uma consulta de emergência, que estava com uma crise de vesícula. Tinha que extirpá-la o mais rapidamente possível, o que fiz dois dias depois. Passei, assim, pela famosa cadeia medicinal deflagrada pelo estado de emergência que vai do atendimento imediato ao diagnóstico; passando pela intervenção, recuperação e retorno à vida normal.
Mas esse processo só foi feliz porque durante todo o tempo eu tive a sorte e o privilégio de estar acompanhado por médicos amigos. Recebi, deste modo, não só a competência da sabedoria médica habitual, mas uma decisiva e grata atenção. Eu pago caro por um plano de saúde mas, mesmo em plena crise, eu demorei mais ou menos seis horas para ser internado num grande hospital de Niterói porque o plano fala em Rio de Janeiro e Niterói é nele classificado como Leste Fluminense! Quer dizer, a contiguidade entre o Rio de Janeiro e Niterói sumiu porque o plano de saúde comporta um detalhe burocrático típico do moderno-brasileiro. Esperei mas comigo esperou a equipe médica, até que as tramas do plano fossem resolvidas e deixassem passar o doente.
O fato concreto é que cheguei no hospital às 9 da manhã e só fui operado às 6 da tarde, depois de uma troca interminável de mensagens e telefonemas entre Rio e Niterói. Felizmente tudo deu certo. Mas e se eu fosse – digamos como hipótese – um negro desconhecido e educado na boa norma da igualdade que abomina o “você sabe com quem está falando?” que recria a desigualdade, onde deveria reinar uma equidade plena mas devidamente enfartado? Em caso afirmativo, eu estaria escrevendo essa crônica no outro mundo.
É preciso rever as condutas que tipificam o espaço público brasileiro, sobretudo no que diz respeito a emergências. Não cabe, numa democracia e num governo voltado para a justiça social e para o povo pobre, nenhuma desculpa que acaba incidindo sobre detalhes legais e que, no final, tentam demonstrar que o doente vitimou-se a si próprio. O caso da trágica morte do sr. Duvanier Paiva Ferreira, secretário de um ministério voltado justamente para os recursos humanos e uma agência de saúde, é exemplar. Primeiro porque não houve o famoso “você sabe quem está falando?”; depois porque a vítima era um negro importante. Será que em todos os atendimentos os doentes devem fazer um escarcéu?
O socorro e a emergência não podem admitir demoras, desculpas e, sobretudo, esse detestável legalismo nacional que trava o mundo (e a vida) em nome de uma serenidade jurídica que simplesmente não deve existir nas crises de saúde e jamais pode prevalecer na batalha entre a vida e a morte! Bem faz a presidente Dilma em mandar averiguar o caso. Melhor ainda seria interferir, com maior consciência sociológica, nos protocolos dos atendimentos emergenciais.

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FONTE : Artigo originalmente publicado em O Globo e socializado pelo ClippingMP
EcoDebate, 26/01/2012

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