”Historicamente, o Brasil sempre chegou atrasado ao futuro. Mas agora, ao que parece, chegaremos atrasados ao passado’; Entrevista com o jornalista Henrique Cortez
Por Patricia Fachin, IHUA condução da agenda ambiental brasileira no governo Bolsonaro é ancorada em duas vertentes: a primeira visa dar continuidade ao modelo de desenvolvimento que “considera a defesa das questões ambientais como uma ameaça aos negócios e ao lucro”, e a segunda é ancorada na “visão antiestado da ultradireita, para a qual o governo não pode ‘se meter’ na vida e nos negócios de ninguém”, diz Henrique Cortez, jornalista da revista eletrônica EcoDebate, na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line.
Esse tipo de visão, explica, tem orientado a tomada de decisão na área ambiental e se manifesta na hostilidade do governo à existência e à atuação do Ibama e do ICMBio. “A primeira evidência está no Ministério do Meio Ambiente defendendo uma agenda antiambiental, reduzindo o poder e a atuação do Ibama e do ICMBio, tentando limitar e esvaziar o Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama, atacando organizações da sociedade civil com importante atuação ambiental, afrouxamento do licenciamento ambiental e outras ações que considero desmonte da governança ambiental construída desde 1992”.
Entre os desmontes ambientais iniciados pelo novo governo, Cortez menciona o decreto que “extinguiu o Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável – PDRS Xingu, criado para administrar as ações socioambientais decorrentes da UHE Belo Monte”, e a proposta de revisar as Unidades de Conservação – UCs. “Dizer que as unidades de conservação foram criadas sem critério técnico é uma bravata, estúpida como tantas outras. A criação de uma Unidade de Conservação – UC é um processo técnico multidisciplinar, rigoroso e com base científica. Então por que a revisão geral? Simples. É um agrado ao desenvolvimentismo econômico mais predatório, na medida em que a redução da área das UCs permitiria aumentar a fronteira de produção agropecuária e da mineração”.
Nesta entrevista, Cortez também comenta os desafios de fazer jornalismo ambiental independente no Brasil. O jornalista está à frente do EcoDebate há 13 anos e recentemente enviou uma carta a seus leitores, comunicando que a revista eletrônica poderá ser desativada em 1º de junho deste ano, por falta de recursos financeiros.
Henrique Cortez (Foto: Arquivo pessoal)
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O governo Bolsonaro iniciou sua gestão envolvido em uma série de polêmicas acerca da agenda ambiental. Que balanço o senhor faz do modo como essa agenda está sendo tratada nos primeiros meses do governo?Henrique Cortez – Não vejo surpresas. Desde sempre, e explicitamente na campanha eleitoral, Bolsonaro demonstrou uma visão rasa das questões socioambientais e, em razão desta visão simplista, uma clara oposição aos principais temas e políticas públicas relativas ao meio ambiente. E, até agora, o governo segue firme na desregulação e na redução das políticas conservacionistas, o que deve se aprofundar ao longo do mandato.
Desde sempre, e explicitamente na campanha eleitoral, Bolsonaro demonstrou uma visão rasa das questões socioambientais – Henrique Cortez
Henrique Cortez – O governo Bolsonaro empenha-se pelo desenvolvimentismo a qualquer custo, algo presente desde o governo Juscelino Kubitschek – JK e mais intenso nos governos militares, sob o discurso do ‘Brasil Grande’. Nos governos Lula e Dilma, este modelo desenvolvimentista também foi muito atuante, com destaque nas grandes obras e suas empreiteiras, no agronegócio, aqui entendido como o segmento exportador de commodities agropecuárias e na exportação de minérios. E este modelo está ainda mais poderoso no governo Bolsonaro.
No entanto, nos governos Lula e Dilma, as políticas de proteção social e a compreensão das demandas da sociedade permitiram a criação de freios ao modelo desenvolvimentista mais predatório. Estes freios não existem no governo Bolsonaro.
Mas a maior diferença está na questão ideológica e na adoção de conceitos da ultradireita dos EUA, da qual a ultradireita brasileira é satélite. A ultradireita dos EUA e suas milícias [1] organizadas são antigoverno e rejeitam que o governo, de qualquer forma, interfira na liberdade individual do cidadão, que no caso ambiental, refere-se ao poder regulador e fiscalizador do Estado. Então, a atual gestão, ao atacar a legislação, a fiscalização ambiental e as unidades de conservação, é coerente com esta visão.
IHU On-Line – Por que órgãos como o Ibama e o ICMBio são vistos pelo novo governo como empecilhos ao desenvolvimento?
Henrique Cortez – O atual governo é hostil à existência e atuação do Ibama e do ICMBio a partir de duas vertentes que, na prática, somam forças. De um lado, o desenvolvimentismo econômico a qualquer custo, que considera a defesa das questões ambientais como uma ameaça aos negócios e ao lucro e, de outro lado, reitero, a visão antiestado da ultradireita, para a qual o governo não pode ‘se meter’ na vida e nos negócios de ninguém.
A união da versão mais selvagem do capitalismo com a ultradireita, essencialmente ideológica, possui um grande potencial devastador – Henrique Cortez
IHU On-Line – Por que, novamente, o agronegócio tem um papel ou um poder de atuação central no governo?
Henrique Cortez – O agronegócio é atuante e poderoso há vários governos. Mas é importante ressaltar que este poder de pressão é controlado pelo segmento exportador de commodities agropecuárias e pela agroindústria, a partir de uma poderosa e crescente bancada ruralista, provavelmente a mais articulada do Congresso Nacional. Mas a questão neste governo é que a pior versão do agronegócio veio à tona.
A questão neste governo é que a pior versão do agronegócio veio à tona – Henrique Cortez
IHU On-Line – Vários especialistas e ambientalistas têm afirmado que o governo está fazendo um “desmonte” da governança ambiental. Concorda com essa análise? Pode nos dar alguns exemplos de como esse “desmonte” está sendo feito?
Henrique Cortez – A primeira evidência está no Ministério do Meio Ambiente defendendo uma agenda antiambiental, reduzindo o poder e a atuação do Ibama e do ICMBio, tentando limitar e esvaziar o Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama, atacando organizações da sociedade civil com importante atuação ambiental, afrouxamento do licenciamento ambiental e outras ações que considero desmonte da governança ambiental construída desde 1992.
Um exemplo objetivo: o governo Bolsonaro, por decreto em 7 de maio, extinguiu o Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável – PDRS Xingu, criado para administrar as ações socioambientais decorrentes da UHE Belo Monte.
Dizer que as unidades de conservação foram criadas sem critério técnico é uma bravata, estúpida como tantas outras – Henrique Cortez
Henrique Cortez – Na linha da questão anterior, esta é mais uma ação na direção do desmonte da governança ambiental. Dizer que as unidades de conservação foram criadas sem critério técnico é uma bravata, estúpida como tantas outras. A criação de uma Unidade de Conservação – UC é um processo técnico multidisciplinar, rigoroso e com base científica. Então por que a revisão geral?
Simples. É um agrado ao desenvolvimentismo econômico mais predatório, na medida em que a redução da área das UCs permitiria aumentar a fronteira de produção agropecuária e da mineração. E, obviamente, quanto menor a proteção, maior a devastação e o lucro.
IHU On-Line – Outra medida polêmica envolvendo o governo é a alteração do sistema de convenção de multas aplicadas pelo Ibama, através do decreto 9.760, que criou o Núcleo de Conciliação Ambiental, que pode perdoar ou revisar multas ambientais. Quais podem ser as consequências desse tipo de medida a longo prazo?
Henrique Cortez – Aqui, novamente, somam forças o desenvolvimentismo e a ultradireita. O surrado chavão da indústria de multas do Ibama e do ICMBio é absurdamente falso, porque os órgãos ambientais, de acordo com o Tribunal de Contas da União – TCU, mal conseguem arrecadar 5% das multas que aplicam. É, provavelmente, a indústria mais incapaz da galáxia.
O Núcleo de Conciliação Ambiental é uma ação a mais para evitar qualquer efetividade nas multas, o que interessa ao desenvolvimentismo econômico e agrada a ultradireita ao limitar ainda mais a atuação e o exercício do poder fiscalizatório do Estado.
O surrado chavão da indústria de multas do Ibama e do ICMBio é absurdamente falso, porque os órgãos ambientais, de acordo com o Tribunal de Contas da União – TCU, mal conseguem arrecadar 5% das multas que aplicam – Henrique Cortez
Henrique Cortez – As pautas são inúmeras, mas a primeira e mais urgente está em evitar os retrocessos que ameaçam a governança ambiental construída ao longo de décadas, como corretamente alertaram os ex-ministros do Meio Ambiente, em nota pública. Foi uma importante iniciativa que deveria ser reproduzida pelos ex-ministros da Educação e da Cultura, por exemplo.
Por outro lado, falta ao ambientalismo uma grande dose de generosidade e altruísmo, no sentido de que todos devem se unir diante dos desafios. As grandes ONGs ambientais precisam compreender a importância de somarem esforços e atuarem em conjunto. Nenhum interesse individual é maior que o interesse do coletivo.
As grandes ONGs ambientais precisam compreender a importância de somarem esforços e atuarem em conjunto. Nenhum interesse individual é maior que o interesse do coletivo – Henrique Cortez
Diante das ameaças ao nosso futuro comum, esta é uma dinâmica que precisa ser mudada com urgência.
IHU On-Line – Quais são as dificuldades de fazer jornalismo ambiental independente no Brasil? Que análise o senhor faz a partir da sua experiência à frente do EcoDebate há mais de uma década?
Henrique Cortez – A lista de dificuldades é imensa, mas tentarei sintetizar. A maior e mais significativa dificuldade está na viabilidade econômica da manutenção do jornalismo independente, quer seja social, ambiental ou investigativo.
Sempre foi muito difícil, mas, desde o ano passado, as dificuldades financeiras estão insuportáveis para os movimentos sociais e para a mídia independente. Vários veículos impressos e online deixaram de existir e outros seguirão pelo mesmo caminho porque não conseguem recursos mínimos para se manter.
Se defendemos a socialização da informação, não podemos depender do financiamento por parte do(a) leitor(a), quer seja por assinatura solidária, quer seja por doações – Henrique Cortez
O correto é que os veículos de comunicação sejam mantidos com recursos publicitários. Afinal, se as empresas “sustentáveis” investem milhões na mídia de futilidade pública, por que não na mídia socioambiental?
O problema é que ao capital não interessa a sobrevivência do jornalismo ambiental independente exatamente por causa desta independência, e não somos o que as empresas querem. As empresas se interessam em incentivar o consumo e não a informação e a consciência crítica da sociedade. Ou, de forma mais direta, querem que você compre, mas não pense. Então, a sobrevivência do jornalismo ambiental independente está seriamente ameaçada.
IHU On-Line – Que balanço o senhor faz da manutenção do EcoDebate no ar ao longo dos últimos 13 anos? Quais diria que foram os pontos altos e baixos nesse período?
Henrique Cortez – É difícil fazer uma avaliação isenta de seu próprio projeto editorial, mas, ainda assim, acredito que seja positivo. Aliás, qualquer experiência de democratização da informação é positiva, como qualquer experiência democrática.
Desde 2005, os temas socioambientais, quer globais, quer locais, passaram por várias fases. As discussões climáticas e da água avançaram bastante e a sociedade está mais preocupada com o assunto e as potenciais consequências futuras. E o jornalismo ambiental teve e tem um papel importante nestes avanços.
Por outro lado, em questões extremamente importantes, como saneamento, poluição e resíduos sólidos, os avanços foram mínimos. Nos temas relativos à conservação (florestal e biodiversidade) e na política de áreas protegidas, não avançamos e agora temos retrocessos já visíveis e que devem se aprofundar.
Mas e a mídia ambiental e o EcoDebate em especial nesse processo? Bem, por um lado nosso crescimento em alcance e leitores, ao longo dos anos, demonstra que o interesse em informações socioambientais confiáveis e de base científica aumentou bastante. De outro lado, ainda estamos presos ao nicho mais informado e consciente.
Esse, até agora, é um limite que toda a mídia independente encontra. A maioria da população não quer se interessar pelo que informamos.
A sobrevivência do jornalismo ambiental independente está seriamente ameaçada – Henrique Cortez
Paciência, fazemos o que está ao nosso alcance, da melhor forma que conseguimos. O(a) leitor(a) tem direito a optar pela informação alienante e descompromissada, mas nós não temos direito à omissão.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Henrique Cortez – Acho importante que a sociedade compreenda que nosso futuro comum está ameaçado, como podemos ver nas ações do governo Bolsonaro nas questões sociais, de direitos humanos, previdenciárias, ambientais, culturais e nas políticas educacionais.
A alienação, o descompromisso para com a realidade, é uma opção pessoal reconfortante. E nós, da mídia socioambiental, não conseguimos ‘conversar’ com esta maioria da população – Henrique Cortez
Mas não é preciso genialidade para compreender que um projeto de país não é construído a partir de discursos rasos, chavões, frases de efeito e bravatas. Que futuro será construído com retrocessos?
A caminho da 2ª década do século XXI, vemos a defesa de ideias que já eram equivocadas na 1ª metade do século XX. O Brasil sempre chegou atrasado ao futuro. Mas agora, ao que parece, chegaremos atrasados ao passado – Henrique Cortez
Nota:
[1] Movimento de milícias nos Estados Unidos, Wikipédia, a enciclopédia livre. (Nota do entrevistado)(EcoDebate, 16/05/2019) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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