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terça-feira, 21 de junho de 2022
A sorte trágica dos índios e do Brasil
Por Ulisses Capozzoli –
Passei praticamente os anos 1990 e alguns outros depois fazendo trabalhos na Amazônia. Alguns longos, como um caderno especial do então “Estadão” de um domingo (8 de dezembro de 1996) sobre índios brasileiros: quem são, quantos são, a que troncos linguísticos pertencem e onde estão, entre uma infinidade de outros dados. Foi o que me levou ao fascinante mas também apreensivo Vale do Javari, local da mais recente catástrofe deste país em que, a se considerar um dos slogans da ditadura militar, Deus abriu mão da nacionalidade. Deus, que segundo os generais e seus ministros sebosos (alguns deles ainda dando as cartas aqui e ali) era “brasileiro”. O cinismo cretino e grosseiro de sempre. Truculentos como só os brutos podem ser.
Muitas vezes, sob enorme pressão emocional, caí no choro. Não há como evitar. Não chorei a dor dos povos indígenas/caboclos na frente deles, por uma questão de pudor e respeito. Chorei dissimuladamente, à beira do rio, no interior de uma maloca em que estivemos abrigados, eu e Itamar Miranda, o coração mais generoso que encontrei em uma redação de jornal com sua fauna diversa: Gente adorável & repugnante. No segundo caso, pouco competentes, invejosos, raivosos, dissimulados, cheios de ressentimento. Itamar, do outro bloco: afável, adorável, afetivo, com abertura mental/ espiritual de que os outros se ressentem. Por isso eram/são o que são.
No Javari encontramos Sydney Possuelo então responsável pelos isolados num contato com um grupo Korubo, isolados mas, ainda assim, já alvos de pescadores e madeireiros que subiam de barco os rios da região: O Itaquaí com barra junto a Atalaia do Norte, ou o Javari que nasce no Peru e corre a nordeste para a vasta calha do Amazonas, delimitando a fronteira com o Brasil. Nos anos 90 os korubo, conhecidos como “caceteiros”, por utilizarem borduna em lugar de arco e flecha, já eram alvo de disparos de armas de fogo enquanto recolhiam ovos de tracajá nas areias claras da rede de águas da reserva indígena. O Brasil é tanto fascinante quanto desconhecido e os brasileiros os que mais ignoram onde vivem.
Passamos pelo Médio Xingu e ali ouvimos o dramático relato de Prepori, já um velho guerreiro, líder dos Kaiabi, magros, de estatura mais elevada, cultores da palavra, enquanto outros povos são afeitos a outras formas de expressão artística.
Prepori que conviveu com os irmãos Villas-Boas na criação do Parque Indígena do Xingu havia retornado de suas antigas terras, agora a cidade de Alta Floresta, ocupada por pizzarias ruidosas, produtores rurais de botas de bico fino e picapes brancas de grande porte que deixam uma cauda de poeira por onde passam. Prepori se referiu aos macacos magros ainda que o asterismo das Plêiades, elevado no céu, tradicionalmente apontasse que deveriam estar gordos. Então desfiou a diversidade de mortes a que estavam e continuam, agora mais que antes, expostos: envenenamento, transmissão proposital de doenças (varíola, “bixiga”) assassinatos por armas de fogo e invasões por mineração, caça e uma diversidade de outros propósitos criminosos.
Num monomotor, numa tarde chuvosa, cruzando com bandos de araras em vôo baixo sobre a floresta, fomos até o território Krenakarore (Panará), os “índios gigantes” que haviam acabado de retornar às suas antigas terras, depois de terem sido conduzidos ao Xingu pelos Villas Boas para evitar a mortandade produzida por doenças transmitidas por caminhoneiros com a abertura da Belém-Brasília. A BR 010, que se estende por 2 mil quilômetros e, agora, escoa a produção do agronegócio para o exterior. O índio do contato, por sua estatura elevada fez com que se generalizasse a falsa idéia de “índios gigantes” em relação aos Krenakarore. Nu, como ocorre com muitos povos indígenas na vida diária, o índio do contato levou a censura a exigir que a foto publicada na capa de “O Globo” tivesse seu sexo coberto por uma tarja preta. Suma ignorância e puritanismo vulgar cultivado por reprimidos/repressores. Esse mesmo índio, segurando uma neta pelas mãos, quando visitamos sua aldeia, tinha tido seu tratamento de tuberculose interrompido pela terceira vez.
Em 2002 visitei os Zoé, inicialmente contatados pelo grupo evangelizador americano “Novas Tribos”, no noroeste do Pará, com a floresta marcada por riscos vermelhos de garimpo observados do ar, onde Sula Miranda, a “rainha dos caminhoeiros” fez shows pagos literalmente a peso de ouro. O Brasil profundo e seus paradoxos ainda mais insondáveis. Os missionários, além da religião indevida, como se os índios precisassem disso para viver, levaram com eles uma série de doenças com mortes inevitáveis, antes que a Fundação Nacional do Índio (Funai) interditasse o acesso dos invasores sob a direção ainda de Sydney Possuelo. Os Zoé, gentis e acolhedores como são os Tupi.
Darcy Ribeiro, o fascinante e irreverente Darcy, é um dos autores que defendem uma população em torno de 5 milhões de indígenas no que seria conhecido como Brasil quando Cabral e seus marinheiros desembarcaram na Bahia para formalizar o descobrimento de que se tinha consciência havia muito tempo. Evidência disso foi o Tratado de Tordesilhas, de 1494, que portugueses fizeram com espanhóis para assegurar posse de uma terra de que já tinham conhecimento.
O contato foi dizimador para o lado dos antigos ocupantes, os mesmos que receberam os recém-chegados com acolhimento que ainda não se extinguiu. Os índios tiveram clara consciência disso, como demonstra a Confederação dos Tamoios, revolta ocorrida entre 1554 e 1567 liderada pelos caciques Tupinambás, Aimberê (nome de rua na zona oeste de São Paulo) e Cunhambebe. Os Tupinambá antropófagos descritos pelo explorador alemão Hans Staden, no primeiro livro publicado sobre o Brasil. Os Tupinambá que comercializavam com os franceses, a quem se aliaram, e odiavam os portugueses pelo hábito da escravidão que definiria a sorte trágica do Brasil.
Créditos da Imagem Destaca: Raoni, líder dos Kayapó, um dos resistentes à invasão e destruição dos valores indígenas acelerada com governo atual. Foto ISA.
#Envolverde
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