Powered By Blogger

quinta-feira, 5 de julho de 2018

O discurso da modernização levará ao desmonte do sistema regulatório dos agrotóxicos

O discurso da modernização levará ao desmonte do sistema regulatório dos agrotóxicos. Entrevista especial com Fernando Carneiro

IHU
A decisão favorável da Comissão Especial da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei nº 6.229/2002, que propõe a simplificação do registro de agrotóxicos no país, “vai representar, para o Brasil, um retrocesso de 30 anos em relação ao que podemos considerar como cuidados necessários em termos de saúde e meio ambiente”, avalia Fernando Carneiro, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz do Ceará, na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line.
Segundo ele, o PL proposto pela bancada ruralista é sustentado pelo discurso da modernização e por uma crítica ao processo de registro dos agrotóxicos no país, entretanto a nova legislação não propõe reavaliar o corpo técnico dos órgãos envolvidos no processo. “No Brasil, o agronegócio argumenta que o registro dos agrotóxicos é muito lento e não se discute, por conta disso, o melhoramento dos órgãos responsáveis. O órgão similar à Anvisa nos EUA, que cuida da análise toxicological (FDA), tem 700 funcionários, enquanto a Anvisa tem 30. Essa situação não está sendo discutida no sentido de modernizar o país em relação aos agrotóxicos. Essa situação não está sendo discutida no sentido de modernizar o país em relação aos agrotóxicos. Os ruralistas usam o discurso da modernização para flexibilizar critérios de saúde e ambiente para permitir novos registros”, critica.
Fernando Carneiro | Foto: João Vitor Santos - IHU
Fernando Carneiro | Foto: João Vitor Santos – IHU

Fernando Carneiro é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, especialista em Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências da Saúde — área de Concentração de Saúde Ambiental pelo Instituto Nacional de Salud Pública de México e doutor em Epidemiologia pela UFMG. Atualmente é pós-doutor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo como orientador o Prof. Boaventura de Sousa Santos. Foi consultor do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Saúde e servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. É pesquisador da Fiocruz Ceará e do NESP UnB. Atualmente integra o GT de Saúde e Ambiente da Abrasco e o Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas – Obteia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Como o senhor avalia a decisão da Comissão Especial da Câmara que decidiu pela simplificação do registro dos agrotóxicos? O que deve mudar na regulamentação de registro dos agrotóxicos em relação ao modo como a regulamentação ocorre hoje?
Fernando Carneiro — A decisão da Comissão Especial vai representar, para o Brasil, um retrocesso de 30 anos em relação ao que podemos considerar como cuidados necessários em termos de saúde e meio ambiente. A lei que será revogada é de 1989, mas para a época ela foi muito importante, porque a regulação era muito limitada e, inclusive, essa lei cunhou o termo agrotóxicos, dando o nome adequado à substância com a qual estamos lidando.
Num momento em que o mundo todo, de alguma forma, está preocupado com as questões ambientais que têm repercussão na saúde, o Brasil vai regredir nesse assunto. Então nós temos que começar a dar o devido nome a tudo isso que está acontecendo, porque o discurso do agronegócio é o discurso da modernização, mas nunca vi uma modernização que implica em maiores riscos para a saúde. Para mim, ser moderno hoje significa considerar o respeito à saúde e ao meio ambiente sustentável. Portanto, há uma contradição entre o discurso e a prática.
IHU On-Line — Quais são as justificativas e o discurso da Comissão para permitir a simplificação do registro de agrotóxicos? Por que esse tipo de proposta é cogitado no país? Quais são os interesses em jogo nessa medida?
Fernando Carneiro — Essa pergunta é importante porque esse discurso é uma retórica que precisa ser confrontada com a realidade. Quando o setor do agronegóciodiz que está modernizando, pergunto: modernizar significa a valorização de uma metodologia, no caso de avaliação de risco, que permitirá a entrada de produtos, por exemplo, carcinogênicos? Isso é ser moderno? Na década de 1980, durante a ditadura militar, o Brasil criou Cubatão e os militares tinham um discurso muito parecido com esse da modernização, e diziam: poluição, venha a nós, isso é desenvolvimento. Parece que voltamos à década de 1980 e ao mesmo discurso falacioso de que é o agronegócioque alimenta o Brasil. O censo agropecuário do IBGE de 2016 mostra que a agricultura familiar é responsável por quase 75% dos alimentos que vão para a mesa do brasileiro e que grande parte da produção do agronegócio é exportada como commodities para China e Estados Unidos, sem ter relação direta com a alimentação humana.
Brasil, muito pelo contrário, corre o risco de voltar para o Mapa da Fome, porque o que determina realmente a segurança alimentar das pessoas é a distribuição de renda, o acesso a políticas públicas de saúde, educação, moradia e transporte, ou seja, tudo isso que não estamos vendo no Brasil recentemente.
O discurso da bancada ruralista é altamente falacioso, tanto que está perdendo a guerra por argumentos: já foram publicadas mais de 20 notas técnicas contrárias a esse PL. Como a Comissão não quis fazer esse debate, o setor está contratando publicitários para vender clichês, porque não tem como vencer o debate técnico, pois no debate técnico existe quase uma unanimidade nacional entre as instituições, com exceção da Embrapa.
Nós acabamos de organizar um Dossiê Científico contra esse PL e a favor do PNARA (Abrasco e ABA-Agroecologia), que envolveu mais de 20 notas técnicas, o qual está disponível na página da Abrasco e da ABA –Agroecologia). Inclusive fizemos uma análise da nota técnica da Embrapa, mostrando os conflitos de interesse que aparecem na nota, a qual foi redigida por um ex-funcionário da Syngenta, que agora é concursado da Embrapa.
IHU On-Line — O senhor disse que “agrotóxico” é o nome correto para essas substâncias. O PL, de outro lado, prevê que a palavra “agrotóxico” seja substituída por “pesticida”. Qual é a razão dessa mudança? Existe um significado simbólico ou estratégico por trás dessa proposta ou trata-se de alguma questão técnica?
Fernando Carneiro — Essa mudança tem a ver com o que é chamado de greenwashing, que na tradução literal significa “lavagem verde”. Trata-se de uma estratégia do capital de “dourar a pílula”, de evitar “dar nome aos bois”, ou seja, de evitar dizer que agrotóxico é um veneno e é tóxico. Alterar o nome significará um recuo se a mudança for efetivada, porque o termo agrotóxico qualifica melhor o tipo de substância com a qual estamos lidando. Estamos falando de produtos que podem causar danos à saúde e que têm que ser chamados pelo nome adequado. Querem resolver o problema dos agrotóxicos no Brasil mudando o nome, mas não é isso que irá resolver os problemas que de fato existem, como a falta de fiscalização do uso de agrotóxicos, a avaliação de impactos que está havendo no país etc. O agrotóxico é a terceira causa de morte por suicídio entre jovens no Brasil. Como pode ser chamado de defensivo algo que tem, em média, uma letalidade de 70%? É outra falácia.
IHU On-Line — Que tipos de agrotóxicos não podem ser regulamentados e passariam a ser regulamentados com a mudança na legislação?
Fernando Carneiro — Qualquer um dos agrotóxicos que já foi identificado como causa de câncer, causa de má-formação congênita, poderá ser comercializado segundo essa nova legislação, desde que seja utilizado conforme algumas avaliações de risco, porque pode ter um risco aceitável; essa é a questão.
Por exemplo,é a IARC, uma agência de pesquisa relacionada ao câncer vinculada a OMS, que classificou o Glifosato como provável carcinógeno para humanos. Ele é hoje responsável por 50% das vendas de agrotóxico no Brasil. Se já existe uma suspeita como essa encontrada no glifosato, não haveria razão para usá-lo, mas a nova lei permitirá seu uso. O glifosato é um exemplo interessante porque ele é de faixa verde, supostamente de baixa toxicidade, mas os estudos estão dizendo que as coisas não são bem assim. A Monsanto respondeu a essas pesquisas fornecendo alguns dados, mas como são as empresas que fornecem esses dados aos órgãos reguladores, isso dá margem para suspeitas, como a que está ocorrendo em relação às denúncias públicas de que a Monsanto escondeu parte dos estudos sobre o glifosato.
IHU On-Line — Quais serão as implicações dessa medida caso ela seja aprovada na Câmara?
Fernando Carneiro — O Brasil vai se tornar um país atrativo para quem quer lucrar fácil e rápido com os agrotóxicos, porque o atual sistema regulatório seria praticamente desmontado e toda a decisão vai ficar concentrada no setor de agricultura. Isso pode levar à aprovação de substâncias que serão muito danosas ao meio ambiente e irão afetar a flora e a fauna, as áreas de conservação, áreas de interesse de biodiversidade, assim como a saúde não só do trabalhador, mas da população em geral que consome alimentos contaminados por esses produtos. É uma luz amarela, quase vermelha, que está se acendendo e que vai na contramão da história e das pesquisas científicas que estão sendo feitas. Vou mencionar o exemplo do Dossiê, que fizemos recentemente contra o PL: são fartas as evidências de que os agrotóxicos causam impactos na saúde. Mas estamos falando de um grupo da bancada ruralista que é financiado pela indústria química, como demonstram as doações oficiais de campanha, e a bancada age segundo os interesses da classe ou das empresas que financiam a bancada.
Quando os agrotóxicos começaram a ter seus riscos mais evidenciados, na década de 1960 — época em que também foi publicado o livro Primavera Silenciosa —, foi criada nos Estados Unidos uma comissão técnico-científica no governo Kennedy. Essa comissão gerou uma série de legislações e serviu de base para a criação da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. Então, nos EUA, quando os riscos dos agrotóxicos foram evidenciados, foram sendo tomadas medidas de regulação e proteção no sentido de melhorar a regulação do Estado em relação ao agronegócio. No Brasil, o agronegócio argumenta que a liberação dos agrotóxicos é muito lenta e não se discute, por conta disso, o melhoramento dos órgãos de registro. O órgão similar à Anvisa nos EUA, que cuida da análise toxicological (FDA), tem 700 funcionários, enquanto a Anvisa tem 30. Essa situação não está sendo discutida no sentido de modernizar o país em relação aos agrotóxicos. Os ruralistas usam o discurso da modernização para flexibilizar critérios de saúde e ambiente para permitir novos registros.
IHU On-Line — A decisão da Comissão Especial da Câmara pode ter alguma relação com as eleições deste ano?
Fernando Carneiro — Essa bancada é financiada oficialmente pela indústria química e do agronegócio, sem falar do que pode acontecer com uso do caixa 2. Então, a bancada ruralista cumpre o script determinado por essas indústrias e setores que devem estar criando mecanismos para financiar essa bancada. Duvido que a sociedade queira votar nesses 18 deputados que votaram a favor dos agrotóxicos, mas como eles terão muito recursos, poderão compensar essa medida eleitoralmente. Eles usaram essa questão dos agrotóxicos como moeda de troca política caso seja votada a Previdência.
IHU On-Line — Como a votação repercutiu entre órgãos ambientais e da área da saúde? Que notícias o senhor tem sobre isso? Está sendo preparada alguma medida para responder à decisão?
Fernando Carneiro — A indignação está aumentando. O que está acontecendo é um absurdo tão grande que se não gritarmos e defendermos os avanços conquistados, eles vão “passar o trator”. Mas a bancada ruralista está contratando publicitários e fazendo parcerias com o Movimento Brasil Livre – MBL para criar fake news e fazer o embate nas redes sociais. Esse é o impacto mais recente.
Como resposta, a Abrasco e a ABA-Agroecologia publicaram o dossiê que mencionei anteriormente, com notas técnicas dos órgãos ambientais. Também apresentamos uma proposta para o Congresso, que consiste num outro PL, o PNARA que visa a redução do uso dos agrotóxicos, o qual já teve a possibilidade de ter virado Programa, mas Dilmanão teve coragem de enfrentar o Congresso e publicá-lo. Mas essa proposta foi reativada no Congresso e nós fizemos a defesa da agroecologia para demonstrar que ela é ciência, e não achismo, porque a agroecologia tem relações com a saúde e com os alimentos. Fizemos vários textos para desmontar os clichês que o agronegócio vai criando. A próxima etapa é trabalhar na comunicação com a sociedade, porque temos que pressionar mais o Congresso, para colocar essa pauta a nosso favor.

(EcoDebate, 05/07/2018) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]


Nenhum comentário: