O religioso dedicou a vida à fé e à ciência, tornando-se em um dos maiores entomólogos do mundo. Seu trabalho inclui a publicação de 216 estudos e a descrição de 500 espécies ou gêneros
Com a batina preta de mangas compridas, padre Jesus Santiago Moure rezava cedo as missas na Igreja Matriz de Curitiba. Depois da bênção final, o velhinho de olhos estrábicos podia seguir para algum convento claretiano, ordem religiosa à qual pertencia, para ouvir confissões das freiras ou celebrar mais uma vez. Geralmente, porém, não era o que fazia. Deveres cumpridos com Deus, Moure dedicava-se a seu outro sacerdócio: o estudo das abelhas.
Cientista autodidata, Moure é considerado um dos maiores entomólogos do mundo, com 216 trabalhos publicados, 500 espécies ou gêneros de abelhas descritas e um arquivo de 12 mil itens, a “Bíblia” dos zoólogos. Além disso, é descrito como o “papa” da taxonomia numérica, uma metodologia de classificação das espécies. Ao trocar informações com colegas de todas as partes do globo, o padre ajudou a colocar a ciência brasileira nos meios acadêmicos internacionais, ainda na década de 1940. Visionário, foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Morto aos 97 anos no último 10 de julho, vítima de falência múltipla de órgãos, o “padre das abelhas” — alcunha recebida no Paraná, onde viveu por quase sete décadas —, não via conflitos entre ciência e fé. Em 1990, ele deu uma entrevista à revista especializada Ciência Hoje, explicando seu ponto de vista. “Deus fez o mundo pela evolução; nós não descobrimos absolutamente nada. Estamos apenas procurando, na medida do possível, reescrever a história do mundo. A atitude que sempre tive em relação à natureza é a seguinte: descobrir como é que as coisas se fazem de acordo com a lei de Deus. E a lei de Deus é a lei da evolução correndo no tempo.”
O padre darwinista não escapou de críticas no meio religioso. Quando seminarista — Moure entrou para a ordem dos claretianos aos 12 anos de idade, em 1925 —, ganhou a antipatia de alguns professores sacerdotes, ao questioná-los diretamente. “Passei a pensar no assunto desde que comecei a observar diretamente os animais e verificar as profundas relações que havia entre eles. Entusiasmado com algumas leituras, tive muitas discussões nas aulas de filosofia provocadas pelas perguntas um tanto perturbadoras que eu fazia ao professor. Isso trouxe certos problemas no seminário”, confessou à Ciência Hoje.
Depois de ordenado, continuou defendendo que “as explicações sobre a evolução talvez ainda não estejam completas, mas a evolução em si é um fato histórico de tal ordem que não se pode contestar”. Por isso, teve sérios atritos com seus superiores. “Tanto que acabei sendo expurgado da direção da Ação Católica (conjunto de movimentos criados pela Igreja), a Juventude Universitária Católica e a Juventude Operária Católica”, contou o padre, certa vez. Segundo ele, dom Hélder Câmara “fez força” para que deixasse as entidades. “Tive com todos eles discussões mais ou menos acaloradas, pois não tinham qualquer noção do que era evolucionismo, julgando-o uma coisa inventada por alguns cientistas para atacar a religião. Foram problemas que me atingiram no início de minha carreira científica.”
Já entre leigos, Moure não suscitava a discussão. “Nos dois anos que tive de convívio com padre Moure, jamais ouvi dele alguma referência à religião dentro de sala de aula”, conta o agrônomo e ecologista James Pizarro, que foi amigo e aluno do sacerdote na pós-graduação de entomologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). No mesmo ano da fundação da instituição, 1938, Moure foi o responsável pela criação do Departamento de Zoologia.
Vocação
Jesus Santiago nasceu em Ribeirão Preto (SP), em 2 de novembro de 1912, dois meses depois que os pais, espanhóis, imigraram para o Brasil. O pai, Miguel, veio trabalhar como engenheiro nas ferrovias da extinta Companhia Mogianoa. Apesar do apego à família — mesmo idoso, não perdia uma festa de fim de ano —, resolveu ser padre e, ainda menino, começou os estudos no Seminário Claretiano de Curitiba. Mas, antes mesmo que percebesse a vocação sacerdotal, ele já havia desenvolvido o amor à história natural. Quando estudava as primeiras letras no interior paulistano, fazia excursões com os colegas de escola no bosque de Ribeirão Preto. Lá, caçava pedras, bichos e plantas.
A primeira pessoa a incentivá-lo foi o professor do grupo escolar, apelidado pelas crianças de Bigodinho de Arame. Nas idas ao bosque, o mestre dava aulas práticas de biologia aos alunos. “Era o melhor dia da semana”, contou o padre. No seminário, os estudos de teologia, latim, grego, espanhol e hebraico, entre outras disciplinas, afastaram Moure temporariamente dos insetos. Mas não demorou para que ele voltasse à primeira paixão da vida. Na década de 1930, na chácara dos claretianos em Rio Claro (SP), onde foi fazer os cursos superiores de filosofia, matemática, história natural e física, passou a colecionar um inseto conhecido como tesourinha. Foi a primeira de muitas coleções.
Já ordenado, Moure aproximou-se mais da ciência. Em 1937, em São Paulo, conheceu pesquisadores do Museu Paulista e ficou amigo de um deles, Frederico Lane. Os estudos de latim não foram úteis somente para rezar as missas que, naquela época, eram celebradas no idioma clássico. Graças ao conhecimento da língua, ele ajudou a traduzir textos de entomologia. Não demorou para que começasse a escrever artigos científicos, primeiramente com Lane, depois, como único autor.
A dedicação ao estudo das abelhas exigia de Moure horários rígidos. Mesmo já idoso, dormia três horas e meia por dia. Era um homem metódico, na descrição do ex-aluno James Pizarro, que conviveu com o padre na década de 1970. “Ele era assíduo, pontual, sumamente disciplinado, objetivo, direto no dizer e querer as coisas, exigente e extremamente crítico, inclusive sobre os colegas”, descreve. “A convivência era fácil, mas tinha extremada dificuldade de falar outros assuntos que não fossem aqueles pertinentes às suas abelhas, à entomologia em geral, à ciência e às teses”, conta.
Batismos
Entre uma discussão científica e outra, Moure era o “padre oficial” dos amigos cientistas. Além de batizar, realizava casamentos e dava bênçãos. “Quando fui fazer o curso em Curitiba, eu já tinha dois filhos e tive a terceira filha. Me empenhei para que ele fosse o sacerdote que batizou minha filha, o que realmente ocorreu. Tenho bem guardado nos meus arquivos a lembrança de batismo assinada por ele”, diz Pizarro.
As tarefas religiosas, porém, nunca o afastaram da devoção às abelhas. O primeiro trabalho sobre o tema foi publicado em 1940. Dez anos depois, começou uma série de viagens internacionais. Chegou a ser convidado para ser professor da Universidade da Califórnia, Berkeley, mas não quis deixar o Brasil. Nem com a aposentadoria compulsória, em 1982, ele abandonou a ciência.
Depois dos 90 anos, padre Moure continuava ativo, palestrando onde fosse convidado. No fim da vida, foi morar em Batatais, interior de São Paulo. Sentida pela comunidade científica, sua morte foi pouco comentada pela imprensa leiga. “Por não ser muito afeito à exposição pública, ele nunca procurou um lugar na mídia. Sinceramente, acho que ele foi um dos maiores especialistas mundiais em entomologia, sobretudo em abelhas africanas e em sistemática, a classificação de insetos. Sem medo de errar, acho que ele é muito mais conhecido no exterior do que no Brasil. ‘Santo de casa não faz milagre’”, sintetiza o amigo James Pizarro.
Fontes bibliográficas: Moure 90 anos: uma trajetória em imagens, de A. R. Melo e I. Alves-dos-Santos; Homenagem aos 90 Anos de Jesus Santiago Moure, Editora Unesc; Revista Brasileira de Entomologia, volume 54; Ciência Hoje, edição janeiro/fevereiro de 1990.
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FONTE : CORREIO BRAZILIENSE,Seção "Eu, estudante",13/01/2011,http://www.correioweb.com.br/euestudante/noticias.php?id=16823
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