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sábado, 29 de abril de 2023
O racismo estrutural na escola e a importância de uma educação antirracista
Stephanie Kim Abe, CENPEC –
Entenda como o racismo se manifesta em espaços educativos e a importância de combatê-lo, para uma educação de qualidade
Quando analisamos os indicadores de escolaridade da população com recorte de raça, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE (2018) apontam uma evidente desvantagem da população negra ou parda.
Já na Educação Infantil, o acesso a esse direito apresenta índices diferentes, conforme o grupo racial: 53% das crianças pretas ou pardas de 0 a 5 anos de idade frequentavam a creche ou escola em 2018, contra 55,8% das crianças brancas.
Entre a população preta ou parda, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais é de 9,1%, enquanto o mesmo indicador é de 3,9% na população branca. Entre a população negra ou parda, a proporção de pessoas de 25 anos ou mais com pelo menos o Ensino Médio completo é de 40,3%. Já entre os brancos, o índice é de 55,8%.
A proporção da população preta ou parda entre 18 e 24 anos com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam a escola em 2018 era de 28,8%, frente 17,4% de brancos na mesma situação.
Essa profunda desigualdade escolar tem reflexos graves, como na renda e na expectativa de vida dessas populações.
De acordo com os dados trazidos pelo Relatório Reprovação, Distorção Idade-série e abandono escolar, do Fundo das Nações Unidas para a Infância UNICEF, metade dos mais de 910 mil estudantes que deixaram as escolas municipais e estaduais de todo o país em 2018 eram pretos e pardos (453 mil). Além disso, as populações preta, parda e indígena têm entre 9% e 13% de estudantes reprovados, enquanto entre brancos esse percentual é de 6,5%.
Também vale notar que, de acordo com o documento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) Perfil do Educador da Educação Básica, realizado com dados do Censo Escolar 2017, 42% de docentes da educação básica eram brancos, contra 4,1% de pretos e 25,2% de pardos.
Racismo estrutural e educação antirracista
Foto: Arquivo pessoal
Quem nunca para para olhar esses números e perceber como refletem as desigualdades da sociedade brasileira não se dá conta de que elas são fruto do racismo estrutural presente em nosso país. Isso quer dizer que ele permeia, ainda que inconscientemente, as ações e estruturas de diferentes instituições da sociedade, como o próprio ambiente escolar.
Para explicar melhor o fenômeno e destrinchar o assunto, o Portal CENPEC Educação conversou com Iracema Santos do Nascimento, professora doutora na Faculdade de Educação da USP (FE-USP) e ex-coordenadora executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2005 a 2014).
Nesta entrevista, Iracema ressalta a importância desse debate – que é uma luta de muitos anos dos movimentos negros – e quais ações e políticas públicas precisam ser priorizadas para que haja uma educação de qualidade para todos e todas.
“O racismo estrutural estrutura a sociedade brasileira desde a invasão portuguesa nessas terras. Assim, quando pensamos na organização das nossas escolas, essa discussão não existia. Atualmente, a educação antirracista (que vem sendo proposta há décadas) ganhou bastante força, e esse debate tem sacudido todas as pessoas, negras e não-negras, brancas e não-brancas, a não mais compactuar com essas estruturas. Esse é um chamamento ético, que se impõe pela força da causa”, defende.
Portal CENPEC Educação: Como a gente pode perceber o racismo estrutural no universo escolar?
Iracema Santos do Nascimento: A percepção do racismo estrutural na escola, assim como em outras instâncias, é algo que por vezes se torna difícil porque, sendo estrutural, o racismo muitas vezes se manifesta nas sutilezas. É mais óbvio quando se trata de uma discriminação, uma injúria racial, em que um sujeito comete um ato contra o outro. Mas como estamos falando de racismo estrutural, isso significa que não está no sujeito, mas nas estruturas, ou seja, naquilo que dá base às relações.
Mesmo afrodescendentes ou sujeitos não-brancos têm dificuldades de perceber ou denominar essas situações ou atos, e isso demanda um tempo de elaboração – do sujeito e dos sujeitos envolvidos.
“Uma manifestação do racismo estrutural é o silenciamento da instituição diante de situações racistas. Parece até contraditório falar que o silêncio é uma manifestação. Mas nesse caso é sim.”
Então, quando uma criança negra é chamada pelo colega de “macaco”, “pretinho”, ou ouve que “o cabelo dela é feio, é ruim” e as pessoas adultas responsáveis pelo processo educativo não fazem nada – ou seja, silenciam -, temos uma manifestação do racismo estrutural. Ainda que elas tenham se sentido incomodadas e não tenham agido por não se sentirem preparadas para lidar com o fato, se elas não levam isso adiante e não procuram ajuda, essas pessoas estão compactuando com o racismo estrutural.
Não ter a representatividade de afrobrasileiros e afrobrasileiras – vale destacar, em situações positivas –, seja nas imagens que fazem parte da decoração do espaço escolar, seja no material didático, nos materiais de pintura ou entre os brinquedos na Educação Infantil (como bonecos e bonecas negras), também é um indicativo de racismo estrutural na escola. Ou, por exemplo, quando vemos pessoas negras apenas no quadro de apoio (responsáveis pela limpeza e pela comida), e não em cargos de direção ou coordenação.
Portal CENPEC Educação: Como a educação antirracista está ancorada nas leis?
Iracema Santos do Nascimento: Podemos percebê-la em três grandes leis estruturantes e estruturais do sistema de educação: a Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – Lei 9.394/1996), e o Plano Nacional de Educação (PNE – Lei n° 13.005/2014).
Na Constituição Federal, existem vários artigos que remetem ao tema. O art. 3º estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, e tem quatro incisos:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ainda que não falem de educação, obviamente não vamos superar as desigualdades e combater as discriminações sem educação.
No art. 5º, que versa sobre os direitos fundamentais, temos o inciso 42, que estabelece o racismo como crime inafiançável.
Já no art. 206, sobre os princípios da educação brasileira, temos o inciso I, que trata de igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola. Não há menção necessariamente à educação antirracista, mas nós sabemos que nem todos os grupos populacionais têm as mesmas condições de acesso às escolas e daí a necessidade da educação antirracista.
Na LDB, o art. 3º reitera os princípios estabelecidos na Constituição para a Educação, e insere outros. Mas o principal artigo que ancora a educação antirracista na legislação educacional está no artigo 26A, que foi primeiramente adicionado pela Lei 10.639/2003 e depois suplantado pela Lei 11.645/2008, que define que o currículo da Educação Básica deve ter conteúdo das culturas africana, afrobrasileira e indígena.
“No PNE, a meta 7 define qualidade, e a estratégia 25 menciona diretamente a educação antirracista. Essa foi uma grande conquista de educadores e educadoras negros e negras durante a tramitação do Plano, porque explicita claramente que, para que o Brasil consiga estabelecer de fato educação de qualidade, é preciso superar o racismo na educação, é preciso ter uma escola antirracista.”
O combate ao racismo no Plano Nacional de Educação
META 7: Fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem, de modo a atingir as seguintes médias nacionais para o Ideb.
Estratégia 7.25: Garantir, nos currículos escolares, conteúdos sobre a história e as culturas afro-brasileira e indígenas e implementar ações educacionais, nos termos das Leis nos 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e 11.645, de 10 de março de 2008, assegurando-se a implementação das respectivas diretrizes curriculares nacionais, por meio de ações colaborativas com fóruns de educação para a diversidade étnico-racial, conselhos escolares, equipes pedagógicas e a sociedade civil.
Fonte: (PNE – Lei 13.005/2014)
Portal CENPEC Educação: Você mencionou a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” no currículo da educação básica. Qual foi a importância dessa lei e como você analisa a sua implementação?
Iracema Santos do Nascimento: Indubitavelmente, esta lei – e depois a Lei 11.645/2008 –, teve uma importância enorme ao pautar o debate da educação antirracista em todos os âmbitos educacionais. Mesmo que seja um debate de negação, no sentido de educadores(as), gestores(as) quererem negar a existência do racismo na escola e a necessidade desse debate. Ainda que ele ocorra dessa forma, o debate é importante, porque significa que há tensionamento.
A lei impôs uma agenda que teve um efeito dominó. Nos estados e municípios, muitas decisões foram tomadas nos últimos 17 anos, com relação a formação de docentes, produção de material (didáticos e paradidáticos) para uso em sala de aula, etc. Já tínhamos experiências antirracistas antes da lei, mas ela deflagrou esse processo nas escolas e secretarias.
“Aliás, é muito importante destacar e valorizar essas iniciativas. Há muitas escolas e professores(as) realizando experiências de educação antirracista em todo o Brasil, da Creche ao Ensino Superior. Isso sem contar as iniciativas comunitárias, como cursinhos populares. Esses grupos lutam pela inclusão, não apenas reivindicando, mas desenvolvendo e criando propostas antirracistas.”
Há também uma avaliação não tão positiva da Lei, quando nos referimos às expectativas criadas e ao papel do Estado brasileiro nesse processo. Nós nos ressentimos com relação à falta de apoio aos estados e municípios, e aos(às) gestores(as) dessas esferas, para a implementação da Lei, e à falta de investimento para o desenvolvimento de projetos permanentes.
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Portal CENPEC Educação: Qual é o papel das redes de ensino na efetivação de uma educação antirracista que vá além de projetos pontuais?
Iracema Santos do Nascimento: No âmbito do sistema educacional, instaurar instâncias que sejam núcleos ou coordenadorias de educação antirracista dentro da Secretaria de Educação – assim como foi, por exemplo, a Secretaria de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial (Seppir), quando instituída em 2003. Quando você tem uma coordenadoria que cuida das relações raciais, você está sinalizando a importância que dá ao tema e o seu peso político.
Além de instalar essa instância, é preciso destinar recursos e equipe, para que ela exista de fato e possa realizar um diagnóstico da rede e elaborar um plano de ação, de forma democrática.
Esse trabalho certamente resultará em formações e outras ações, como concursos que incentivem as escolas a desenvolverem projetos de educação antirracista – o que seria bem interessante para fortalecer quem já está fazendo isso e para incentivar quem ainda não começou.
As secretarias também podiam realizar mostras pedagógicas com o tema da educação antirracista, para incentivar os docentes a apresentarem suas ações e trocar experiências, e incentivar a elaboração de materiais.
Outro ponto fundamental é o incentivo à pesquisa, que pode e deve ser feito pelos(as) gestores(as) educacionais em parceria com a universidade e seus órgãos de pesquisa. A partir delas, serão criados conhecimentos sobre a questão do racismo e o seu enfrentamento na escola, mantendo o assunto em pauta permanentemente e extrapolando as fronteiras acadêmicas para circular no espaço e na comunidade escolar.
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Portal CENPEC Educação: Como a relação da escola com o território do entorno pode ajudar a combater o racismo?
Iracema Santos do Nascimento: A questão da escola enraizada em sua comunidade, e olhando para o território, é fundamental na educação brasileira. É, na verdade, um princípio pedagógico defendido pelo norte-americano John Dewey (1859-1952) e que Anísio Teixeira (1900-1971) incorpora na suas proposições político-pedagógicas. Ele defende o enraizamento da escola no território, inclusive por meio do currículo, que abarque os anseios e os saberes da comunidade.
“No caso do Brasil, onde o mito da democracia racial é parte componente desse país estruturalmente racista, esse enraizamento da escola no território tem um efeito especial, principalmente em territórios periféricos, onde estão a maior parte da população negra e indígena.”
Pensemos uma escola localizada na periferia da capital paulista, onde muitos jovens negros são assassinados pela polícia ou uma criança negra precisa levantar a blusa ao entrar em uma loja para mostrar que não está roubando. Se esta instituição está em parceria com o território, olha o que está acontecendo ao seu redor e reconhece os sujeitos e a realidade local, ela precisa colocar essa questão no seu currículo. O racismo deverá ser necessariamente discutido dentro da sala de aula, em vários componentes curriculares, e a escola vai desenvolver ações para enfrentar esse estado das coisas.
Portal CENPEC Educação: Que políticas públicas precisam ser priorizadas para que a educação antirracista ocorra de fato?
Iracema Santos do Nascimento: No que diz respeito à gestão geral das políticas educacionais, um primeiro ponto é rever quais são as prioridades, de forma a fazer com que as questões relativas às diferenças e as diversidades ganhem centralidade. Isso significa que ela vai disputar espaço com outros temas – por exemplo, a política de avaliação externa, com base em testes de aprendizagem.
Já ouvi muitas vezes depoimento de professoras que pararam de realizar certa atividade, como leitura literária com as crianças, porque precisavam prepará-las para a prova do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) ou, no caso do estado, do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp).
Para escolas implementarem projetos político pedagógicos comprometidos com uma educação antirracista, é preciso tempo de estudo e dedicação, para a elaboração, implementação e avaliação dessas atividades. Mas esse tempo é a todo momento disputado por demandas de toda ordem que recaem sobre a escola e isso interfere na prática pedagógica.
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