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sábado, 25 de julho de 2020
Florestas tropicais abrigam epidemias potenciais
Por Jornal da Ciência –
Regiões tropicais com a presença de florestas e alta biodiversidade de fauna silvestre são o tipo de ambiente propício para o surgimento de novas pandemias.
E o Brasil está nessa rota, alertam especialistas. É o que aponta um amplo estudo publicado em 2017 que mapeou os locais onde podem brotar os próximos surtos, as chamadas doenças epidêmicas emergentes (EID, na sigla em inglês).
Resultado de um trabalho conjunto de nove pesquisadores de universidades em Nova York, Londres, Roma e Queensland (Austrália), o estudo é intitulado “Global hotspots and correlates of emerging zoonotic diseases” (Pontos de acesso globais e correlatos de doenças zoonóticas emergentes, em tradução aproximada – Allen et al, 2017).
Mapa do risco de doenças epidêmicas emergentes (EID) – os valores indicam a probabilidade, quanto mais altos (amarelado), mais elevada. Fonte: Allen et al, 2017 (DOI: 10.1038/s41467-017-00923-8)
Mais recentemente, no início de julho, um novo estudo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e do Instituto Internacional de Pesquisa Pecuária
(ILRI), confirmou o diagnóstico. Intitulado “Preventing the next pandemic” o documento afirma que se os países não tomarem medidas drásticas para conter a disseminação de zoonoses, surtos globais como a covid-19 vão se repetir e se tornar cada vez mais comuns.
Surgida na China, a covid-19 é resultado de uma zoonose, um vírus que se hospeda em animais e de alguma forma é transposto para os humanos. É um ciclo que vem se repetindo há milênios, impulsionado pela domesticação dos animais. Da Peste Antonina (165-180 d.C.), a mais antiga que se tem notícia, até a covid-19, milhões de seres humanos perderam a vida por epidemias e pandemias em diferentes partes do planeta em contextos diversos, mas todos tinham em comum o fato de terem sido causados por zoonoses.
A partir de um modelo computacional que processa dados como densidade e crescimento populacional humano, latitude, precipitação de chuvas e presença de espécies selvagens, entre outros, os autores daquele estudo desenvolveram um índice que aponta o risco de EID zoonóticas. E a conclusão é que o risco é mais elevado em regiões tropicais que passam por mudanças no uso da terra e onde a biodiversidade da fauna silvestre é alta.
O mapa (ilustração acima) mostra os locais onde essa combinação resulta positivo para a possibilidade de surgimento de EID. “As zoonoses emergentes são consideradas ameaça crescente, como essa que estamos vivendo, não só para a saúde mundial, mas também os enormes prejuízos econômicos, algo que vem se acentuando nos últimos 20 anos”, afirma a ecóloga Mercedes Bustamante que é cientista, professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo ela, o Brasil pode ser um foco do surgimento de novas zoonoses em função da fauna muito diversa e o maior contato de seres humanos com sistemas naturais, provocado pelo desmatamento.
Morcegos e mosquitos
Enquanto a ciência já tem certeza sobre a periculosidade e o avanço das zoonoses, a forma como a transmissão passa dos animais para os humanos não é tão clara em muitos casos, especialmente no da covid-19. O médico virologista Pedro Fernandes da Costa Vasconcelos, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, hoje aposentado do Instituto Evandro Chagas (IEC), dedicou toda a sua vida profissional a este tema e participou diretamente na caracterização de mais de 10 mil isolados virais e identificação taxonômica de mais de 100 vírus novos para a ciência.
Segundo ele, ao mesmo tempo em que não há dúvidas hoje sobre a procedência chinesa da covid-19, ainda é um mistério a forma como o Sars-CoV-2 emergiu dos morcegos para se tornar o responsável por uma das maiores pandemias da história, atrás apenas da Gripe Espanhola, causada pelo H1N1, espécie do vírus Influenza.
“Há uma série de teorias, desde a liberação proposital, o que seria uma coisa maluca de se pensar, até um acidente de laboratório, que não deixa de ser possível, pois havia dois laboratórios em Wuhan trabalhando com o coronavírus”, avalia Vasconcelos. “Poderia ter havido contaminação de pessoas que estavam trabalhando no Instituto de Virologia de Wuhan, desenvolveram um quadro gripal e aí o vírus Sars-CoV-2 causador da covid-19 se disseminou.”
A contaminação através do morcego explica boa parte da história, mas não toda. Vasconcelos diz que a alimentação com estes animais não é problema, se eles forem cozidos ou assados. O problema é a manipulação do animal vivo. “O morcego tem um viroma espetacular”, diz o médico. “Eles são animais ecléticos, se deslocam muito facilmente voando, vivem em colônias e grupos altamente povoados e, portanto, se existir um vírus na colônia, a transmissão, seja respiratória, seja por brigas, mordedura, lambidas para se higienizar, é muito fácil.” Ele explica que estes animais têm uma enorme capacidade de albergar vírus e são eles também os hospedeiros primários do ebola na África.
Fica ainda a dúvida sobre como um vírus antigo e amplamente conhecido como o coronavírus se transformou em uma ameaça planetária para o ser humano. Vasconcelos responde: “Às vezes, mesmo vírus conhecidos emergem de repente, devido a condições ecológicas, epidemiológicas, ambientais favoráveis. Veja o que ocorreu com chikungunya e zika, vírus que foram isolados no final da década de 40, início de 50, que causavam poucas infecções quando surgiram, depois explodiram com extensas epidemias pelas condições favoráveis”.
Longe do olhar humano, no meio da mata fechada, os vírus circulam apenas entre os animais, mantendo-se dentro da cadeia natural. Quando grandes extensões de floresta são derrubadas, ação muitas vezes acompanhada de queimadas, muitos animais e insetos morrem, especialmente os que não têm agilidade na locomoção. Sobram as aves, os morcegos e alguns mamíferos. Os vírus então se adaptam a novos hospedeiros e migram para outras áreas dentro deles, chegando, muitas vezes dessa forma, aos humanos.
O médico acrescenta os riscos criados com o tráfico de animais silvestres que existe em todo o País. “O tráfico de animais provavelmente é uma forma de transporte e dispersão de vírus”, afirma.
Arbovírus
Embora propício a zoonoses, o meio ambiente no Brasil não oferece mais riscos para um novo vírus que cause doenças respiratórias graves, como o Sars-CoV-2, do que outros países, dizem estes especialistas. Aqui é território dos chamados arbovírus – vírus transmitidos a humanos por artrópodes – cujo potencial de transmissão é menor que os transmitidos por vias respiratórias.
As investigações sobre arbovírus na região amazônica se iniciaram em 1954, por um convênio entre o governo, através do Instituto Evandro Chagas e a Fundação Rockefeller. Nestes mais de 60 anos, segundo Pedro Vasconcelos – que iniciou seu trabalho no IEC nos anos 1980 –, foram isolados 220 tipos de arbovírus. Deste total, 175 foram isolados pela primeira vez no Brasil e 115 eram completamente novos para a ciência, enquanto 37 já foram associados a doenças em humanos em geral.
Onze daqueles vírus estão associados a epidemias no Brasil: chikungunya, dengue (tipos 1 a 4), mayaro, oropouche, rocio, encefalite Saint Louis, febre amarela e zika. Eles ocorrem em mais de uma área na região Norte, têm os mosquitos como principais transmissores, alguns têm primatas e outros as aves como principais hospedeiros.
O total de vírus identificados pelo IEC se soma a outros cerca de 30 isolados pelo Instituto Adolfo Lutz (SP), o que significa perto de 250 vírus diferentes. Na visão de Vasconcelos é muito pouco, considerando a biodiversidade, não só da Amazônia, mas de todo os ecossistemas brasileiros incluindo Pantanal, Cerrado, Pampas, Mata Atlântica e Caatinga. No mundo todo são conhecidos aproximadamente sete mil vírus.
Com base em suas pesquisas, ele acredita que os riscos são maiores para doenças transmitidas pelos mosquitos, especialmente o Aedes aegypti que já provou ser o maior transmissor de doenças no Brasil e em outros países de clima tropical.
Se tivesse que fazer alguma aposta, Vasconcelos aponta o mayaro e o oropouche como os de maior probabilidade de se transformar em epidemias emergentes. O mayaro é transmitido por um mosquito silvestre chamado Haemagogus janthinomys, enquanto o transmissor do oropouche é um pequeno inseto chamado Culicoides paraensis, vulgarmente conhecido como maruim, que tem preferência por sangue humano.
Governança ambiental
Na visão de Mercedes Bustamante, o Brasil poderia reduzir os riscos potenciais inerentes para as zoonoses e a geração de epidemias. Mas, para isso, é necessário intensificar da fiscalização sobre o desmatamento ilegal e as orientações no sentido de que o setor financeiro, por exemplo, não apoie projetos que ameacem esses ecossistemas.
Para Bustamante, a pressão pela preservação da saúde e do meio ambiente precisa vir da sociedade, dos consumidores, do setor empresarial nacional e internacional.
“O Brasil já demonstrou no passado recente que é capaz de implementar políticas públicas e coordenar diferentes setores da sociedade para conter o desmatamento. Uma boa governança ambiental é chave para isso. Infelizmente, o que vemos hoje é um retrocesso desolador na condução de políticas públicas na área ambiental”, lamenta.
#Envolverde
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