extrativismo A hora e a vez de extinguir o trabalho precário na Amazônia
a extração da madeira nativa e o extrativismo do açaí estão entre os trabalhos mais perigosos do Brasil e os mais concentradores de renda.
O maior problema social da Amazônia é o trabalho precário. Este drama, velado e epidêmico, de muitos matizes e subterfúgios, que se arrasta por 400 anos, tem forte impacto na vida de todos amazônidas. Explica porque a Amazônia não deixou o período colonial, reverbera a escravidão, a vassalagem e a exploração da criança e do adolescente.
Em boa medida, o trabalho precário qualifica a perniciosidade do motor da economia local – da pilhagem social e ambiental. O prosseguir da alta concentração de renda e poder gera o caos social, os índices educacionais sofríveis, a baixa rentabilidade e produtividade, e o desmanche dos recursos naturais estão associados a este modo de tratar o trabalho.
A Amazônia Rural é, de longe, a campeã brasileira do trabalho precário. Atividades empreendidas no espaço rural, como a pecuária bovina, o garimpo, a extração da madeira nativa e o extrativismo do açaí estão entre os trabalhos mais perigosos do Brasil e os mais concentradores de renda.
A desatenção da autoridade pública, ainda controlada por este estamento do poder rural, agrava esta questão. Daí as práticas persistirem, como a subnotificação, como a praga que assola a Amazônia Rural. Não se pode mais aceitar o desleixo do IBGE e dos demais órgãos públicos federais e estaduais perante a obrigação de registrar, com as estatísticas e informações confiáveis, a nossa ruralidade. Seu desinteresse esconde o envolvimento de milhões de pessoas no trabalho precário, com altíssima incidência de acidentes de trabalho, a presença ululante do trabalho infantil, e a pecha do análogo a escravidão, e o impacto direto na qualidade de vida da maior parte das pessoas do meio rural.
A sociedade, seja no âmbito regional ou nacional, ainda não se questionou, abertamente, – o que é trabalho precário na Amazônia? Quais os limites entre o aprendizado e o trabalho para as crianças e jovens na agricultura familiar? Por que práticas abolidas em outras regiões do país, e dessangram o trabalhador, na Amazônia são permitidas? Enfim, por que o tema do trabalho precário é tão invisível e ausente no debate regional?
Em dezembro último, um evento pioneiro do Tribunal Regional do Pará e Amapá (TRT8), com o apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT), UNICEF e Instituto Peabiru discutiu amplamente o Trabalho Precário na Amazônia Rural.
Primeiramente, a partir de uma busca em qualquer ferramenta de busca na internet, fica claro que as únicas menções que relacionam “Amazônia” e “trabalho precário” se referem ao evento em questão, cujos registros estão disponíveis no web-site www.amazoniatrabalhoprecario.org.br. Em verdade, espaço virtual criado pelos parceiros do evento (TRT-8, MPF, Instituto Peabiru e outros para reportar sobre a questão e repositar documentos relevantes).
O que mais surpreende é o discurso de quem diz não enfrentar a questão, por argumentar que se trata de algo cultural ou de somenos importância – sempre foi assim! Ou o horripilante argumento: “melhor criança trabalhando que na rua”. De outro lado, está o desinteresse perverso e omissivo de enfrentamento do tema, seja na própria região, seja   nos outros Brasis – consumidores, investidores, formadores de opinião e decisores.
Quem consome o produto amazônico a baixo preço– carne bovina, açaí, pescado, minério, madeira ou energia elétrica – não quer saber como este se apresenta a seu uso, se vem temperado de grilhões da escravidão, salpicado de suor infantil, assoma-se aos riscos do trabalho inseguro, ou defumado pela queimada da floresta.
Se a problemática for o serviço socioambiental que a Amazônia presta a outras regiões, como é o caso da umidade carreada pelos rios voadores ao Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, este serviço sai de graça. Se for um produto associado ao conhecimento tradicional associado a sua biodiversidade, raramente assim se o reconhece pelo valor deste trabalho.
É hora de afirmar, com todas as letras, que é o trabalho precário o que torna o preço do produto da Amazônia tão irrisório ou simplesmente sem valor. A baixa taxação, que resultaria em provimento de recurso público, também resulta desta mesma depreciação de seu valor. Daí a Amazônia vender produtos preciosos e únicos por migalhas porque não incorpora o trabalho em sua verdadeira dimensão. A madeira sai da mata sem valoração, o minério sai da mina sem emissão de nota fiscal e daí por diante… Não se incorpora o seu valor cultural, o custo do serviço ambiental, do impacto socioambiental e os demais atributos que o economista denomina de “externalidade”.
Diante deste quadro de depreciação do valor de tudo que é amazônico, como nos convencermos de seu impacto socioambiental e econômico às presentes e futuras gerações? Será preciso imprimir em cada produto amazônico uma tarja de advertência como nos cigarros? – “O Ministério do Meio Ambiente adverte – 2/3 das áreas desmatadas da Amazônia viraram pasto pra criar boi”; ou, “O Ministério da Indústria e Comércio adverte – 80% da madeira da Amazônia é ilegal”; ou, ainda, “O IBAMA adverte – menos de 3% das multas que aplicamos são pagas”!
A quem pretende comemorar os 4 séculos da Amazônia colonial – que interrompeu um processo histórico de 100 séculos –; primeiro há que se reconhecer de quem é o suor que forma sua economia, erige seu patrimônio urbano, empreende a derrubada da mata e constrói suas mega-usinas, seus negócios, e atende as necessidades públicas e privadas.
É preciso convencer-se que só se eliminam os mais graves problemas sociais decorrentes das desigualdades sociais – a prostituição infantil, a violência contra a mulher, contra o jovem, contra o índio e contra o quilombola, o desmatamento, a destruição das florestas e rios –, se a economia da pecuária bovina, do garimpo, da extração madeireira e das grandes empreendimentos cumprirem a lei; ou seja, se esta economia erradicar o trabalho precário.
Parece óbvio, mas não é. O desprezo pela lei, a corrupção, a ausência do estado, a baixa mobilização da sociedade civil local, a leniência com o patrimônio público, amoldam as distorções socioeconômicas que se estabeleceu na Amazônia. É preciso relacionar o trabalho precário à questão ambiental, hoje tratado de forma estanque; relacionar à violência, às injustiças sociais.
Tem gente que ainda perde tempo discutindo índices de desmatamento, de poluição das águas, do lixo, quando tudo isto é consequência da falta de acesso a direitos básicos, da falta de vez e voz para a maior parte das comunidades, especialmente as rurais, entre as quais a precarização do trabalho é a questão central. Trabalho sustentável é miragem no deserto da Amazônia.
Conversa pra boi dormir
Vejam o caso da pecuária. Nós, Amazônidas, abrimos as porteiras para que o Brasil (e o mundo) trocasse a floresta pelo boi. Como somos ingênuos! Que emprego e renda isto gera? Que distribuição de renda? E impostos? São resultados deprimentes, que merecem outro momento a aprofundar. Município pecuário é sinônimo de pobreza. Em menos de 50 anos, aceitamos que o Brasil transferisse 1/3 de seu rebanho para a região – 80 milhões de cabeças. Mais bois que em toda Europa. Pior, este êxodo prossegue. E, por quê?
Porque há impunidade, porque o trabalho precário é aceito. Porque na Amazônia ainda vale a invasão de terras públicas, terras indígenas, territórios quilombolas, vale desmatar, queimar, pilhar o patrimônio dos recursos naturais – os solos, os produtos florestais, impera a lei do mais forte. Na maioria das propriedades (de todas as dimensões), quem é braçal e lida com o gado, o peão, tem acesso a poucos direitos; em muita parte é trabalho informal, desvalorizado. Ganha-se pouco, arrisca-se muito. No evento mencionado, a representante do Ministério do Trabalho e Emprego rememorou as estatísticas de que a pecuária é a campeã de acidentes no campo, o trabalho mais perigoso que há. Isto merece muita atenção.
A pecuária amazônica, especialmente a paraense, é a campeão nacional de trabalho análogo à escravidão. De 2003 a 2013 o setor como um todo teve 11.648 trabalhadores resgatados, a maior parte no Pará (INPACTO, 2014).
Se considerada apenas a área destruída da maior floresta tropical do planeta para a criação de boi, isto alcança mais de 52 milhões de hectares, algo como 13% da Amazônia apenas em pasto. Parece pouco, mas representa uma área superior à soma das superfícies dos estados do Santa Catarina, Paraná e São Paulo. E, desmatados para que? Para o brasileiro ter um bife um pouquinho mais barato. É isto que o brasileiro quer?
Se continuarmos com a nossa displicência no cumprimento da lei, e a porteira escancarada, a Amazônia será um imenso curral, para onde o Brasil sonha transferir mais de 200 milhões de cabeças de gado nos próximos 20 anos. Por trás desta boiada está o maior contingente de mão de obra no meio rural. São, pelo menos, 500 mil micro-pecuaristas (um universo de 2 milhões de pessoas) distribuídos em todos os cerca de 800 municípios da região; além de outros 10 mil médios e grandes pecuaristas, com quem está a maior parte das terras e do rebanho, e onde estão a quase totalidade das causas trabalhistas e daqueles resgatados em trabalho análogo à escravidão.
Ao invés de tornar a pecuária um setor da moderno e socialmente justo, o Brasil empurra a ineficiência e informalidade de relações e ilegalidade para a Amazônia, como se fora a pecuária o parasita que suga o Brasil rural. É o Brasil precário que vence e achincalha todos os brasileiros. Hoje nos divertimos em camuflar o setor pecuário bovino com a pátina de adjetivos – pecuária verde, pecuária sustentável ou outros nomes criativos. O único adjetivo que cabe ao setor é pecuária precária. E, se a sociedade não se mobilizar a exigir mudanças, dificilmente se avançará, pois a precariedade também está no setor de processamento de carnes que crescentemente se transfere para a região, um dos que mais apresenta causas trabalhistas (vide documentário “Carne, Osso”, do Repórter Brasil). O consumidor precisa saber o custo social da carne que consome, exigir responsabilidade social, fiscal e trabalhista.
E, onde tem trabalho precário tem violência. Qual o pior município do Brasil para uma mulher viver? Onde há mais mulheres assassinadas? Paragominas! Sim, o Mapa da Violência 2012, baseado nos dados do Ministério da Saúde, aponta que o município verde, o município modelo no Pará, é campeão deste triste indicador social. Das 100 cidades mais violentas, além de Paragominas, entre as cerca de oito mil cidades do Brasil, seis estão no Pará – Ananindeua, Tucuruí, Redenção, São Félix do Xingu, Novo Repartimento e Barcarena. Fora Ananindeua e Barcarena, as demais são sedes de municípios pecuários. São Felix do Xingu é o município com mais boi do Brasil, 2,1 milhões de cabeças, cerca de 1% do rebanho brasileiro e 100 mil habitantes, ou seja, cerca de 21 bois a cada habitante.
Outros municípios estariam nesta lista de violência se a coleta de estatísticas não fosse tão falha. Neste pódio estaria municípios como Itaituba, ponto de apoio a dezenas de milhares de garimpeiros ilegais do Tapajós, onde 36 mulheres foram estupradas em 2013. No Pará, as estatísticas oficiais apontam que o estado tem 37,7 estupros por 100 mil habitantes, quase o dobro da média nacional (25 para 100 mil habitantes)(Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 8oAnuário Brasileiro de Segurança Pública, 2014).
A madeira e o carvão
No setor madeireiro e carvoeiro a situação não é muito diferente. Distintamente da pecuária, onde há centenas de milhares de empreendimentos, no setor madeireiro há alguns poucos milhares de unidades beneficiadoras (serrarias, fábricas etc.), o que, esperava-se, ser mais fácil de controlar, uma vez que estas unidades são um gargalo para onde afunila a produção. No entanto, como este é um setor que movimento grandes volumes de recursos e gera-se valores de forma muito rápida, são sucessivas as denúncia de corrupção e atividade ilegal. O próprio IBAMA, o órgão fiscalizador federal e os estaduais, têm grande dificuldade em desmantelar esta indústria ilegal e informam que a maior parte da produção é ilegal. Se a autoridade é falha, o consumidor também é pouco exigente. Seja ele público, da iniciativa privada ou familiar, tanto quanto à procedência como ao trabalho precário relacionado à madeira. Aliás, o consumidor brasileiro apresenta-se pouco exigente diante de qualquer produto, seja o produto agrícola, seja a carne bovina onde, inclusive, arrisca sua saúde (daí a maior parte da carne oferecida aos amazônidas ser clandestina).
Na mesma linha, está a questão do carvão vegetal, sabidamente uma das atividades mais degradantes, na qual, frequentemente, flagra-se o trabalho infantil. O carvão é, depois da pecuária, o segundo setor em que mais se flagrou trabalho escravo – com 3.215 trabalhadores libertados entre 2003 e 2013.
Um dos maiores desafios refere-se à terceirização da produção para a agricultura familiar, ou seja, o atravessador passa a comprar o carvão de famílias que realizam o trabalho (corte e queima nos fornos). Seu risco diminui, e este transfere a precariedade do trabalho ao produtor rural. Diante de limitadas oportunidades econômicas, muitas famílias se submetem a este trabalho degradante em troca de uma pequena renda. Trata-se de atividade intimamente relacionada à pecuária bovina extensiva, especialmente de médias e grandes propriedades, na medida que estas, coniventes com este processo, “liberam” as suas pastagens e capoeiras para que delas se retirem as árvores mortas e caídas, ou mesmo, pratiquem o micro-desmatamento, invisível ao satélite.
Um dos mercados do carvão é o setor de ferro gusa que, mesmo duramente atingido por utilizar carvão ilegal, ainda gera preocupação, pois sabe-se que as áreas plantadas com florestas energéticas de eucalipto ainda são insuficientes para atende-los. O mercado urbano e doméstico, nada desprezível, prossegue expandindo, sob baixíssima fiscalização e inclui tanto a lenha como o carvão presentes no churrasco do fim de semana, ou no teu pãozinho ou na tua pizza. Novamente, as externalidades não são contabilizadas.
O Agronegócio
Se a pecuária bovina nos últimos 50 anos se apresentou como o tsunami que derruba toda árvore que vê pela frente, a segunda onda do agronegócio se configura como ainda mais avassaladora e perversa. Tanto por ser capital intensiva, como por expulsar a pecuária para dentro da floresta. O pecuarista, capitalizado, prossegue na expansão da fronteira pioneira, invadindo terra pública, ou seguindo para regiões onde a fiscalização é menor – para o interflúvio Tocantins – Xingu, ou para a região da BR-163 (Rodovia Cuiabá-Santarém).
A soja e outras culturas anuais de sequeiro, como o milho; o arroz nas várzeas; a palma (dendê); o eucalipto e, mesmo, o açaí plantado dominam o investimento no campo e, em poucas décadas, juntamente com a pecuária consorciada, serão os maiores empregadores no meio rural, direta e indiretamente. Sucede que este avanço do agronegócio, inclusive sobre terras públicas ou sobre regiões de alta insegurança fundiária, como o Nordeste Paraense e o Baixo Tocantins, é monitorado de forma insuficiente. A política nacional de biocombustivel, por exemplo, vem gerando inúmeras denúncias sobre a precariedade do trabalho na cadeia da palma, especialmente por terceirizar o risco para a agricultura familiar e deixar neste elo da cadeia de produção o trabalho precário.
A situação se agrava, ainda mais, diante da insegurança fundiária e o atraso no reconhecimento da destinação pública das terras (terras indígenas, quilombolas, áreas de populações tradicionais (convertidas em assentamentos agroextrativistas, reservas de desenvolvimento sustentável ou reservas extrativistas) ou de unidades de conservação).
Três novos fatores precisam ser considerados com a expansão do agronegócio que tem impacto no trabalho precário – a) o alto volume de uso do agrotóxico, raramente presente até então; b) o aumento da escala da migração, especialmente de jovens homens, solteiros e de baixa qualificação profissional, competindo com os moradores locais, geralmente de baixa qualificação; e c) a competição por recursos naturais (florestais, pesqueiros, acesso a água, acesso a terra para a segurança alimentar. Diante do baixo conhecimento dos direitos cidadãos por parte de povos e comunidades tradicionais, por agricultores familiares e novos migrantes, é preciso muita cautela, especialmente na esfera trabalhista, para que a exploração do trabalhador avance.
Este é o caso do plantio de arroz em frágeis ecossistemas do Marajó, em que empresários, mesmo proibidos de expandir suas culturas sem o devido licenciamento, expandem-na; mesmo proibidos de voar com suas avionetas lançando agrotóxicos, o fazem, em claro desrespeito a ordens judiciais. E sua chegada, em uma região em que há 16 quilombos não demarcados gera enorme conflito.
A expansão da soja, questão mais crítica no Mato Grosso e Rondônia, está sem controle. A moratória da soja não está funcionando. Aliás, em lugares como a Calha Norte (municípios ao norte do Rio Amazonas no Pará), o Amapá, o Maranhão, esta nunca funcionou. Ali, avança, impunemente, sobre terras de ribeirinhos e quilombolas.
Grandes obras moram no meio rural
Ao mesmo tempo que avança o agronegócio, a Amazônia se transforma num dos maiores canteiros de obras do Planeta. Estas obras, e sua infraestrutura, viabilizam  a logística e outros fatores críticos ao agronegócio. Poucos atentam para o fato que a maioria destas obras ocorre no meio rural, ou o afeta duramente. São hidrelétricas, estradas, ferrovias, portos, linhas de transmissão de energia, gasodutos etc. A lista é enorme; há mais de 300 obras previstas para a Amazônia nas próximas duas décadas, inclusive em países amazônicos vizinhos.
Somente a bacia do Rio Tapajós espera 14 portos de soja e 42 hidrelétricas de diversos portes, 6 das quais de grande porte, como a de São Luis do Tapajós, prevista para 8 mil MW. Com uma carteira de investimento de R$ 1 trilhão, e mobilização entre 100 mil a 200 mil operários simultaneamente, o impacto das grandes obras no meio rural é ignorado.
Se os Estudos de Impacto Ambiental & Relatórios de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) exigem pareceres de órgãos como a FUNAI (indígenas), o IPHAN (apenas para a arqueologia) ou o IBAMA e ICMBIO (ambiental), Fundação Palmares (quilombolas), estes deveriam exigir o Estudo de Impacto Social e Cultural. Deveriam avaliar o impacto sobre o trabalho precário, especialmente sobre o meio rural. Basta observar os impactos de Belo Monte no meio rural de toda a região da Transamazônica próxima a Altamira, para saber do que estamos falando.
O verdadeiro impacto destes grandes empreendimentos não é apenas a obra, que dura pouco e, sim, o abrir a porteira das terras públicas para a grilagem, o garimpo, o roubo de madeira, a invasão de terras indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais. Na década de 1980, quando a Companhia Vale do Rio Doce, então estatal, implantou a mineração de ferro na Serra Norte, em Carajás, hoje Parauapebas, expôs mais de 20 milhões de hectares ao longo dos 892 km da Estrada de Ferro Carajás e estradas de rodagem associadas, a um furioso processo de desmatamento, queimadas e conflito fundiário. A abertura da Serra Sul, em Canaã dos Carajás, a duplicação da ferrovia e novos investimentos minerais na região significa um novo ciclo mineral ainda maior que o primeiro.
Este processo, portanto, que está longe de terminar, se hoje afeta mais de 100 mil pessoas de povos e comunidades tradicionais, deverá ter impacto ainda maior. A vida destas comunidades foi modificada não pela mineração e sim por aqueles que invadiram as terras e instalaram as suas fazendas de pecuária e, atualmente, de soja. Quem paga esta conta? Certamente, não é o minério de ferro, produto que, como se sabe, poucos impostos e taxas recolhe, nem a pecuária bovina, tão beneficiada pelo fisco.
Se estes setores são insuficientemente tributados e geram trabalho precário e poucos benefícios aos moradores locais, algo está errado. A partir desta experiência, será que incorporamos estes aprendizados aos grandes empreendimentos que se iniciam ou se expandem na Amazônia?
Agricultura familiar e populações extrativistas
O outro grande desafio relacionado ao trabalho precário é compreender a natureza da agricultura familiar. Na agricultura familiar e no extrativismo (florestal e dos recursos aquáticos) as pessoas são, ao mesmo tempo, pescadores, extratores, caçadores, agricultores e artesãos. Desde muito cedo, aprendem a subir no açaizeiro, a remar, a ralar mandioca, a caçar, a pescar…
Na Amazônia estamos falando de 4 milhões de pessoas que se enquadram nesta categoria, e demandam por atenção especial. Até hoje, a legislação trabalhista brasileira ainda não compreendeu a complexidade da agricultura familiar e o extrativismo tradicional. A legislação trabalhista brasileira está mais afeita ao urbano, pouco observou a precariedade do trabalho rural, especialmente diante do agronegócio e terceirização do risco em diversos setores.
Na tradicional agricultura da mandioca, por exemplo, a família inteira participa em todo o processo – do menorzinho aos aposentados. Não é raro ver crianças de cinco a seis anos pelando a mandioca, atividades que chocam quem não se depara com o fato regularmente. Alguns perguntam – como este aprenderá? Mas, a questão mais relevante é: para a criança e o jovem, qual o limite entre o aprendizado e o trabalho? É necessário o trabalho infantil se há adultos capazes de realizá-lo?
Na coleta dos frutos do açaí não é diferente. Se o peconheiro (apanhador de açaí) não subir no açaizeiro bem jovem, mais velho não o fará. Isto nunca foi tratado com a atenção que merece. Em depoimentos de crianças em sua terra natal, o Rio Canaticu, em Curralinho, no Marajó, colhidos por Nazaré Sá de Oliveira, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Pará, destacam-se: a) “Eu apanho açaí̧́ porque preciso de dinheiro para comprar as coisas para mim e pros meus irmãos”; b) “nas árvores finas só pode subir criança pois não aguentam os adultos”; e c) “tenho que deixar apanhado cinco rasas de açaí para poder ir para a aula”.
Sucede que a forte demanda por açaí resulta em um novo fenômeno, da feita que na safra, estima-se que de 200 mil a 500 mil jovens entre dez e dezessete anos subam diariamente nos açaizeiros. Estes números precisam ser pesquisados com urgência, pois se comparados às estatísticas oficiais, o trabalho infantil na Amazônia está completamente defasado (ou melhor, nunca foi mensurado com cuidado).
A Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD) assevera que há 357,8 mil crianças entre 7 e 17 anos trabalhando, 49% em atividades agrícolas, ou seja, cerca de 175 mil em atividades agrícolas. Será que se considerou a coleta do açaí neste número? Dificilmente, novamente o IBGE precisa ir a campo rever seus números. Pior, as estatísticas informam que o trabalho infantil diminuiu (teria diminuído 13,4% na década de 2000), quando sabemos, pela prática, que em setores como o do extrativismo ele aumentou.
Atente-se para o fato de que o único Equipamento de Proteção Individual (EPI) destes peconheiros é um surrado calção, eventualmente, uma camisa, e o terçado (facão), geralmente sem bainha, enfiado no calção ou na boca, e a peconha (tipóia), feita de folha da árvore em que o peconheiro apóia os pés. Os riscos que estes jovens se expõem são enormes – escorregões, quebra das árvores, animais peçonhentos, abelhas, inclusive porque, vez ou outra, saltam de uma árvore a outra. E isto sem falar de como o cansaço afeta o desempenho escolar, ou de como esforços físicos em determinadas posições, como a de subir nas árvores resulta em pernas arqueadas, por exemplo.
Em outro depoimento, disponível no web-site referido, o conhecido médico ortopedista, Dr. Guataçara Gabriel, chefe do SAMU (atendimento de emergência) de um dos principais hospitais de Belém, o Hospital Metropolitano, informa que 16 a 18% das lesões na coluna que chegam a Belém relacionam-se a queda de açaizeiros. Ele informa que esta estatística não existia antes de haver o resgate por helicóptero atendendo o Marajó. E que o problema não é apenas a queda, mas a inadequação da locomoção do acidentado, tão ou mais prejudicial que a própria queda.
Vassalos modernos
Outra questão que precisa ser exposta publicamente e extirpada na Amazônia é a figura do grileiro de terras públicas, que cobra “meia” ou “ameia” (metade da renda do que se produz) de populações tradicionais que ali vivem há gerações. Há outras variações de nome e tipologia, como o arrendamento, sociedade ou parceria, que continuam tão precárias quanto a ameia. Trata-se de uma prática medieval comumente realizada por quem se diz proprietário de terras e de rios. Estes controlam o acesso as cursos d’água, instalam porteiras em rios e estradas e armam-se de vigilantes. Em geral ocupam terras públicas, e passam a cobrar o que denominam de “ameia” de quem lhe presta serviço ou de seus vizinhos. De uma forma simplificada, tudo que o trabalhador rural produzir, seja seu vizinho ou apenas um trabalhador temporário, deve ser dividido entre o “falso” proprietário e o trabalhador, sem direito trabalhista algum.
Esta prática medieval, verdadeira vassalagem e, na maioria das vezes, sobre terras públicas, ainda se apresenta bastante comum nos estados amazônicos, o que precariza ainda mais a relação trabalhista. Ao pousarem de compadres e protetores, o que estes ocupantes da terra estão fazendo é fugir das obrigações trabalhistas e terceirizar o risco. Uma parte significativa da coleta da madeira, do açaí, da pesca do camarão e do pescado e outros tipos de extrativismo e, mesmo, de agricultura familiar, encontra-se sob este tipo de contrato precário de trabalho.
No Pará a “ameia” está presente nas regiões de ocupação mais tradicional, como o Marajó, o Baixo Tocantins e o Baixo Amazonas. Pode-se prever que pelo menos 1/3 do açaí coletado esteja sob este regime de contrato precário, senão mais.
Só no Marajó, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e o Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (INCRA) libertaram cerca de 25 mil famílias do pagamento de ameia; seja assentando-as em Projetos de Assentamento Agroextrativista (PAEs) ou, em parceria com o ICMBIO, em unidades de conservação de uso sustentável (Reservas Extrativistas (Resex) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS)). Mas falta muito, pois, só no Marajó há pelo menos 15 mil famílias fora do amparo legal, especialmente nas áreas dos campos alagados, que são terras públicas federais, ilegalmente ocupadas.
Trabalho Domestico no Meio Rural
Este é o tema menos tratado no mundo do trabalho. Ele se refere, principalmente, a meninas, e que trabalham, muitas vezes, desde os oito e nove anos. O PNAD precisa revisar o dado de que há 139,5 mil meninas jovens, entre 7 e 17 anos, em trabalho doméstico rural na Amazônia. Isto porque, se nos basearmos no dado do Censo de 2010, que no estado do Pará 21,3% dos jovens entre 10 e 17 anos do meio rural estão ocupados, a situação deve ser ainda mais crítica. Em alguns municípios do Pará, como Oeiras e Anapu, mais de 30% das crianças estão ocupadas (trabalhando)(IBGE, 2010).
Certamente, seria possível seguir discorrendo sobre outras questões relacionadas ao mundo rural, como o emprego precário na pesca artesanal, de outros produtos do extrativismo, como o babaçu, e de outras práticas, porém, esta breve apresentação, demonstra a urgência de priorizar o trabalho precário na Amazônia Rural.
Os muitos desafios
Entre os muitos desafios a enfrentar, apontamos alguns, entre os quais aqueles sugeridos por minha colega, Ida Pietrikovsky, do UNICEF: a) “Tribunais de Justiça do Estado e do Trabalho juntos, trabalhando para dar coesão e prioridade aos processos em tramitação sobre os casos de trabalho infantil”; e b) “repensar o sistema de educação no campo, revendo o Plano Decenal de Educação”.
Em relação a esta última questão,  Nazaré Sá de Oliveira propõe “a educação integral e o ensino técnico como elementos fundamentais para diminuição do trabalho infantil entre adolescentes de 14 a 17 anos”. Isto porque esta afirma: “o trabalho de crianças pobres reproduz e aprofunda a desigualdade social, na medida que prejudica o desenvolvimento físico, psicológico, intelectual e social na infância”.
A representante do UNICEF propõe, outrossim, como estratégias transformadoras: a) Propor estratégias e desenvolver campanhas para mudança da cultura que estabelece que “trabalhar é bom para a criança”; b) Rearticular os Fóruns de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil; c) Responsabilizar as empresas nas cadeias produtivas estando estas livre do trabalho infantil; d) Melhoria na oferta de uma educação do campo de qualidade; e e) Envolver as famílias e os adolescentes na busca por respostas.
Além disto, a partir do que se analisou no presente artigo, é preciso atacar 6 frentes, a saber:
  1. Estabelecer como obrigatório o Estudo de Impacto Social
Quaisquer empreendimento de porte deve apresentar, além do EIA-RIMA, um Estudo de Impacto Social que observe atentamente o trabalho precário. Está na hora da sociedade realizar uma profunda mudança no que entende por estudos de impacto. Hoje se analisa as questões de forma estanque – indicadores ambientais isolados dos sociais e dos econômicos. Ademais, é preciso construir indicadores com a própria sociedade local, com as partes interessadas. Estes indicadores precisam fazer sentido para a comunidade e devem ser por ela monitorados e avaliados.
  1. Monitorar a precarização do trabalho nos contratos de “ameia”
É preciso um monitoramento severo dos contratos de ameia, a imensa maioria dos quais, informais e verbais. Somente um mutirão do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e Ministério Público do Trabalho (MPT), região por região e, com forte apoio da sociedade civil organizada, será capaz de identificar e extirpar esta prática ilegal e medieval, que suga o sangue do trabalhador e de sua família e é importante responsável pelo trabalho precário. Uma das formas de coibir estes contratos seria a sua exposição pública, como ocorre com a Lista Suja do Trabalho Escravo, criada pelo MTE e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
  1. Fortalecer o PETI e realizar campanhas sobre o trabalho infantil
Para Nazaré Sá de Oliveira, “a pesquisa (PNAD) não consegue cobrir todas as áreas onde ocorre o Trabalho Infantil e a própria família e sociedade não reconhecem os perigos deste crime”. Desta forma, um dos mecanismos de controle, seria realizar campanhas, associadas a outras políticas publicas, como o aumento da fiscalização para o combate ao trabalho infantil, além da aplicação de multas e outras medidas severas. Além disto, todos os especialistas apontam que é preciso fortalecer a capacidade de agir do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), do Governo Federal.
  1. Realizar campanhas ao consumidor relacionando o trabalho precário e o custo socioambiental dos produtos
É preciso repensar a maneira de enxergar o valor dos produtos. Se o consumidor não for alertado para relacionar o trabalho precário ao que consome, dificilmente compreenderá as relações ocultas que governam a geração de renda na região e, dificilmente avançaremos. É a pressão do consumidor que exigirá a carne bovina de qualidade, o carvão honesto, o açaí somente com trabalho adulto. Se conhecemos que um quilo de carne bovina custa 14 toneladas de dióxido de carbono (CO2), 15 toneladas de água e toneladas de outros gases, porque não temos direito de saber quanto de trabalho precário tem em cada quilo de carne ou outro produto rural?
  1. Prosseguir no combate ao Trabalho escravo
Se o combate ao trabalho escravo mostra resultados, é preciso prosseguir e aprofundar esta ação, especialmente garantindo ao MTE e MPF condições para realizar suas vistorias, que devem ser associadas, como estes mesmos órgãos manifestam, com ações de caráter ambiental (IBAMA, SEMA) e de outros órgãos (FUNAI e outros). Estamos longe de resolver o problema,
  1. Monitoramento do trabalho precário no agronegócio
É preciso criar um observatório permanente de monitoramento do trabalho precário no agronegócio, especialmente na pecuária e na soja, setores que respondem pela maior parte do impacto e do emprego. E este monitoramento só funcionará se contar com a participação ativa dos representantes da iniciativa privada do próprio setor.
Neste sentido, é preciso observar o trabalho da FUNDACENTRO em São Paulo, que realizou cuidadosa análise coletiva do trabalho em setores como a da cana de açúcar e do abacaxi (vide o web-site mencionado neste artigo). Esta análise apresenta as bases para ocorrer o trabalho sustentável, e que permite aos órgãos públicos monitorar o negócio privado. Isto permitirá, por exemplo, orientar termos de ajuste de conduta (TAC) com setores do agronegócio, como aquele que se propõe para o setor da palma, pelo Ministério Público Estadual. Este TAC pode ser um modelo para como conduzir com o setor da pecuária, do açaí e outros.
Certamente, além destas 6 frentes de ação, outras se apresentam como importantes, o que fica para um outro momento de discussão.
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Para concluir este artigo, proponho a questão levantada por Nazaré Sá de Oliveira – É possível articular o desenvolvimento da região sem envolver a mão de obra de Crianças e Adolescentes?
João Meirelles Filho é diretor do Instituto Peabiru, organização da sociedade civil com sede em Belém, Pará. Este artigo resulta da contribuição ao evento “Amazônia Rural Trabalho Precário”, realizado em Belém, Pará, entre 4 e 5 de dezembro de 2014, coordenado pelo Tribunal Regional do Trabalho TRT8.
(O Autor)