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sábado, 30 de agosto de 2014

Uma distribuição justa da renda e do consumo resolveria a questão ambiental?

“A pirâmide global da riqueza pode afundar por falta de sustentação ecológica
ou pode implodir por falta de justiça redistributiva em sua arquitetura social”
(JED ALVES, 26/06/2013).
“Está em xeque o modelo que traz muitos beneficios para poucos,
poucos benefícios para muitos e nenhum benefício para
a natureza e a biodiversidade” (ALVES, 2014)

Os estudos demográficos já avançaram muito nos últimos 225 anos, desde que o Marquês de Condorcet (1743-1794) e William Godwin (1756-1836) escreveram seus famosos escritos no início dos anos de 1790, no bojo das esperanças trazidas pela Revolução Francesa. Mas, para entender a relação entre demografia e meio ambiente é preciso primeiro entender a evolução dos estudos demográficos, pois a discussão populacional tende a ficar pobre e simplificada quando é dominada pelo pensamento malthusiano ou seu oposto, os cornucopianos antimalthusianos. De modo esquemático, estas duas linhas de rebaixamento do pensamento demográfico podem ser assim explicitadas:
Rebaixamento do pensamento demográfico feito pela corrente malthusiana:
Thomas Malthus escreveu seu Ensaio (cuja primeira versão era um panfleto apócrifo) para rebater os ideais da Revolução Francesa e as ideias progressistas de Condorcet e William Godwin, que eram dois gigantes do pensamento iluminista.
Malthus nunca foi um defensor do meio ambiente, nem do desenvolvimento e muito menos da justiça social. O princípio de população malthusiano (“população cresce em progressão geométrica e os alimentos crescem em progressão aritmética”) foi elaborado para justificar a permanência do salário de subsistência (Lei de bronze dos salários dos trabalhadores) e a renda da terra dos latifundiários. O “freio positivo” malthusiano pretendia manter a população sobre controle por meio de elevadas taxas de mortalidade. Malthus era contra o “planejamento familiar” (regulação da fecundidade), pois achava que o sexo dentro do casamento tinha finalidade generativa. Como pastor anglicano, também era contra a esterilização e o aborto. Só aceitou, numa segunda versão do Ensaio e depois das críticas que recebeu, o adiamento do casamento (monogâmico e heterossexual) como “freio preventivo” do crescimento demográfico. Malthus era contra a “Lei dos pobres”, defendia os interesses da nobreza e do clero e achava que os trabalhadores deveriam ser mantidos permanentemente na miséria, única forma de se evitar os vícios e os pecados de uma população propensa à apatia e à inatividade. Em termos econômicos era contra o livre cambismo e as primeiras manifestações do processo de globalização econômica e comercial.
Ou seja, Malthus era contra o sistema capitalista e contra o desenvolvimento de um mercado de produção e consumo de massa. Ele defendia a sociedade medieval e fisiocrática, sendo contra a ideia de progresso dos iluministas. Ao contrário dos pioneiros da demografia (Condorcet e Godwin), Malthus fez um desserviço aos estudos populacionais, pois no modelo malthusiano nunca poderia ocorrer a transição demográfica.
Rebaixamento do pensamento demográfico feito pelos cornucopianos antimalthusianos:
O pensamento malthusiano é muito simples e simplificador e já foi combatido ao longo da história, tanto em termos teórico, quanto empírico. Ser contra Malthus é muito fácil. Mas engrandecer o pensamento demográfico não é uma coisa trivial. Os cornucopianos antimalthusianos, em geral, caem em um modelo simplificador, ao contrário daquele formulado pelo pastor inglês. Eles enchem a boca para dizer que a população passou de 1 bilhão de habitantes, na época de Malthus, para 7 bilhões em 2011, não havendo aumento da taxa de mortalidade. Ou seja, ao contrário da sombria previsão malthusiana, a economia cresceu em progressão geométrica e a população em progressão artimética nos últimos dois séculos. Indubitavelmente, houve progresso humano. Daí partem para repetir generalidades, obviedades e platitudes. Ao contrário de Malthus, os cornucopianos são apologéticos da tecnologia e da inventividade humana. Sem ter uma visão realmente crítica dos danos que a humanidade vem causando ao meio ambiente, eles consideram que a ciência é sempre capaz de resolver os problemas e os estragos causados pelo desenvolvimento. Em vez de mitigar os efeitos das atividades antrópicas eles propõem a adaptação e a continuidade e radicalização do Antropoceno.
Quanto à fome e à pobreza, os cornucopinos colocam a culpa simplesmente na desigualdade social. Sem ter uma postura crítica em relação à agricultura petroficada, sustentada em fertilizantes e agrotóxicos e sem criticar a escravidão e a matança animal, dizem que há muito alimento no mundo, mas há exclusão no acesso. Dizem que a obesidade dos países desenvolvidos poderia acabar com a subnutrição dos países pobres. Por fim, acreditam que a Terra pode manter o atual padrão de consumo, desde que este seja razoavelmente repartido. Assim, de maneira ideológica e com forte dose ideológica, dizem que o volume da população não importa muito, mas sim o volume do consumo e que a atenção da demografia deveria ser voltada para entender o nível da desigualdade e da distribuição da renda e da riqueza. O problema nunca estaria na população, mas no consumo. Os cornucopianos adoram dizer que não existe explosão populacional e que a população vai se ajustar homeostaticamente às condições ambientais.
Porém, respondendo ao título deste artigo, resolver as desigualdades de renda e riqueza é uma necessidade imperiosa e uma condição essencial para se obter a justiça social. Mas resolver a falta de direitos humanos não é a mesma coisa de resolver os direitos da natureza e os direitos das outras espécies não humanas.
No tamanho atual da economia mundial e das atividades antrópicas, mesmo que a distribuição da renda e da riqueza fosse totalmente justa (Indice de Gini = zero), assim mesmo o efeito sobre o meio ambiente seria insustentável. Se toda o rendimento e o consumo do mundo fossem perfeitamente distribuídos e se a questão social fosse resolvida, assim mesmo a questão ambiental continuaria como um grave problema que ameaça a vida na Terra e pode levar ao colapso da civilização. O ser humano médio vive acima dos meios que a Terra pode oferecer.
Evidentemente existem países e pessoas com alta e baixa pegada ecológica, países e pessoas com alto e baixo consumo e países e pessoas com alta e baixa emissão de gases de efeito estufa. Mas mesmo se a civilização fosse totalmente justa do ponto de vista distributivo, isto não implicaria que seria justa do ponto de vista ambiental. O ser humano não tem uma relação simbiótica com a natureza, mas sim uma relação de exploração, dominação e degradação.
A riqueza humana dos últimos 200 anos se deu em função do uso dos combustíveis fósseis, da degradação da opulência das florestas, da fertilidade do solo, da disponibilidade de água potável, dos estoques de peixe, da disponibilidade de minerais, como o fósforo, das boas condições do clima, etc. Mas vários destes recursos estão atingindo o pico de produção e tendem a fica mais escassos e mais caros.
No estágio atual, a demanda humana está 50% acima da capacidade regenerativa do Planeta. As fronteiras planetárias já foram ultrapassadas. A concentração de CO2 e gases do efeito estufa já transpassou o limite de 350 partes por milhão – ppm (limite de segurança), estando acima de 400 ppm em abril de 2014 e aumentando. Não dá para analisar o consumo sem considerar o tamanho da população e vice-versa. Numa perspectiva holística, é preciso integrar o estudo da população humana, consumo, população não humana e natureza.
A terra já perdeu 80% das suas florestas originais, 50% do solo fértil e 90% dos grandes peixes. As áreas de florestas foram as primeiras a sofrerem com a demanda humana por madeira, lenha e espaço para a agricultura e a pecuária. A destruição dos habitats tem provocado a extinção de algo entre 10 a 30 mil espécies por ano. Especies invasoras substituem a vegetação original. O CO2, o nitrogênio, o fósforo, o potássio e o zinco, além de diversos produtos químicos, são importantes elementos utilizados para aumentar a produtividade agrícola, mas criam uma rede de poluição que provoca a degradação do solo, a perda de qualidade do ar e da água e a extinção de espécies. O uso dos agrotóxicos neonicotinóides tem provocado a morte das abelhas e o fenômeno caracterizado como Síndrome do Colapso das Colméias. Para alimentar uma população crescente de seres humanos mais de 60 bilhões de animais terrestres são mortos todos os anos e a escravidão animal é responsável pelo confinamento de 19 bilhões de galinhas, 1,4 bilhão de bovinos, 1 bilhão de porcos, 1 bilhão de ovelhas e um número considerável de cabritos, búfalos, coelhos, capivaras, javalis, avestruzes, gansos, perus, patos, etc., segundo dados da FAO. O sofrimento imposto às outras espécies é imenso. Tudo isto pode reverter em perda de segurança alimentar e redução da biodiversidade.
O mau uso do solo provoca erosão, salinização e desertificação, enquanto áreas férteis e produtivas diminuem, cedendo espaço para os aterros sanitários receberem o crescente volume de lixo e resíduos sólidos. Os rios foram desviados, represados, assoreados e degradados. A poluição dos rios reduz a disponibilidade de água doce, diminui o oxigênio e provoca a mortandade de peixes. Aquíferos fósseis estão desaparecendo e os aquíferos renováveis não estão conseguindo manter os níveis de reposição dos estoques, reduzindo a capacidade de carga. A maioria da sujeira dos solos e dos rios corre para o mar. Assim, os oceanos do mundo estão se tornando mais ácidos em consequência da poluição dos rios e da absorção de 26% do dióxido de carbono emitido na atmosfera, afetando tanto as cadeias alimentares marinhas quanto a resiliência dos recifes de corais. O aumento das emissões de gases de efeito estufa está provocando o aquecimento global, tendo como consequência o derretimento das geleiras e das camadas de gelo, provocando escassez de água potável e o aumento do nível dos oceanos. A humanidade ocupa cada vez mais espaço no Planeta e tem investido de maneira predatória contra todas as formas de vida ecossistêmicas da Terra. O ser humano está reincidindo, de maneira recorrente, nos crimes do especismo e do ecocídio. Se a dinâmica demográfica e econômica continuar sufocando a dinâmica biológica e ecológica a civilização caminhará para o abismo e o suicídio.
Sem dúvida, Malthus estava errado. Mas não basta ser antimalthusiano e a favor da justiça social. As condições ambientais do Planeta e da biodiversidade estão sendo degradadas muito rapidamente exatamente pelo desenvolvimento econômico, que contrariou as previsões de Malthus. O progresso humano se deu às custas do regresso ambiental. É neste quadro que os estudos sobre a dinâmica demográfica devem ser contextualizados. Não basta discutir desenvolvimento sustentável, que na prática se tornou um oximoro. A demografia precisa tratar dos problemas da desigualdade social, mas buscando se inserir na perspectiva da sustentabilidade ecocêntrica.
Referências:
ALVES, J. E. D. A polêmica Malthus versus Condorcet reavaliada à luz da transição demográfica. Textos para Discussão. Escola Nacional de Ciências Estatísticas, IBGE, Rio de Janeiro, v. 4, p. 1-56, 2002. Disponível em:http://sociales.cchs.csic.es/jperez/pags/Teorias/Textos/Diniz2002.pdf
ALVES, J. E. D. A pirâmide global da riqueza, EcoDebate, RJ, 26/06/2013
ALVES, J. E. D. Anti-neomalthusianismo ou pró-natalismo disfarçado? EcoDebate, RJ, 27/11/2013
Fonte: EcoDebate, 29/08/2014
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE

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