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quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Mortos também emitem


O jornal britânico Financial Times antecipou nesta segunda-feira (21/9) as conclusões de um estudo realizado pela Agência Internacional de Energia (AIE) a respeito do impacto da recessão global sobre as emissões de dióxido de carbono. A constatação, segundo a BBC Brasil, soa auspiciosa: “declínio significativo”, “sem paralelos”, maior que o verificado na crise econômica de 1981.

“Temos uma nova situação, com as mudanças na demanda e o adiamento de muitos investimentos em energia”, afirma o economista-chefe da AIE. Para ele, o fenômeno “facilitaria muito” os cortes de emissões recomendados pelos cientistas para evitar as piores consequências do aquecimento global.

Juro que ouvi um vago espoucar de fogos - ou será champanhe? Provavelmente é o som que vem dos camarotes vips, habitados pelos defensores do decrescimento econômico como solução definitiva para a crise ambiental. Alguns mais afoitos chegaram a saudar as conclusões do estudo como uma “vitória inesperada” na luta pela redução de emissões - por exemplo aqui, na reportagem do CarbonoBrasil reproduzida pelo Mercado Ético.

Quero deixar claro que admiro muito o trabalho realizado por Paula Scheidt e sua equipe, da qual faz parte o repórter Fabiano Ávila, a quem considero um bom jornalista pela seriedade e consistência informativa que costuma dar a seus textos. Mas creio que é da natureza das relações entre parceiros a liberdade para formular perguntas um tanto inconvenientes, como a que faço a seguir: vitória de quem, cara pálida?

Certamente não dos 22 milhões de trabalhadores desempregados na zona do euro, ao final do primeiro semestre deste ano. Nem dos 14,5 milhões de norte-americanos e 3,5 milhões de japoneses na mesma condição. Muito menos do exército de 20 milhões de chineses forçados a empreender a longa marcha de volta para os vilarejos de origem, expulsos das cidades costeiras pelo fechamento de sete em cada dez empresas nos últimos meses - o relato de Giampaolo Visetti, do jornal La Reppublica, reproduzido pelo Mercado Ético em agosto (aqui), não deixa dúvidas sobre a imensa derrota que se abateu sobre cada um desses trabalhadores e seus familiares.

Não há nada a ser comemorado numa recessão. Seus efeitos perversos costumam recair sobre centenas de milhões de pessoas indefesas e humilhadas. Custo a acreditar que a esquizofrenia anti-humanista que se espraia com a velocidade de uma praga por nossas sociedades pós-modernas leve outras pessoas, inteligentes e bem-intencionadas, a ver nisso um preço aceitável a se pagar pela transição para uma economia de baixa emissão de carbono.

Lembro aqui o temor manifestado por Ignacy Sachs, na entrevista que concedeu a Ricardo Carvalho e Antônio Martins às vésperas de completar 80 anos de idade - propositalmente a deixarei em destaque na TV Mercado Ético pelos próximos dias. Dizia ele que os anos dourados do capitalismo no pós-guerra foram produto de uma aliança entre a razão econômica e a social. Frente ao impacto dramático sobre a biosfera, agravado pelo vale-tudo neoliberal que se seguiu à falência do welfare state, Sachs vislumbrava o risco de uma nova aliança, desta vez substituindo a perna social pela ambiental. Bingo!

Não é preciso muito esforço analítico para descobrir quem são os vencedores quando desconsideramos a desagregação social e a destruição psicológica em massa produzidas pelas crises sucessivas do capitalismo financeiro. Saudar o lado b da barbárie como oportunidade de ouro para um novo surto de destruição criativa que tinja vagamente de verde as paredes do cassino, na minha opinião, assemelha-se a contratar a paz dos cemitérios.

Aos bem-intencionados que hoje festejam a “vitória inesperada”, lembro que mortos também emitem. Seus corpos em decomposição liberam quantidades consideráveis de gases de efeito estufa como o metano. Mas tudo bem: dificilmente estaremos aqui para sentir o cheiro ou sofrer as consequências.
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FONTE :José Maurício de Oliveira é jornalista, diretor de Redação do Mercado Ético.
(Envolverde/Mercado Ético)

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